domingo, 5 de fevereiro de 2012

Pochmann (IPEA) pressiona Dilma: "O BRASIL PODE OUSAR MAIS"

Márcio Pochmann

Hoje não temos instituições que entendam e representem o novo Brasil que se constrói. E não sei se interessa às velhas elites ter um Estado que opere de forma transparente”. A constatação é de um veterano conhecido nosso, Márcio Pochmann, mestre e doutor em economia, presidente, desde 2007, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).“Nós podemos ser mais ousados”, aconselha ele em relação às transformações vividas pelo Brasil.

Por José Dirceu, em seu blog

Para Pochmann, as principais marcas desse subdesenvolvimento são o atraso tecnológico e a desigualdade na produtividade do trabalho em diferentes setores da atividade econômica. Contrastando com áreas que competem em pé de igualdade com o primeiro mundo, o país possui o que o economista chama de “estoque de pequenos segmentos em atividades praticamente associadas à subsistência”.

Em sua visão, esse é apenas um dos desafios colocados ao Estado brasileiro. Outra questão levantada é que o país ainda não conta com instituições que entendam e representem o novo Brasil que se constrói com a ascensão social de milhões de brasileiros. Nossas velhas estruturas precisam ser revistas. E Pochmann se pergunta: “Onde e como o Estado brasileiro deve atuar mais?” Há, pelo menos, duas propostas na mesa. De um lado, oferecer serviços de boa qualidade a todos; de outro, garantir recursos para que o cidadão de classe média os compre diretamente.

Confira abaixo a conversa que tivemos com esse professor de fala mansa, cujo baixo tom de voz não esconde a pressa que ele tem em sanar o subdesenvolvimento ainda presente em grande parte do país.

-Muito se tem falado – o IPEA inclusive – sobre os 30 milhões de pessoas que ascenderam socialmente no Brasil nos últimos anos. Por que são chamados, agora, de classe média? Quem ascendeu foram os trabalhadores. Você diria que os trabalhadores que o Lula liderou viraram classe média?

Esse debate não é meramente conceitual. Vivemos um momento de alteração profunda na estratificação social brasileira. Essa mudança resulta da ascensão da base da pirâmide social. A classe média não se percebe exatamente pela renda. Classe média é um padrão de consumo, de estudo, de futuro. As pessoas devem ter a clareza de que a agenda de políticas nas quais o Estado deve atuar difere quando se fala de classe média ou de classe trabalhadora. A classe média não necessariamente está preocupada com políticas universais.

Outro aspecto importante é que esses milhões de brasileiros que emergiram não encontram uma estrutura institucional de representação dos seus interesses. É importante que os sindicatos, as associações de bairros, os partidos políticos identifiquem como construí-la para esse novo segmento, porque ele poderá, inclusive, liderar a maioria política da organização do país nos próximos anos.

-Como você vê as transformações sociais em curso e que consequências terão?

Isso é não um fato inédito: o ciclo de expansão dos anos 30 aos anos 70, demarcou, também, mudança profunda na estrutura do país. Em 70, a transformação foi maior e mais profunda do que a que vemos hoje. Naquela época, a ascensão deu-se com gente que saía do campo, analfabeta, que não conhecia água encanada, eletricidade e que veio para a cidade. Na década de 70, a formação da classe trabalhadora no Brasil se deu nessas características, um quadro que difere bastante do que ocorreu na Europa. Lá, o sujeito tinha um pedaço de terra, perdeu a terra e foi para a cidade trabalhar na fábrica, ou na mineração, o que era muito difícil. Houve brutal estranhamento das condições de vida, que era rural e passou para urbana. Na Europa, a cidade era muito pior do que o campo. No Brasil, não. A cidade, apesar das dificuldades, era melhor.

-Mesmo assim, essa população tinha suas demandas...

A questão é que a percepção desse “lugar melhor” durou apenas um determinado tempo, até as pessoas se darem conta de que onde moravam não tinha ônibus, água encanada, eletricidade. Isso vai levar, nos anos da ditadura, a uma oportunidade de reorganização da sociedade. Nesse momento, foram importantes os sindicatos, as associações de bairro, as comunidades de base e a formação dos partidos que lideraram a transição. Essas organizações não têm o mesmo papel hoje. A ascensão social de hoje é muito mais assentada no trabalho. O emprego é que está movendo a estrutura da base da pirâmide social. Os programas sociais são importantes, evidentemente, mas o grosso do recurso que promove a mudança dá-se por meio do emprego, do salário mínimo.

-Quem é esse brasileiro que ascendeu socialmente nos últimos anos?

É um grupo muito heterogêneo. Boa parte é urbana, mas tem grupos com origem rural. Se você pegar o Norte e Nordeste, quem ascendeu foi o brasileiro de baixa escolaridade, não-branco, que migra para a região metropolitana. Se você pegar o Sul e o Sudeste, o movimento é outro: há mais brasileiros brancos, pessoas com mais escolaridade, com concentração nas cidades médias. O fenômeno é menor nas grandes cidades.

-Para essas pessoas, é preciso propor seguro saúde privado, escola privada, capitalização para a previdência privada. A classe média clássica tem essas três coisas. E isso no Brasil se dá mal e precariamente, porque o seguro saúde é muito ruim, a previdência privada pode um dia quebrar e a escola privada que esse brasileiro paga cobra R$ 300,00 de mensalidade. Ou seja, não entrega educação de qualidade.

Para essas pessoas, o Estado pode fazer uma “política de voucher”, ao invés de dar o serviço diretamente.

-Isso já ocorre no Brasil de hoje. Há o desconto no Imposto de Renda sobre esses serviços para as classes média e alta para que comprem os serviços privados de saúde e educação. No fundo, quem se dirige a esses brasileiros e os chama de classe média quer criar duas sociedades no Brasil: uma, onde o Estado cuida de muitos; e outra, onde quem cuida das pessoas é o capital privado.

A discussão de classe média envolve uma outra questão muito importante: qual é o papel do Estado que queremos. Onde e como o Estado vai atuar mais. Se oferecendo serviços de boa qualidade a todos, ou se garantindo recursos para que o cidadão de classe média os compre diretamente. O Brasil é um dos poucos países do mundo em que o orçamento público financia a educação e a saúde privadas da classe média e dos ricos.

O papel do Estado está na mesa, ainda, quando se questiona a transferência de renda do “Bolsa Família”. Há preconceito quando se alega que o Estado está transferindo recursos para os pobres sem nenhuma exigência em troca. Na verdade, com os programas sociais, os pobres passam a receber uma parte – ainda pequena – do que contribuem na forma de impostos, uma vez que, no Brasil, os impostos, em termos proporcionais à renda, são pagos pelos pobres.

-Universalizar os serviços públicos é o caminho mais adequado?

Na minha opinião, a tese que se construiu na transição da ditadura, de universalização das políticas, é muito mais adequada. Nós não temos um Estado de bem-estar social completo. Mas já contamos com estruturas que foram construídas a partir da Constituição Federal – complexo educacional, de assistência, de saúde – comparáveis as de qualquer país desenvolvido.

E quando afirmo isso, eu me refiro apenas à estrutura do Estado. Ainda faltam os recursos. Nós não vamos financiar uma saúde de boa qualidade para todos com 4% do PIB. Os EUA gastam 18% do PIB com saúde e ainda têm 40 milhões de pessoas fora do sistema. Nós somos o único país da América – tirando Cuba – que tem uma estrutura de saúde comparável à dos EUA, a despeito dos problemas que temos, que não são pequenos.

-Qual o papel do Estado no desenvolvimento do país hoje?

Nós não temos um padrão de intervenção do Estado no Brasil. Temos ações. E algumas atuam, de certa maneira, de forma invertida. Se pegarmos programas na área social, eles são mais voltados para as regiões e os segmentos mais pauperizados do Brasil. Por exemplo, os serviços de educação e saúde espelham uma certa proporcionalidade da população. Mas o mesmo não se dá na ação dos bancos públicos. Se olharmos a intervenção bancária, veremos que os bancos públicos estão concentrados apenas onde está a riqueza. Ou seja, estamos falando de padrões distintos. Temos o mesmo Estado, mas não se vê uma intervenção bancária tendo como objetivo todas as regiões do país. O mesmo ocorre com as universidades, embora a expansão recente da rede tenha caminhado no sentido inverso disto. Ainda hoje, boa parte das federais está nas áreas mais ricas do país.

-Quando o governo faz uma grande obra no meio da Amazônia, mais de 70% de seus recursos voltam para o Sudeste, porque insumos, equipamentos e mão de obra especializada são de lá, o que reforça a desigualdade entre as regiões. Como reverter essa tendência?

O IBGE ainda não publicou os dados da composição do PIB. Mas irá demonstrar outra realidade, relativa à expansão do Nordeste, do Norte e do Centro-Oeste do país. Essas regiões têm crescido muito mais que a média nacional.

-É verdade. Há Estados com 14% de crescimento ao ano. No Tocantins e em Goiás, o crescimento tem sido muito alto. Mas você diria que, para minimizar as desigualdades regionais dá mais resultado um programa como “Bolsa Família” ou a construção de uma estrada de ferro? O desenvolvimento regional pode ser induzido com mais infraestrutura, ou os programas sociais são mais efetivos? Ou se trata de chegar com as duas opções juntas?

No caso das desigualdades regionais é uma falsa questão se é isso ou aquilo. É preciso chegar com um pacote. Não existe o social sem o econômico e vice-versa. E, também, sem o político. Esses segmentos que emergem certamente farão diferença no contexto político. Hoje não temos instituições que entendam e representem esse novo Brasil que se constrói. Não sei se interessa às velhas elites nessas localidades ter um Estado que opere de forma mais moderna e transparente.

-A base econômica desses Estados já mudou. Não é mais agroexportadora, baseada na monocultura. No sul do Maranhão e do Piauí, já é outra coisa. Em Pernambuco, Bahia, Sergipe também.

Sem dúvida. Essa primeira década do século XXI está trazendo novos elementos. O ciclo de expansão urbano industrial da década de 30 a 80 tinha a imagem de que o Brasil era uma espécie de trem e que a locomotiva era São Paulo. A perspectiva dos governos estaduais foi repetir a referência de São Paulo. O ápice disso foi o regime militar construir na Zona Franca de Manaus uma mini São Paulo no meio da floresta Amazônica.

Hoje, essa perspectiva mudou. Nós contamos com Estados que têm sua própria dinâmica e não querem mais ser São Paulo. Daí a necessidade da transformação do papel do Estado para favorecer essa dinâmica, que não é só econômica. É preciso pensar a estruturação do espaço territorial e, ao mesmo tempo, o fortalecimento das instituições. Os novos segmentos que surgem no bojo desse crescimento regional diferenciado estão resultando na formação de novas elites regionais. Veja o debate mal feito sobre a divisão do Pará. O pleito da divisão do Estado em três resulta da efervescência de novas elites que estão surgindo em diferentes regiões do país, em cidades médias e pequenas, e que não encontram representações adequadas no sistema tradicional.

-Eu gostaria de falar agora da economia do país e dos estrangulamentos que influenciam um desenvolvimento sustentável. Os juros são um problema. Mas não é só isso. Se nós não fizermos um programa tecnológico de 50 anos em 5 anos - e educacional também, já que, apesar dos avanços na educação, nós ainda estamos no século passado nesta área - será muito difícil superar nossos problemas. É lógico que depende muito da política macroeconômica. Precisamos de recursos e sabemos que eles existem: o país já tem um PIB respeitável e a arrecadação está aí… Mas se gastamos R$ 236 bilhões anualmente com juros, estamos promovendo a concentração da renda, transferindo renda para a poupança e, em parte, para o exterior, o que é mais grave.

É impossível o Brasil enfrentar os próximos 15 anos sem grande mudança tecnológica, como fizeram a Coreia e a China. Nosso desenvolvimento tem andado a passo de tartaruga. Tecnologicamente, ainda estamos na década de 90. Enquanto isso, a China fez uma revolução tecnológica em 20 anos; a Coreia em 30. O Brasil está chegando atrasado porque ficamos, de 1983 até 2003, patinando, por falta de maioria no país. O presidente Fernando Henrique Cardoso fez uma maioria, uma coalizão, mas que não deu certo. Seu projeto era destinado para apenas 1/3 da população. No longo prazo, não era sustentável politicamente. A inversão desse caminho, com a nova maioria que se constrói a partir de 2002, foi para que o povo brasileiro coubesse inteiro no Brasil. Hoje, se repete aquela discussão: em relação aos aeroportos, há quem diga que a população não cabe neles.

-Passamos de 30,6 milhões de passageiros aéreos em 2002 para 67 milhões. O objetivo é que tenhamos 100 milhões de passageiros em 2014. E é bom lembrar que o presidente Lula reformou todos os aeroportos, só não os que o TCU e a direita não deixaram – Goiânia, Vitória e Cuiabá...

O fato mais marcante é que, hoje, mais pessoas viajam de avião do que andam de ônibus interestaduais. Mas, voltando ao desenvolvimento tecnológico que você mencionou, o final do século XX foi muito difícil para o Brasil, ainda que, do ponto de vista político, tenha sido sensacional: abandonamos a ditadura e elaboramos a Constituição Federal de 1988. Mas foram anos desfavoráveis para enfrentar o estágio econômico em que o Brasil se encontrava nos anos 80. O ajuste feito nas finanças públicas brasileiras marginalizou os investimentos na infraestrutura. Somente muito recentemente o país está se recuperando. As marcas do nosso subdesenvolvimento são o atraso tecnológico e a desigualdade na produtividade do trabalho em diferentes setores da atividade econômica.

-E isso repercute diretamente nos salários.

O mercado de trabalho reflete a desigualdade da estrutura produtiva. Temos 40% dos brasileiros ocupados em atividades com produtividade muito baixa. Por outro lado, temos setores que competem em situação melhor, inclusive, do que alguns países ditos desenvolvidos. Contam com estrutura média até razoável. O problema é esse estoque de pequenos segmentos em atividades praticamente associadas à subsistência. Isso exigiria ação profunda do Estado para alterar o patamar tecnológico em que se situam.

Tem o BNDES, estrutura muito importante para o financiamento de grandes empresas. Mas falta o financiamento para as pequenas empresas. Não é tanto problema de falta de recursos, mas de dificuldade de a pequena empresa ter acesso ao financiamento. E, tampouco, é problema do banco, mas da forma como essas pequenas organizações operam. A socialização das novas tecnologias às pequenas empresas tem papel fantástico. E exige reinvenção do Estado.

-Como resolver o desnível de produtividade entre as empresas no país?

Precisamos rever os fundos setoriais, cuja forma de organização foi importante no passado. A forma que mantêm hoje, no entanto, é muito fragmentada e impede grande impulso de recursos a determinados setores. O outro desafio é o educacional. Nessa dita sociedade do conhecimento, o principal ativo é o próprio conhecimento, o que implica mudança estrutural. As pessoas terão de estudar a vida toda. O que requer reestruturação do sistema educacional, tal como o conhecemos.

As grandes empresas já se deram conta da importância de se ter o conhecimento ao longo da vida. Elas vêm avançando, cada vez mais, nas chamadas universidades corporativas. Se pegarmos as 400 maiores empresas que operam no Brasil e somarmos os recursos que gastam com a capacitação de seus empregados, eles equivalem já a 1% do PIB (R$ 20 bilhões) – ou 20% de tudo o que gastamos com educação pública no Brasil. Mas, como fazemos para as médias e as pequenas terem capacitação permanente?

-Sim, mas e no resto do mercado de trabalho?

É preciso mudar a relação capital-trabalho. Hoje, há no país uma estrutura nas relações de trabalho que motiva o rompimento do contrato ao longo do tempo. Temos rotatividade que atinge quase a metade dos trabalhadores. E, dos demitidos, somente 1/3 consegue se reempregar no mesmo ano.

Esse quadro de alta rotatividade leva a empresa a não investir na qualificação do seu trabalhador. Não há a garantia de que aquele recurso usado para melhorar a capacitação da mão de obra resultará, de fato, em investimento. Uma vez qualificado, o trabalhador poderá ir para o concorrente. O trabalhador, por sua vez, não sabe em que se capacitar. Onde investir em sua formação. Hoje, ele está trabalhando na indústria metalúrgica, amanhã no comércio, depois no transporte...

-Foram tomadas medidas para debelar esse problema?

No caso das relações do trabalho, o movimento foi no sentido de abandonar as leis de flexibilização do mercado de trabalho. Elas estavam acirrando ainda mais esse processo de rotatividade. Também, foram tomadas medidas do ponto de vista da regulação do trabalho autônomo, aquele trabalhador por conta própria. Introduzimos a lei do empreendedorismo individual.

-Você se refere àquela pessoa que vende pipoca, legaliza-se e paga R$ 1,00 de ICMS por mês, recebe CNPJ e, com ele, consegue empréstimo para comprar máquina, equipamento? O país já conta com 2,5 milhões de empresas assim. Isso porque essas pessoas têm consciência de que precisam se legalizar para ter crédito e para se aposentar. A previdência pública no Brasil, comparada aos demais países da América Latina, é informatizada, funciona muito bem. É a única que paga um salário mínimo, pelo menos, todo mês.

O Estado foi fazendo modificações na previdência. Somos a 2ª maior previdência pública do mundo. A 1ª é a da Índia. E o sistema é muito bem estruturado, informatizado. Se lembrarmos, alguns anos atrás, os problemas que existiam de filas... Isso desapareceu. O Estado fez mudanças que elevaram, inclusive, a sua produtividade.

As pessoas não entendem, mas em vários setores, o Estado tem produtividade maior do que em vários setores da iniciativa privada. As universidades federais no Brasil, por exemplo, são melhores que as privadas. Em média, os hospitais públicos são melhores que os privados.

-É importante lembrar que a maioria dos hospitais privados foi criada na década de 70 com dinheiro do “Fundo de Atendimento à Saúde” (FAS). Os interessados iam à Caixa Econômica Federal, pegavam milhões e construíam um hospital. O “Instituto Nacional Assistência Médica e Previdência Social” (INAMPS) contratava o serviço. Com isso, o Brasil montou uma estrutura enorme de hospitais privados, construídos com dinheiro público, os quais, depois de 1988, venderam seus serviços para o SUS. Em resumo, o risco e o capital eram nosso e o lucro era deles...

Mas vamos falar da crise internacional. O IPEA divulgou estudos em que manifesta a preocupação de que o agravamento da crise reverbere no Brasil. Na sua avaliação, esse perigo é iminente ou vamos contornar os riscos e tocar nossa economia como fizemos até agora?

O Brasil tem sido muito ativo nos períodos de crise do capitalismo. E não é diferente agora que o país vem aproveitando de forma muito positiva as oportunidades que a crise da hegemonia global estabelece.

Estamos diante de transição do centro dinâmico do mundo, dos EUA para a Ásia, principalmente para a China. Nós não sabemos como se dará essa transição. As experiências históricas de transição do centro dinâmico que ocorreram no passado deram-se, geralmente, acompanhadas de grandes conflitos mundiais. As duas guerras mundiais não deixaram de ser, também, expressão da tensão da superação da crise da hegemonia inglesa entre a Alemanha e os EUA. Será que essa transição que vivemos será tranquila? EUA e Europa vão aceitar o esvaziamento do seu setor produtivo, a convivência com o desemprego, o retrocesso social, a ampliação das desigualdades, tranquilamente, enquanto a China continua exitosamente o seu percurso de expansão?

A decisão do governo Obama de retirar as forças militares do Oriente Médio - possivelmente aceitando o predomínio do islamismo na região, para realocá-las prioritariamente na Ásia - é uma nova postura dos EUA. Foi noticiado há pouco que o governo inglês aceita que a Inglaterra possa ser a grande praça financeira da Ásia. Essa pode ser outra reacomodação de forças e do papel da Europa neste novo mundo.

-Você mencionou que, em outras crises, o Brasil obteve desempenho positivo. A que períodos se refere?

Neste momento, guardadas as devidas proporções, o país repete situações ocorridas durante a Grande Depressão de 1873 a 1896, e as depressões de 29 e 39, no século passado. Foram momentos de ruptura na dinâmica do capitalismo global, cujas oportunidades o Brasil soube aproveitar. Essas transformações fizeram com o que o país aproveitasse a onda dos fluxos comerciais internacionais.

Na década de 1880, nós tivemos transformações importantes no Brasil do Império. A sociedade ainda era muito primitiva. Mesmo assim, tivemos uma sucessão de reformas como a política, de 1881; a laboral, com o fim da escravidão, em 1888; a ruptura com o Império e a construção da República, em 1889; a Constituição Federal relativamente avançada, em 1891. Havia, inclusive, uma elite emergente provinda dos abolicionistas - Rui Barbosa entre outros - que tinha visão clara das necessidades de mudanças do país, da transição de uma sociedade agrária para outra industrial.

-E em 1929?

Nós entramos com o café que, a despeito de postergar o fim da sociedade agrária, criou as bases da industrialização na década de 1930. Na depressão de 1929, houve a construção de maioria política nova, liderada por Getúlio Vargas, uma frente muito ampla – de comunistas a fascistas. Essa maioria também soube, do ponto de vista político, promover coordenação que viabilizou o país fazer transição profunda para um país urbano e industrial. Infelizmente, essa maioria política que governou o país de 1930 até a década de 1970 não foi democrática. A maior parte do período se deu sob o autoritarismo do Estado Novo e da ditadura militar. Não fizemos reforma no Estado do bem-estar social.

-O que se deu durante a crise da dívida externa, nos anos 80?

A crise da dívida externa de 1981-1983 foi fundamental para romper com a maioria política que vinha governando o país de 1930 a 1970 e início dos anos 80. A partir daí, nós permanecemos por quase duas décadas sem maioria política estável. Ainda assim, foram feitas construções de maiorias pontuais na transição para a democracia e na elaboração da Constituição Federal de 88, a mais avançada que nós já tivemos.

-O que representou a eleição presidencial de 2002?

Ela estabeleceu os parâmetros para a construção de outra maioria. Uma maioria que não aceita “voo de galinha” que era a performance da economia do Brasil, sobretudo, nos anos 90. Nessa perspectiva, vemos a decisão do Banco Central (BC) de reduzir a taxa de juros, quando aparentemente não estaria claro o patamar de queda da inflação, como muito importante. Ela, inclusive, foi entendida pelo mercado financeiro como ruptura na trajetória do BC.

Buscar a redução da taxa de juros, de certa forma, é o compromisso das forças políticas que estão em torno do governo Dilma e que estiveram nos dois governos Lula. Ao mesmo tempo, essa maioria tem articulação muito grande com os chamados setores perdedores dos anos 80 e 90, que foram os trabalhadores e as pequenas empresas. Esses também não aceitariam a regressão vivida nos anos 90.

-E quais as consequências da crise de 2008?

A crise de 2008/2009 encerra um ciclo. O Brasil rompeu com o que se fazia desde a crise da dívida externa, desde o último governo militar do Figueiredo e que foi repetido até o segundo governo de FHC e no início do governo Lula. Frente a uma crise, todos diziam que, quando os EUA tossiam, nós pegávamos aqui uma pneumonia. Porque nós internalizávamos a crise internacional. Nós aumentávamos os juros, os impostos, não aumentávamos o salário mínimo, não ampliávamos as políticas sociais. Mas, a partir de 2008, nós fizemos diferente. Demorou, mas houve redução dos juros, isentamos e reduzimos, de certa forma, a carga tributária, ampliamos o salário mínimo e as políticas sociais. Tudo isso fez com que o mercado interno passasse a ser o principal dínamo do próprio enfrentamento da crise. Essa solução veio para ficar.

-Como está o Brasil posicionado internacionalmente? A China, por exemplo, compete com o Brasil no mercado externo e no interno. As medidas adotadas até aqui são utópicas e defensivas. Não há uma estratégia em relação à China nem por parte do empresariado brasileiro, nem por parte do governo. A China sabe o que quer, já o Brasil...

A transição que o Brasil e a América Latina fizeram ao focar não somente os EUA, mas também as outras nações, deu um espaço muito grande às relações comerciais com a China. E, nesse contexto, o problema não é a China, é o Brasil, que não sabe bem o que quer. Os chineses sabem. Das 500 maiores corporações do mundo hoje, os chineses querem ter 250. E o Brasil quer ter quantas? Entendo que a postura do BNDES está correta, mas não está claro onde nós vamos chegar. Queremos ter presença em quais grandes empresas e em quais setores estratégicos?

No ano 2000, o comércio com a China representava praticamente 2% das nossas exportações. Hoje, aproxima-se dos 20%. É mudança grande. E se projetarmos essa tendência no tempo, em 2020, talvez 60% das nossas exportações estarão concentradas na China. Esse é movimento que precisa ser melhor avaliado. O Brasil precisa de plano estratégico que defina o seu reposicionamento no mundo. Uma medida ousada seria melhor utilizar o “Fundo Soberano” para comprar empresas estrangeiras, como têm feito os chineses e os indianos.

-Este é o momento. São oportunidades que estamos deixando de aproveitar. Nós somos país muito internalizado, diferentemente da Coreia e de outros países da Ásia. Aqui, quando as multinacionais decidem aumentar as exportações que fazemos a partir do Brasil, o fazem a partir de outras praças que não necessariamente estão identificadas com os nossos interesses nacionais. Mas temos condições, ainda, de fortalecer a estrutura produtiva nacional.

Outra medida ousada é rever o papel do Brasil no continente sul-americano. A China está reconstituindo suas relações econômicas com os demais países da Ásia, e mantém relação importante com o Japão. O Brasil precisa tomar decisões sob essa perspectiva. Ter reunião com os presidentes, ministros da área econômica e de produção sul-americanos, buscando defender a sua produção aqui.

-Houve aquele sopro que foi a reunião da UNASUL, mas depois…

Estamos em novo estágio do capitalismo. A trajetória de concentração do capital está clara. Temos empresas maiores do que países. E dada a situação de que essas empresas não podem quebrar - porque se o fizeram levarão os países à bancarrota - o próprio sistema econômico é uma associação dessas empresas com os Estados nacionais. Nesse sentido, o Brasil teria melhor condição de aproveitar o espaço sul-americano para defender e ampliar o seu mercado e se reposicionar no panorama internacional. A agenda externa é muito importante. É estratégica para redefinir o Brasil nos próximos anos.

-E a agenda interna?

Temos agenda interna que está sendo formatada de forma pontual, talvez não de maneira mais organizada. O quadro ainda não está claro porque a agenda de transformações exige maior revigoramento da maioria política no país, o que ainda não está bem estabelecido. Nesse novo desenho mundial, o papel do Estado se torna muito maior, tanto do ponto de vista da sua capacidade de enfrentamento da desigualdade, quanto de sua capacidade de fortalecimento do setor produtivo.

É uma coisa estranha que, em país como o nosso, com mais de 190 milhões de habitantes, haja apenas 170 bancos. Os EUA têm mais de 7 mil bancos, a Alemanha mais de 3 mil. Nós precisamos ter bancos mais vigorosos para operar não só dentro do Brasil, mas também lá fora.

-Tirando os públicos que somam 50% do mercado (e são os que nos salvam), nós temos apenas três bancos: Itaú/Unibanco, Bradesco – brasileiros - e o espanhol Santander. Essa questão do sistema bancário é gravíssima e os juros são altos só por isso, não tem concorrência.

O discurso tucano em 1994/1995 para defender a privatização no setor financeiro era de que o setor bancário brasileiro era ineficiente porque tinha muito banco público. Não que não houvesse problemas nos bancos públicos, mas não precisava jogar a água suja com a criança dentro. Diziam que, também, era um mercado bancário constituído apenas de bancos nacionais. Então, tivemos a abertura, a presença de outros bancos e a privatização. Nós tínhamos mais de 240 bancos em 1995, hoje temos menos de 170 bancos. A privatização levou à redução, a encolhimento do número de bancos, e a presença dos bancos estrangeiros nos tornou dependentes de recursos internacionais.

-De forma geral, os bancos internacionais não deram certo no Brasil.

Não há nada que justifique, por exemplo, que nós não tenhamos um bom e grande banco para apoiar as micro e pequenas empresas no Brasil. O Japão tem um banco de pequenas empresas, por exemplo. Um banco para a agricultura familiar. Você poderia ter bancos comunitários em cada município. Temos mais de 500 municípios no Brasil que não têm agência bancária, por exemplo. E os bancos operam de forma centrada no Sudeste. A poupança do Norte e Nordeste vem parar no Sul e Sudeste do Brasil. Não existe o compromisso de aplicação do recurso no local onde ele é captado. O tema do financiamento do desenvolvimento brasileiro é fundamental para a sustentação do crescimento do país a longo prazo.

O Brasil já tem maioria política que pode aproveitar essas oportunidades para fortalecer a pujança brasileira, combinada com o enfrentamento da herança que temos do ponto de vista do atraso social. Hoje, nós podemos ser mais ousados.”

FONTE: postado por José Dirceu em seu blog e transcrito no portal “Vermelho”  (http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=174864&id_secao=1). [imagem do Google adicionada por este blog ‘democracia&política’]

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