segunda-feira, 6 de julho de 2015

BRASIL NO OLHO DO FURACÃO



O Brasil no olho do furacão

"O giro à esquerda que, sob o guarda-chuva de 4 vitórias eleitorais do Partido dos Trabalhadores (PT), e com apoio dos comunistas (notadamente do PCdoB) e demais forças de esquerda, o Brasil logrou levar à frente nos últimos 12 anos, parece agora claramente ameaçado.

Por Marcos Aurélio da Silva, professor da UFSC, Florianópolis 

"O giro à esquerda que, sob o guarda-chuva de 4 vitórias eleitorais do PT, e com apoio dos comunistas (notadamente do PCdoB), o Brasil logrou levar à frente nos últimos 12 anos, parece agora claramente ameaçado".

É certo que, desde o início, o programa socialista do PT, bem demarcado na referência à “propriedade social dos meios de produção” , não foi o que prevaleceu, o que certamente se explica pela frente política e social que assegurou a vitória de Lula da Silva em 2002 e 2006.

De fato, além dos operários das velhas regiões industriais, do funcionalismo público, dos trabalhadores sem terra, e ainda de um vasto grupo de subproletários localizados nas regiões mais pobres (estes tendo aderido à frente política após a eleição de 2006), somavam-se uma parcela da pequena burguesia urbana, dos profissionais liberais e até do grande empresariado nacional, todos massacrados pelas terríveis políticas neoliberais dos anos 90.

Assim é que se pode entender que aumentos do salário mínimo real em mais de 70% nestes doze anos, bem como programas sociais de transferências de renda e políticas afirmativas de diferentes tipos (para os afrodescendentes, para estudantes pobres da escola pública), ou ainda programas de proteção ao emprego e ao aparelho produtivo nacional (a ponto de provocar ações dos oligopólios da União Europeia na Organização Mundial do Comércio), tiveram que conviver com políticas contraditórias de todo tipo. Aí estão as altas taxas de juros do Banco Central, entre as maiores do mundo, as restrições cíclicas ao gasto público, a reforma da Previdência que afetou direitos do funcionalismo público, a omissão diante da corrosão dos salários dos aposentados. Em resumo, políticas que interessavam ao campo burguês que integrava a aliança, ele próprio, vale advertir, não só controlador de parte importante do aparelho de produção nacional, mas também com destacado interesse em investimentos que, como é norma no tipo de capitalismo hoje mundialmente hegemônico, já não distinguem lucros e renda ‒ vale dizer, com interesse em investimentos puramente rentistas, especialmente desenvolvidos nos anos 90.

Todavia, é preciso que não se dê por menores as mudanças que essa composição política conseguiu levar a efeito. A tese de que os governos do PT se entregam de cima a baixo aos zelos do neoliberalismo é rigorosamente falsa. Ou, como às vezes se prefere dizer tendo Gramsci como referência, aos ditames da contrarreforma e da pequena política. Não só as políticas sociais conduzidas pelo Estado acima referidas são um desmentido ‒ a teoria neoliberal não admite que o Estado interpele a questão social, sendo a “fome mais desesperada” essencialmente “um fato privado do indivíduo que a sofre e do seu eventual benfeitor” ‒, mas mesmo a política externa, a toda prova ocupada com a “estatura do Estado nos seus confrontos recíprocos”, como o disse Gramsci definindo a “grande política” , ou com a luta de classes em sua dimensão diplomática e geopolítica, segundo uma tese recentemente sustentada por Losurdo . E isso em um quadro que toca não só ao Brasil isoladamente, mas todo um conjunto de países latino-americanos que, no novo século, conheceu governos à esquerda, às vezes com aplicação dedicada de elementos de um programa confessadamente socialista. A ver a atuação para anular o histórico isolamento das economias do subcontinente, de que são exemplos o decisivo papel exercido na expansão do Mercosul (com a integração da Venezuela), na criação da Unasul e ainda no deslocamento de investimentos aos países vizinhos. Mas também o papel destacado que exerceu no cancelamento definitivo da ALCA ‒ o projeto de integração neoliberal da Américas ambicionado pelos EUA ‒, a permanente defesa do fim do bloqueio contra Cuba nos foros internacionais, o apoio à sua reintegração na comunidade americana, bem como o manto de amizade e proteção com o qual cobriu diversos governos progressistas do subcontinente, e até mesmo em situações políticas difíceis, como na condenação ao golpe em Honduras e no Paraguai.

Aliás, um movimento geopolítico que não se limita ao seu entorno geográfico mais imediato, como nos permitem recordar o reconhecimento do Estado da Palestina, a recusa do bloqueio contra o Irã e, mais recentemente, o impulso ao Banco dos BRICS, antagonista direto dos interesses financeiros resguardados pelos organismos que sustentam a dominação imperialista (FMI, Banco Mundial).

Mas o que explica que o Brasil esteja agora no olho do furacão de uma crise política de grandes proporções? Vale aqui nos debruçarmos um pouco mais sobre as características da frente política formada em 2002. Em razão dessa frente, a toda prova demasiado heterogênea, a travessia em direção a políticas democráticas e populares nunca foi uma operação tranquila. Assim o demonstram não apenas os limites no âmbito das políticas sociais e econômica dos quais antes falamos, mas até mesmo as hesitações quanto à política externa, como nos fazem lembrar a adesão de ministros do presidente Lula da Silva, ligados à burguesia agroindustrial e ao setor financeiro ao projeto ALCA, só rejeitado pela decisiva ação do corpo diplomático que se ocupava do tema . Ora, as contradições oriundas desse pacto de classe assaz heterogêneo, que pretendeu ter o concurso de uma elite de traços claramente cosmopolita, parecem aflorar com todas as forças nos governo de Dilma Rousseff.

Conhecida como uma convicta desenvolvimentista, diga-se logo, opositora firme das heranças rentistas recebidas do neoliberalismo pelos governos do PT, a nova presidente se pôs o desafio de levar a frente, logo no segundo ano do seu primeiro mandato (2012), uma decida redução das taxas de juros. A operação, apoiada por sindicalistas e supostamente pelo empresariado, todavia não logrou êxito. Em pouco tempo, repiques inflacionários alimentados por uma estrutura industrial de elevado grau de monopolização, conduziram à retomada da política de juros elevados. Ao mesmo tempo, o projeto de recuperação dos investimentos em diferentes setores, com destaque para aqueles de infraestrutura urbana e regional, com enormes carências, não conhece a adesão da burguesia industrial, que se entregou à crítica das regulações administrativas pretendidas pelo governo sobre as tarifas e, logo, as taxas de lucro. Seguramente, para entender essa hesitação do empresariado, se deve levar em conta os atrasos do governo em lançar um programa de investimentos que fizesse o padrão de acumulação da economia nacional transitar do consumo popular ‒ já esgotado depois de seguidos anos de crescimento ‒ para as infraestruturas urbanas e regionais, e ainda o papel da crise mundial, que não cede facilmente. Mas o fundamental a reter é que a burguesia brasileira, agora com os traços cosmopolitas que sempre a caracterizaram ainda mais definidos, está bastante distante, como acima dissemos, dos interesses predominantemente produtivos.

E eis que, nesse quadro, 2013 figura como um ano decisivo. É o ano em que são desencadeados grandes conflitos sociais que começam a pôr a prova os seguidos êxitos eleitorais. As conexões lógicas dessa mudança de cenário parecem ser: 

1. as forças produtivas nacionais associadas às infraestruturas urbanas e regionais ‒ as quais não devem ser lidas, como o faria o economicismo já criticado por Gramsci , sem atenção às relações de produção ‒, revelavam já uma carência de décadas e não encontram investimentos sequer iniciados; 

2. par indissociável dessas forças produtivas, o mercado de trabalho das grandes metrópoles, acusando um forte aquecimento, mas também um elevado grau de exploração pelas das longas jornadas diárias de deslocamento entre o domicílio e o local de trabalho, convulsiona fortemente o novo proletariado, de baixa experiência sindical e política ; 

3. o partido do governo, tradicionalmente enraizado no velho proletariado industrial e em parcela do funcionalismo público, mas agora acusando certo grau de transformismo, segue conduzindo as políticas de Estado através de acordos palacianos com o setores que compõem a frente política, vale dizer, sem a velha luta de massas no interior da sociedade civil que marcou sua trajetória inicial ; 

4. como efeito desse transformismo, essa mesma sociedade civil se encontra em alguma medida sob hegemonia dos movimentos libertários e/ou espontaneístas, com forte presença nos meios estudantis das grandes universidades públicas; 

5. em julho de 2013 um desses movimentos inicia grande onda de manifestações contra o aumento das tarifas do transporte público na cidade de São Paulo, a grande metrópole nacional cuja prefeitura havia sido conquistada por uma coalizão PT-PCdoB um ano antes; 

6. assim divididos, os movimentos contestatórios e de esquerda conhecem, na sequência desses protestos, a proliferação das ações de rua de uma direita abertamente fascista, que organizada através das redes sociais e apoiada pelos grandes meios de comunicação, consegue arregimentar em todo o país grande parcela da população contra o governo, com a participação das classes médias e até do novo proletariado das periferias urbanas; 

6. a partir desse ponto, se inicia a ira contra as agremiações de esquerda em praça pública, cujas bandeiras são rasgadas e queimadas, bem como seus militantes agredidos ‒ é quando se observa, pela primeira vez, os ostensivos pedidos de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, frequentemente embalados pelas acusações de corrupção que a mídia dominante lança ostensivamente contra o governo.

Esse mesmo quadro é o que vemos prevalecer na cena política brasileira que se desenvolve durante o ano do mundial de futebol, quando aparecem novos protestos, até predominantemente anticapitalistas, mas em geral guiados por aquele espírito de pandestruição que Gramsci criticou em Bakunin. E também durante a acirrada eleição presidencial que deu nova vitória à candidatura do Partido dos Trabalhadores, agora por uma margem muito pequena de votos (pouco mais que 3%).

É claro que desse quadro não se deve abstrair a presença dos interesses imperialistas. E não simplesmente porque é já conhecido o financiamento a grupos de direita por parte de empresas estadunidenses com interesses no setor petrolífero [caso Chevron-PSDB]  ou ainda a espionagem das agências norte-americanas de inteligência junto à estatal brasileira dedicada à exploração de petróleo, bem como à presidência da República. Em tempos normais, lembrou Gramsci, a divisão internacional do trabalho é fundamentalmente o resultado das escolhas das classes dirigentes internas. De fato, e para continuarmos com as categorias do comunista sardo, se os intelectuais da esquerda brasileira que integram o governo do PT exercem uma efetiva função nacional ‒ o que, aliás, empresta ao processo, com todas as suas contradições, o caráter de uma revolução passiva, quiçá até mesmo de tipo intermediário , e não de uma contrarreforma ‒ a direita partidária que ganha força diante da onda de impopularidade do governo é aquela do partido cosmopolita que já identificamos na burguesia brasileira. Seu programa não é outro senão o de recuperar a ALCA, abandonar Mercosul e a Unasul e abrir a economia brasileira aos interesses imperialistas, com destaque para o setor petrolífero (como o demonstram as conversas já denunciadas dessa elite com petroleiras norte-americanas) [Serra/PSDB-Chevron]. No fundamental, a desestruturação do aparelho produtivo nacional e da reorganização pós-neoliberal da inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho, reorganização essa que tem permitido a recuperação dos empregos e a redução da pobreza e das desigualdades sociais. Aliás, conquistas que já estão sendo postas em xeque com o êxito dessa mesma direita nas eleições parlamentares do ano passado, como nos permitem ver os projetos reacionários já votados ou em discussão no Congresso Nacional: a ampliação do trabalho terceirizado e precário; a redução da maioridade penal; a derrota do projeto de cotas para ampliar a participação das mulheres no parlamento; e ainda o projeto abertamente fascista, com claras intenções de atingir o pensamento marxista e de esquerda, que busca impedir as discussões ideológicas nas universidades, com ameaça de prisão e multa aos professores.

Que desenvolvimentos esperar desta conjuntura? Duas são as possibilidades mais evidentes até o momento: 

1. o impeachment da presidente Dilma Rousseff (a rigor um golpe branco, à moda hondurenha, ou paraguaia), motivado por uma superdimensionada onda de denúncias de corrupção em torno da estatal Petrobras, onda essa favorecida pelo obscurantismo geral que assola a sociedade brasileira, resultado da hegemonia do partido cosmopolita nos grandes meios de comunicação, no Judiciário e na Polícia Federal ; 

2. O enfraquecimento do governo e do PT até a eleição de 2018, quando as esquerdas podem ainda contar com a forte candidatura do ex-presidente Lula (aliás, mesmo ele já ameaçado pelos quadros reacionários do Judiciário).

Vencerão as forças cosmopolitas, iniciando um ciclo de regressão e direta subordinação aos interesses do imperialismo, com consequências nefastas para a ordem geopolítica do subcontinente e até mesmo aquela que se redesenha mundialmente com a ascensão do BRICS? Dilma Rousseff, reeditando em 2015 o mesmo erro de 2011 (a aplicação de amplo corte de gastos, agora já com efeitos perversos sobre os negócios e a geração de empregos), poderá manter a base social que a elegeu a ponto de contar com movimentos de massa nas ruas para a sua defesa? Por outras palavras, saberá o governo abandonar as políticas equívocas a ponto de permitir ao seu partido reatar as fortes ligações com as classes subalternas que estiveram em sua origem como um grande e democrático partido de massas? Poderá um processo dessa ordem, relançar em grau avançado o projeto nacional-popular até aqui contraditoriamente perseguido, vale dizer, encaminhar a superação da revolução passiva que até agora predominou, para dar lugar ao programa socialista sustentado pelo próprio PT e os aliados da esquerda comunista? Saberão os diferentes setores da esquerda brasileira, em favor da unidade agora tão necessária, divisar um programa socialista para o Brasil de hoje que implique algo próximo do que o disse G. Lukács nas teses de Blum, a saber, que “a revolução proletária e a revolução democrático-burguesa, na medida em que se trate de numa revolução real, não podem ser separadas por uma muralha da China” ? Será possível, como condição de viabilizar esse programa, hegemonizar a burguesia brasileira, desenvolvendo nela uma indispensável função nacional?

De fato, nunca como agora parece ter tanta validade para a esquerda brasileira a divisa com que Gramsci criticou o “não empenhar-se a fundo” dos comportamentos reformistas: unir o “pessimismo da inteligência” com um claro “otimismo da vontade”.

Notas

Singer, A. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Coutinho, C. N. A hegemonia da pequena política. In: F. Oliveira, R. Braga e C. Rizek (orgs.). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010.
Gramsci, A. Quaderni del Carcere, vol. 2. Torino: Einaudi, 1975, pp. 1252-3.
Gramsci, A. Quaderni del Carcere, vol. 3. Torino: Einaudi, 1975, p. 1564.
Losurdo, D. Hegel e la libertà dei moderni. Vol. 1 Napoli (IT): La scuola di Pitagora, 2011, p. 187. Itálicos nossos.
Gramsci, A. Quaderni del Carcere, vol. 3, p. 1564.
Losurdo. D. La lotta di classe: una storia política e filosófica. Roma-Bari (IT), 2013.
Silva, M. A. da. Imperialismo e geopolitica: la lotta di classe nelle elezioni brasiliane. In: Gramsci Oggi, maggio, 2014. Também publicado em português como Imperialismo e geopolitica: a luta de classes nas eleições brasileiras. In: Princípios, n. 131, 2014.
Gramsci, A. Quaderni del Carcere, vol. 2, pp. 1361-62.
Carvalho, L. Belluzzo: motor quebrou e Levy quer arrumar a lataria. In: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Belluzzo-motor-quebrou-e-Levy-quer-arrumar-a-lataria/7/33683. Acesso em 01.07.2015.
Gramsci, A. Quaderni del Carcere, vol. 2, p. 1290.
Silva, M. A. da. Sulla strada del riformismo: il Brasile sotto i governi del PT. In: Marx Ventuno, n. 1 e 2, 2014. Também publicado em português sob o título Na senda do reformismo: o Brasil sob os governos do PT. In: Crítica e sociedade, vol. 3, n, 2, 2013.
Id. Ib.
Gramsci, Quaderno del Carcere, vol 2, p. 962.
Gramsci, A. Quaderni del Carcere, vol.3, p. 1990.
Id. Ib. p. 2032.
Silva, M. A. da. Imperialismo e geopolitica... op. cit.
Lukács, G Pensamento vivido: autobiografia em diálogo: entrevista a I. Eörsi e E. Vezér. São Paulo: Ad Hominem; Viçosa: UFV, 1999, p. 82.
Gramsci, A. Maquiavel, a política e o Estado moderno. 7 ed. Civilização brasileira, 1989, p. 94.

FONTE: escrito por Marcos Aurélio da Silva, professor da UFSC, Florianópolis. Publicado no portal "Vermelho"  (http://www.vermelho.org.br/noticia/266803-1).[pequenos entre colchetes acrescentados por este blog 'democracia&política'].

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