Mangabeira Unger: “O Brasil fervilha de energia humana"
"Ministro e professor da Universidade de Harvard afirma que a construção de um novo caminho nacional é tarefa de toda a nação, e não apenas do governo
Da "AméricaEconomia"
O ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República, Roberto Mangabeira Unger, recebeu a equipe da "AméricaEconomia" para uma entrevista na residência dele, em Boston, nos Estados Unidos. Ele, que se tornou professor da Universidade de Harvard aos 24 anos, comparou o Brasil aos Estados Unidos em termos de potencialidades e afirmou que vivemos uma oportunidade única para darmos um salto para uma nova estratégia de país, que ele detalha na entrevista a seguir:
AméricaEconomia (AE): Qual é a sua formação acadêmica?
Mangabeira Unger (MU): Eu me formei inicialmente em direito na antiga Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro, em 1969. Depois fiz estudos pós-graduados acelerados na Universidade de Harvard, o mestrado e o doutorado. Durante o doutorado, já havia começado a ensinar na Universidade de Harvard, quando tinha 24 anos. Desde então, mantenho vínculo com a universidade, alternando períodos de engajamento em Harvard e no Brasil. Ainda na minha formação, o eixo do meu trabalho teórico não tem sido o direito, embora ele seja um dos campos do meu pensamento, na verdade a minha obra é de filosofia e de pensamento social que atravessa as diferentes humanidades e ciências sociais.
AE: No seu trabalho, o senhor discorre sobre a prática intelectual e diz que é uma constante luta da mente tentar entender o que importa. Como conseguiu trazer seu pensamento para a estrutura acadêmica americana?
MU: Acho até que a cultura acadêmica americana é relativamente generosa, comparada com as outras culturas que existem no mundo, mas toda cultura acadêmica é organizada em torno de disciplinas e dos métodos cristalizados com os quais essas se casam. A meu ver, desde muito jovem, os problemas fundamentais não se acomodam às fronteiras disciplinares, a esses métodos normáticos. Por isso, desde muito cedo, mesmo antes de entrar na universidade, tenho estado em permanente rebelião contra as ideias dominantes na minha época e nos lugares onde eu trabalho. Essa rebeldia permanente é um dos traços mais constantes da minha experiência.
AE: Como dialogam as funções de professor de Harvard e de ministro?
MU: O filósofo Hegel [Georg Wilhelm Friedrich Hegel - 1770-1831] observou a impossibilidade de conciliar uma vida de pensamento com uma de ação. É a única tragédia remanescente naquilo que ele chamou de mundo burguês. Eu acredito que essa tragédia pode ser resolvida com sorte, com etapas de vida e de engajamento. Ninguém muda o mundo só com ideias, mas sem ideias não se muda o mundo. O que é difícil, mas indispensável, é fazer o casamento das ideias com o cotidiano dos embates. O bom para mim é que o Brasil é um país singularmente disponível. Não é acostumado a pensar no longo prazo, não é confortável com doutrinas, mas é despido de preconceitos em relação às mensagens de transformação. Há uma barreira imposta muito pelos partidos políticos e pela mídia, mas não há uma barreira imposta pelos brasileiros. Tenho viajado o país todo. Na minha última passagem, andei todos os estados, até o interior do interior. Discuti com gente de todas as classes sociais, dos burocratas aos moradores de favelas. Nunca senti uma muralha. O país está aberto, buscando e sedento de um caminho. E olha que eu sou um caso difícil. Outro dia disse na televisão que me sinto um homem sem charme em um país de charmosos.
AE: O senhor escolheu o PT ou o PT escolheu o senhor?
MU: Eu nunca estive no PT. Eu não sou filiado ao PT. O PT é um partido ao qual jamais me filiei e na verdade o critiquei publicamente em diversas ocasiões. O meu primeiro engajamento partidário no Brasil foi na época de resistência ao regime militar. Nos primeiros sinais da democratização, me apresentei ao MDB, que era a frente comum da oposição democrática, e trabalhei com a oposição e diretamente com Ulysses Guimarães e os senadores e deputados do MDB. Quando o regime promoveu a dissolução dos partidos, eu vim a trabalhar pela formação do partido sucessor, que veio a ser o PMDB. Sou um dos fundadores do partido e sou o autor do manifesto de fundação. Quando este passou a se desfigurar, a transitar não só para a direita, mas para uma falta de compromisso programático, eu me desliguei do partido e me filiei por muitos anos ao PDT, onde trabalhei com Leonel Brizola e onde vim a encontrar Dilma Rousseff, a atual presidente, e compartilhávamos as mesmas críticas ao PT. Desde então, como todas as pessoas seriamente comprometidas com o Brasil, vivo frustrado com as opções partidárias que temos. O quadro partidário é inorgânico e até anárquico. Nós não temos partidos ainda no Brasil capazes de representar uma verdadeira alternativa. Embora tenhamos muitos partidos, na verdade, na política brasileira temos tido no período histórico recente uma só ideia que eu chamei em certa ocasião de Suécia Tropical, uma versão fantasiada da social democracia escandinava. A ideia é que a missão da política é dourar a pílula do modelo econômico, daí que quase todo mundo da política brasileira professa ser algum tipo de social democrata ou social liberal. O que é o social? O social é o açúcar com que os políticos se apresentam para adoçar uma estrutura que não conseguem imaginar ou transformar. E eu me rebelei desde cedo contra essa doutrina do açúcar, creio que o povo brasileiro não quer açúcar, quer instrumentos e oportunidades para aprender, para trabalhar, para produzir. Aceita o açúcar na falta de outra coisa, mas não é isso o que quer.
AE: A sociedade também é responsável pela crise que estamos vivendo?
MU: O que acontece no nosso país é que há uma descrença na política. O povo brasileiro não acredita, em geral, nos políticos e nos partidos. E é muito compreensível que haja essa descrença, porque o discurso político dominante em todas as correntes é mentiroso e ilusório, que não enfrenta os problemas estruturais do país. Nós, entretanto, não vivemos na Suíça ou na Dinamarca, no nosso país tudo continua a depender do encaminhamento coletivo, de soluções coletivas para problemas coletivos. Portanto, nós precisamos desesperadamente de política e temos que passar para a desilusão da desilusão.
AE: Então, podemos atribuir aos políticos uma boa parte da responsabilidade pela má situação econômica?
MU: Há sobretudo entre os progressistas uma confusão conceitual, que não é brasileira, é mundial. Em geral, as esquerdas, os partidos de centro-esquerda ou que se identificam como progressistas perderam a fé no estatismo e aí evoluíram para políticas de humanização das estruturas existentes, sobretudo as de redistribuição compensatória da renda. E descobriram que elas não bastam para resolver os problemas da sociedade, daí a grande confusão. Para o estatismo, é inaceitável. E as políticas contra-cíclicas e compensatórias são insuficientes. O que fazer? Em geral, os progressistas do mundo estão perdidos, se perguntando qual é o projeto deles. A resposta é que o projeto deles é o projeto de seus adversários conservadores, com um desconto. Então, eles se apresentam no palco da história contemporânea como os humanizadores do inevitável. Essa é a confusão mundial. No momento, temos no Brasil uma variante dessa confusão mundial e é essa variante que avança sob o manto da doutrina do social, da Suécia Tropical. Agora, não presta este discurso para enfrentar problemas reais do país. Seguimos até aqui o modelo de crescimento econômico de desenvolvimento nacional, que conseguiu grandes conquistas e que agora está exaurido, baseado na produção e exportação de commodities e na popularização do consumo, com aumento da renda popular e do acesso ao consumo. Criamos um mercado de consumo em massa, resgatamos milhões de pessoas da pobreza extrema, diminuímos a desigualdade do país e assistimos a um fenômeno social extraordinário, que é o surgimento, ao lado da classe média tradicional, de uma pequena burguesia empreendedora mestiça, morena, de milhões de pessoas vindas de baixo que lutam para abrir e manter pequenos negócios, que estudam à noite e que inauguram no país uma cultura de autoajuda e de iniciativa. Atrás dessa burguesia empreendedora, está uma multidão ainda maior, de trabalhadores ainda pobres, que chamamos os batalhadores, que às vezes mantêm dois ou três empregos e, apesar de ainda pobres, aderiram a essa cultura de autoajuda e iniciativa. A maioria trabalhadora do Brasil quer seguir o caminho da vanguarda de emergentes.
AE: E qual a solução?
MU: A grande revolução seria o Estado usar seu poder e recursos para abrir esse caminho da vanguarda de emergentes. Esse modelo conseguiu essas conquistas todas, mas suas fragilidades estavam ocultas enquanto havia muito dinheiro fácil no mundo – o preço das commodities estava lá no alto e a economia chinesa estava crescendo ao máximo, com apetite desenfreado por nossos produtos primários. Quando essas circunstâncias mudaram, ficou exposta a fragilidade desse modelo. Há duas fragilidades em particular que são decisivas para compreender a tarefa que temos pela frente. A primeira fragilidade é que essa estratégia exaurida, apesar de ter conseguido muitos efeitos benéficos, sobretudo na democratização do acesso consumo, coexistiu com um nível muito baixo de produtividade na economia brasileira. Mantivemos a grande maioria dos brasileiros empregados, porém em geral em serviços de baixíssima produtividade. A segunda fragilidade é que essa estratégia não conseguiu resolver o problema do acesso a serviços públicos de alta qualidade. Quando os emergentes conseguiram acesso aos bens de consumo, descobriram que o consumo privado não basta para levar uma vida decente, se não houver acesso a saúde, segurança e educação de qualidade. Aí essa classe média de emergentes teve que escolher entre serviços públicos de qualidade muito baixa e o pagamento da escola privada, do plano de saúde ou da segurança particular. Agora nós temos que, à luz dessas fragilidades, construir uma nova estratégia. Há duas maneiras de entender o propósito do ajuste fiscal. Uma maneira é a doutrina da confiança financeira. O ajuste é necessário para ganhar confiança financeira, que traz investimento e esse produz crescimento. Essa doutrina é falsa, basta olhar a Europa, agora entregue à combinação da austeridade e da estagnação. Há uma outra: a razão do ajuste não é ganhar confiança financeira, é, pelo contrário, não depender dela. Evitar que a economia privada se desorganize e que o potencial de iniciativa estratégica do Estado se anule. O ajuste fiscal, portanto, não é uma agenda nacional, ele é preliminar de uma agenda nacional.
AE: E as altas taxas de juros?
MU: Vamos entender esse problema por partes. A estratégia de desenvolvimento que nós seguimos até agora fez muita coisa de bom, mas teve uma fragilidade mascarada na época do boom dos preços das commodities. Antes, eu lhe disse que uma das fragilidades foi coexistir com um nível muito baixo de produtividade na economia brasileira, mas esse comentário anódino pode ser traduzido em um comentário mais agudo: em vez de investir nas pessoas e nas suas capacitações, nós nos aproveitamos das extraordinárias riquezas naturais do país. E essas riquezas naturais, no agronegócio e na mineração em particular, permitiram uma maneira de escapar do enfrentamento dos problemas das nossas estruturas. Isso não mais serve. Nós conseguimos adiar a solução desse problema e moderar as consequências da exaustão do modelo anterior para a massa trabalhadora do país usando as políticas contracíclicas, as políticas chamadas keynesianas, mas o potencial dessas políticas também se exauriu, daí que vem o imperativo hoje do ajuste fiscal.
AE: Mas e as taxas?
MU: Ninguém contesta que a taxa de juros é inconveniente, mas é preciso compreender que esse alto custo do capital é a expressão de todo o caminho anterior e que ele, ao lado de seus custos, teve grandes benefícios, mas agora nós temos que ter uma inflexão, temos que ter uma mudança de rota. É preciso entender primeiro a lógica do ajuste fiscal e segundo seu conteúdo, para depois falar da configuração da nova estratégia nacional de desenvolvimento.
AE: Qual é, então, a composição adequada de um ajuste fiscal capaz de desempenhar essa função?
MU: Em primeiro lugar, o compromisso duradouro com o realismo fiscal, mesmo sacrificando o emprego das políticas contracíclicas. Em segundo lugar, o uso dessa disciplina fiscal para impor um viés de baixa à taxa de juros ao custo do capital. Não é possível baixar duradouramente os juros sem exercer disciplina fiscal. Em terceiro lugar, permitir que a depreciação cambial faça seu trabalho. A verdade é que, em termos históricos, o real ainda é mais caro do que convém ao país. Agora, há um quarto elemento, que é ainda mais controvertido nos debates: a composição do ajuste fiscal, que tem a ver com a integração da economia brasileira com a economia mundial. Temos historicamente no Brasil um preconceito mercantilista. Exportar é bom e importar é ruim, segundo esse preconceito. A experiência mostra o contrário. As nossas melhores empresas, como a Embraer, importam muito e exportam muito. E nós temos outras empresas, muito menos exitosas, que exportam pouco e importam pouco. Minha tese a esse respeito é que um dos elementos do ajuste fiscal deve ser aumentar a liberdade para importar bens avançados de capital, sobretudo tecnologias avançadas, e eu diria mesmo pelo abandono unilateral de restrições tarifárias e não-tarifárias à importação dessas tecnologias avançadas. Precisamos na nossa economia de um choque de ciência e tecnologia. E isso é muito diferente do que tomar um posicionamento nos debates tradicionais de livre comércio. É uma posição específica com respeito às tecnologias avançadas. Agora, eu insisto, ajuste fiscal não é estratégia, ajuste fiscal é só condição para ter estratégia e aí vamos chegar à discussão dela.
AE: O que dizer do derretimento da indústria brasileira. Qual o verdadeiro motivo do drástico cenário?
MU: O nosso perfil de produção e exportação comercial privilegia cada vez mais a produção e exportação de commodities. Essa ênfase no primário por sua vez promoveu a apreciação cambial, que dificultou ainda mais a situação da indústria. Portanto, uma resposta simples à sua pergunta é que o cerne do problema está na falta de uma escala de produtividade. E o fator acessório que agrava o problema foi a apreciação cambial. Isso junto promoveu uma desindustrialização da economia brasileira. Agora, só para dar um foco mais específico. Nós temos no Brasil uma cultura empreendedora invejável do ponto de vista do engenho e da energia, hoje encarnados em centenas de milhares de pequenas e médias empresas. E isso não tem contrapartida no mundo, pouquíssimos outros países ostentam uma cultura empreendedora desse vigor. Entretanto, a grande maioria das nossas pequenas e médias empresas estão na retaguarda da tecnologia, estão até mesmo afundadas no primitivismo produtivo. Em segundo lugar, mesmo as nossas maiores empresas, porque operam tipicamente no setor de aproveitamento de recursos naturais, costumam ter um espectro estreito de tecnologias e de práticas avançadas em comparação com as disponíveis em um país como a China. E em terceiro lugar, muito especificamente, a nós nos tem faltado a figura importantíssima da média empresa vanguardista. Na maior parte das grandes economias de mercado, as maiores empresas estão cercadas por uma penumbra de empresas menores, porém muito avançadas. É difícil para uma megaempresa acalentar inovações radicais. Essas inovações costumam ocorrer nisso que eu estou chamando de penumbra das empresas menores e mais vanguardistas. E quando prosperam essas inovações, elas são assimiladas pelas maiores empresas e um atalho para a assimilação é a compra da menor pela maior. A nós historicamente nos tem faltando essa penumbra das empresas médias vanguardistas. Para criá-la, nós temos que fomentar o casamento das tecnologias avançadas com planos de negócios direcionados a criar novos mercados, novos produtos, novas demandas. Planos negócios criadores, desestabilizadores, que não apenas reproduzem os padrões de consumo já existentes.
AE: Alguns setores da indústria atribuem a responsabilidade pela queda na produção ao regime tributário.
MU: Não é verdade. Nós, de fato, temos que promover uma mudança tributária no Brasil. Defendo uma reorganização radical do regime tributário. Mas ele existiu, com poucas variações, existiu e existe há muito tempo. Não podemos explicar o processo de desindustrialização pelo ônus tributário, que é duradouro no país. A falta de qualidade do nosso regime tributário não é um fenômeno de agora, portanto não se pode explicar esse processo histórico dessa forma, de maneira alguma. Agora, a implicação dessa análise que eu proponho se revela na proposta. É muito fácil descrever o problema, agora qual a solução? A solução é, a partir do ajuste fiscal entendido da forma como descrevi, construir uma nova estratégia de desenvolvimento no país.
AE: E qual deve ser o esforço?
MU: O que importa é focar no conteúdo de uma nova estratégia, que defina a mudança de rumo necessária ao país. Essa estratégia deve ser calcada na ampliação de oportunidades econômicas e de capacitações educacionais. Deve ser, portanto, uma democratização da economia pelo lado da produção e da oferta, e não mais apenas pelo lado do consumo e da demanda. Uma diferença marcante entre democratizar a economia do lado da demanda e democratizá-la do lado da oferta é que a democratização da demanda se pode fazer só com dinheiro enquanto que a democratização da oferta exige inovações institucionais, inclusive na maneira de organizar uma economia de mercado.
Nós estamos acostumados a resolver os nossos problemas com dinheiro, mas a verdade é que a mais grave ameaça a nosso futuro nacional estaria na falta de ideias capazes de inspirar as inovações institucionais de que precisamos. E é nisso que está agora focado meu trabalho no Estado, trabalhar com a presidente, com os ministros, com os partidos todos, de governo e de oposição, com Estados federados, para definir políticas, iniciativas que representem os primeiros os passos desse modelo de desenvolvimento, que eu caracterizo como um produtivismo capacitador e includente.
O Brasil é o único país no mundo que pode ser comparado aos EUA. Nós temos o mais importante de tudo, que é uma vitalidade assombrosa
AE: Como implementar essa nova estratégia nacional?
MU: O Brasil tem vasto potencial. É um país que fervilha de energia humana, é uma energia em grande parte desequipada e esse tem sido nosso problema. Temos que organizar uma estratégia com três grandes vertentes. Uma vertente é priorizar a qualidade no ensino básico. Nós conseguimos nos últimos anos grandes avanços no acesso a essa etapa escolar, mas a qualidade dela é calamitosa. Essa é uma verdade que tem que ser enfrentada. A segunda vertente dessa estratégia é a propriamente econômica, aquilo que chamo de produtivismo includente. A terceira vertente é a tradução dessa estratégia nacional em políticas e iniciativas para as grandes regiões do país. Não há estratégia realista no Brasil que não se traduza em política regional, e nós não temos uma concepção adequada desse tipo de política. A nossa é um conjunto de compensações para o atraso relativo, mas a verdadeira vocação da política regional é acalentar vanguardas e vanguardismos alternativos no país. Por exemplo, ir ao encontro dos empreendedores emergentes no semiárido nordestino e provê-los de instrumentos e oportunidades. É por isso que a política regional é necessária para todas as regiões do país. O Sudeste não precisa menos do que o Nordeste. Essa estratégia que acabo de esboçar nessas três vertentes é a alternativa à Suécia Tropical. Isso não é dourar a pílula do modelo econômico, isso é dar o que o povo brasileiro deseja: ele quer botar para quebrar, quer criar, produzir e aprender. O Brasil é o único país no mundo que pode ser comparado aos EUA. Nós temos o mais importante de tudo, que é uma vitalidade assombrosa. O Brasil é um caldeirão de energia humana que fervilha. Temos unidade nacional e recursos naturais, e não temos inimigos no mundo. Grande parte dessa energia humana se desperdiça por falta de instrumentos e oportunidades aos brasileiros. Temos que resolver rompendo com o discurso político açucarado e mentiroso e tratando de dar oportunidades. Não é possível fazer isso somente com dinheiro, simplesmente imitando as instituições dos americanos e dos europeus. Só é possível fazer isso inovando, abrindo nosso próprio caminho à luz da experiência mundial, mas com audácia política e imaginação institucional.
AE: A presidente Dilma Rousseff afirmou em seu discurso de posse que a Pátria Educadora é a prioridade do segundo mandado. O senhor cita a qualidade do ensino básico como uma das vertentes da nova estratégia nacional. Como colocar isso em prática?
MU: Há um grande projeto para a educação básica, com quatro elementos. Primeiro é desenhar a cooperação federativa na educação. O governo federal não consegue resolver o problema sozinho, só é possível trabalhando com Estados e municípios. O segundo elemento é reorientar radicalmente o currículo e a maneira de aprender e ensinar. Nós temos tido tradicionalmente uma educação focada em enciclopedismo raso e decoreba e precisamos de um ensino analítico que foque as competências analíticas centrais, como interpretação da palavra escrita e raciocínio lógico e matemático. O terceiro elemento é a qualificação dos nossos professores e diretores. E o quarto é o aproveitamento de tecnologias contemporâneas para acelerar a inovação. E não vai ser fácil, vai ser uma luta que vai enfrentar interesses corporativos arraigados e preconceitos influentes.
AE: O que é o produtivismo includente, que o senhor coloca como a segunda vertente da nova estratégia nacional?
MU: Ele pode ser dividido em três capítulos. O primeiro é a promoção de um empreendedorismo vanguardista em todos os setores - indústria, serviços e agricultura -, sobretudo tomando como destinatário aquilo que eu chamei de empresa média vanguardista, mas procurando subverter o nível de práticas e de tecnologias tanto nas pequenas empresas como nas maiores. Isso não pode ser feito simplesmente por uma política de crédito subsidiado, isso exige um desenho muito mais complexo e ambicioso, que junte acesso ao capital, à tecnologia e a aprendizagem de práticas avançadas. Não pode ser apenas uma política de crédito subsidiado.
O segundo capítulo tem a ver com as relações entre o trabalho e o capital. Nos últimos anos no Brasil, a informalidade diminuiu, mas dentro da economia formal a precarização aumentou. É um fenômeno não apenas brasileiro, mas mundial. O surgimento de novas formas de produção divide o processo produtivo em componentes a nível global e organiza o trabalho por meio de relações descentralizadas. Surge, então, um número crescente de trabalhadores terceirizados, temporários ou com autoemprego, não efetivamente protegidos pela lei. Nós corremos o risco de ver no país uma divisão entre duas classes de trabalhadores, um novo dualismo no mercado de trabalho. De um lado, os relativamente estáveis trabalhando em setores intensivos em capital e, de outro, os precarizados. O Brasil não pode prosperar apostando em trabalho barato, desqualificado e precarizado. Como os países de renda média, nós estamos em uma prensa entre economias de trabalho barato e economias de produtividade alta e o nosso interesse é escapar pelo alto, pela escalada de produtividade. Uma das condições para isso é reverter a dinâmica da precarização, daí a necessidade de criar um novo corpo de leis de trabalho que complemente as leis existentes, que proteja, organize e represente esses trabalhadores precarizados.
O terceiro capítulo desse produtivismo includente tem a ver com o marco legal e tributário da atividade produtiva. Eu tenho dado o exemplo do direito ambiental. O processo de licenciamento ambiental é um pesadelo para os produtores de todas as escalas no Brasil, mas o país não compreende qual é o problema. O problema não é que nosso direito ambiental seja exigente demais, o problema é que a rigor não existe direito ambiental. Existe um direito quase inteiramente processual, que delega poderes discricionários aos pequenos potentados administrativos, que por sua vez viram um joguete de lutas entre ideologias e entre interesses. Não há regras, por exemplo, que distinguam claramente entre o tratamento das áreas antropizadas e das áreas virgens. De igual forma a nossa legislação de controle confiadas aos tribunais de contas está nas mãos de uma cultura de desconfiança que engessa a produção e os atos administrativos. Nós precisamos quebrar todas essas travas ao impulso produtivista. Nós precisamos criar um marco legal que não sufoque a produção. Sobre o regime tributário, quase todas as economias avançadas estão organizando o regime tributário em torno do IVA, um imposto neutro e abrangente sobre o valor agregado que não distorce os preços relativos e não promove a guerra fiscal entre os estados. É um imposto regressivo, é verdade, mas que permite uma alta receita pública sem distorcer os preços relativos ou desorganizar os incentivos econômicos. E aquilo que se perde de progressividade do lado da arrecadação se pode ganhar no momento do gasto. É claro que esse imposto teria que ser complementado com outros explicitamente progressivos, por exemplo, um imposto sobre o consumo individualizado, baseado na hierarquia de padrões de vida.
AE: Os tributos devem aumentar. O senhor não acha que é incoerente?
MU: Olha, vamos voltar um passo atrás. Nós temos três grandes tarefas de construção nacional. Uma é capacitar os brasileiros. Se continuarmos a ter um ensino público com a qualidade de nosso ensino, a verdade é que a única coisa que podemos fazer é exportar soja e minério de ferro. A segunda tarefa que temos é democratizar as atividades econômicas e permitir que esta cultura empreendedora vibrante que temos no Brasil saia do primitivismo produtivo em que continua largamente afundada. A terceira tarefa é aprofundar a democracia brasileira e criar instituições políticas que não precisem de crises para permitir mudanças, mas não é uma tarefa para agora, não é uma tarefa para este momento histórico. Muita gente diz que a reforma política é a mãe de todas as reformas. Eu digo, pelo contrário, que nenhum país reforma suas instituições políticas para depois decidir o que fazer com elas. A reforma das instituições políticas ocorre só no meio de uma luta para mudar o caminho econômico e social do país. O país reforma suas instituições políticas quando precisa mudá-las. Agora, há uma exceção a esse princípio, de fazer a grande transformação política em um segundo momento: a necessidade premente de tirar a política da sombra corruptora do dinheiro. E a chave para isso é reordenar as regras de financiamento eleitoral e das campanhas políticas, não permitindo o financiamento empresarial e exigindo a simplificação das campanhas. Por exemplo, nada de truques cinematográficos na televisão, como instrumentos de campanha política porque aí é que vai o dinheiro das relações escusas entre os partidos e as empresas.
AE: Como o senhor analisa as relações de trabalho no país, agora que se discute um projeto que regulamenta a terceirização?
MU: Essa é uma grande tarefa que agora causa perplexidade em todo mundo. O paradigma de produção nas economias mais avançadas do mundo de meados do século XIX a meados do século XX foi aquilo que chamamos de fordismo industrial. A produção em grande escala de bens e serviços padronizados com maquinários e processos produtivos e relações de trabalho muito hierárquicas e muito especializadas. Esse paradigma de produção sustentava a reunião de um corpo estável de trabalhadores em grandes unidades produtivas como as fábricas, sob a égide de grandes empresas. Antes disso, a produção não era organizada assim. Antes do século XIX, era organizada na forma de contratos descentralizados. O chamado capitalista, por exemplo, dava a máquina e a matéria-prima para a pessoa, que trabalhava em casa com sua família e com seus amigos. Isso até se pode ver em Pernambuco hoje. Agora, a produção volta a ser organizada dessa forma, mas em nível mundial. O processo produtivo é decomposto em elementos e esses elementos são subcontratados para equipes de pessoas em diferentes partes do mundo. Aquilo que considerávamos natural, que é a força de trabalho estável na unidade produtiva, retrospectivamente pode parecer apenas um intervalo relativamente transitório entre duas longas épocas em que o trabalho é organizado de forma descentralizada e contratual. É isso que está acontecendo hoje e é isso que resulta no fenômeno da precarização. Os trabalhadores que estão em relações contratuais de contratos de trabalho terceirizado e temporário não estão na situação clássica do trabalho. Diante desse fenômeno, há duas posições convencionais. Uma delas, a das lideranças sindicais e da elite da justiça do trabalho, diz que são uma mera evasão fraudulenta das leis trabalhistas e tenta reprimir as relações contratuais. Não é realista porque é um fenômeno que está ocorrendo em todo o mundo, irreversível, que resulta de uma renovação das práticas de produção. A segunda posição convencional é dizer que essa nova realidade tem que ser aceita sem qualquer antídoto ou qualquer direito. Sob a égide do eufemismo da "flexibilidade", ameaça jogar os trabalhadores em uma insegurança econômica radical. É necessário desenvolver uma terceira posição, que não é uma síntese das outras duas, é uma outra abordagem. Essas mudanças na realidade de trabalho são irreversíveis, mas exigem um novo direito para governar, que reconheça as legitimidades das relações, mas as governe protegendo, organizando e representando esses trabalhadores e impedindo que sejam jogados em uma insegurança econômica radical. Jogá-los nessa insegurança é incompatível com a aposta na escalada da produtividade. Nenhum país pode organizar uma escala de produtividade e um choque de ciência e tecnologia com uma massa de trabalho barato e aviltado. Deixe-me só relacionar com uma questão central de política industrial para o país. Isso que eu chamei de fordismo, que é a produção padronizada em grande escala com maquinário rígido, é o centro de industrialização brasileira no século XX. O parque industrial foi estabelecido no sudeste do país. Alcançou padrões de excelência fabril, mas se mantém competitivo no mundo à base de uma grande restrição de retorno ao fator trabalho. Nós temos duas tarefas de reorientação industrial. Uma é conhecida e relativamente mais fácil. Outra ainda é incompreendida e é muito mais difícil e importante. A tarefa mais fácil é, dentro dos centros industriais do país, acelerar a transformação rumo a uma economia flexível, dedicada à inovação permanente e densa em conhecimento. Mas há uma outra tarefa, que é fora dos centros industriais do país: organizar uma travessia direta do pré-fordismo industrial ao pós-fordismo. De uma economia artesanal para uma economia densa em conhecimento. Para que o país não tenha de penar no purgatório de um fordismo industrial tardio. Parece abstração, mas tem um significado muito concreto. É dizer que o país todo não deve ter que virar a São Paulo do século passado para depois virar outra coisa.
AE: O Brasil é o país com mais escolas de direito do mundo. O senhor não acha que o governo falhou por não estimular outras profissões?
MU: Isso não é verdade. Isso não é uma política de governo. Há 200 anos se diz que o Brasil é país dos bacharéis. A classe média tradicional é o agente político do Brasil mais importante desde o Império e foi uma classe historicamente voltada para o emprego público e, para este, tradicionalmente a formação mais sutil foi o direito. Foi assim sempre. Não é uma política de governo. Qual é a solução para isso? Em primeiro lugar e fundamentalmente, a construção da nova estratégia de desenvolvimento que radicalmente amplie as oportunidades econômicas. Em segundo lugar, a solução para isso é construir no Brasil um conjunto de universidades de referência mundial. Nós ainda não temos. Se o Brasil se tornar um grande país sem ter uma grande universidade, será o primeiro caso no mundo. Isso nunca aconteceu.
AE: Como foi o convite para participar do governo Lula? Com quem o senhor se sente mais confortável: Lula ou Dilma?
MU: Eu havia sido um crítico severo do presidente Lula no seu primeiro mandato, mas o presidente, com grande magnanimidade, me fez um apelo para que eu trabalhasse com ele pelo futuro do país, na construção do novo caminho. E eu atendi a esse apelo e com o presidente Lula no governo só tive boas experiências. O presidente abriu o coração e a cabeça e me permitiu trabalhar muito amplamente. Eu me lancei a toda uma série de iniciativas na pasta criada quando entrei, de assuntos estratégicos. É uma pasta incompreendida na nossa política porque nós não temos uma prática de construir projetos de estado, tudo na nossa política é costumeiramente curto-prazista. Muita coisa falta no Brasil, mas o que falta mais é uma ideia clara das alternativas nacionais. Eu quis na pasta de assuntos estratégicos identificar uma série de iniciativas que prefigurassem um outro futuro para o Brasil, que rompesse com essa doutrina do açúcar da Suécia Tropical e que focasse no que mais importa, que é a democratização das capacitações e das oportunidades. E comecei o trabalho, um trabalho de largo fôlego. Não é um trabalho que possa ser executado em um único momento. A crise da estratégia de desenvolvimento que nós viemos seguindo na história recente do país criou uma oportunidade mais ampla, para avançar no projeto que eu creio necessário e com o qual o governo está comprometido, o governo Dilma Rousseff. Sobre as personalidades, elas não apenas são diferentes, mas estão também circunstâncias diferentes. Eu conheço a presidente Dilma há mais de 35 anos e sinto uma afinidade muito grande com ela. Tenho uma personalidade diferente da do presidente Lula. E cada um tem a sua. E uma das coisas que eu descobri nas minhas experiências de engajamento é que é mais fácil mudar um país que mudar uma pessoa. Então, não considero que minha tarefa tenha sido mudar o presidente Lula ou a presidente Dilma, foi apenas tentar mudar o Brasil.
AE: Como o senhor analisa a composição do governo atual?
MU: A construção de um novo caminho nacional é uma tarefa de toda a nação, não apenas do governo. O Brasil tem um governo que está lutando para abrir o caminho, mas só vamos abrir com uma luta empreendida por todos os brasileiros. É um grande momento, um momento mágico na história brasileira. Pode suscitar desalento, mas é um momento em que nós estamos à beira de um novo caminho. Quando o Brasil sentir que é possível transformar o espontaneísmo em culto, em flexibilidade preparada e esta nossa vitalidade anárquica ganhar como aliada a imaginação institucional. A vitalidade se transformará em grandeza para o Brasil e para cada brasileiro ficar de pé. E é isso que eu quero.
AE: O que o senhor almeja?
MU: O que eu sempre quero na vida é mágica. A vida é o bem supremo. A vida com amor e com inspiração. E o que nós todos devemos querer é nos tornar mais divinos, mais parecidos ao Deus real ou imaginado, sobretudo pelo cultivo do atributo mais importante para a humanidade, que é a transcendência. Nós somos sempre maiores que os mundos sociais ou conceituais que habitamos. Nós extravasamos. Há mais em nós do que há nestes mundos. E essa diferença é que nos faz divinos.
Breves considerações
BRICS
A vocação dos BRICS não é buscar posição melhor dentro da ordem mundial. É lutar por uma revisão da ordem mundial existente.
Petrobras
É um elemento precioso de nossa estratégia nacional e tem tudo para superar as dificuldades
Embraer
Exemplo de uma grande empresa que saiu do complexo industrial da defesa e baseada no nosso compromisso com a ciência e a tecnologia. Precisamos de muitas companhias como esta.
JBS
Precisamos fomentar a industrialização dos produtos agropecuários, sem dúvida, mas precisamos cuidar para que essa industrialização não promova a formação de cartéis ou oligopólios que destruam a classe empreendedora nascente na agropecuária brasileira em diferentes regiões do país.
BNDES
Cada vez mais a vocação dele será trabalhar com todas as empresas de todas a escalas. E cada vez dependerá menos do crédito subsidiado e mais da facilitação de um crédito de longo prazo para todas as empresas.
Fernando Henrique Cardoso
Um homem que combina seriedade intelectual [sic!...] e vocação pública , mas de cujas ideias divirjo fundamentalmente."
FONTE: da "América Economia". Transcrito no "Jornal GGN" (http://jornalggn.com.br/noticia/mangabeira-unger-%E2%80%9Co-brasil-fervilha-de-energia-humana).[Pequeno entre colchetes no final acrescentado por este blog]
O Brasil é o único país no mundo que pode ser comparado aos EUA. Nós temos o mais importante de tudo, que é uma vitalidade assombrosa
AE: Como implementar essa nova estratégia nacional?
MU: O Brasil tem vasto potencial. É um país que fervilha de energia humana, é uma energia em grande parte desequipada e esse tem sido nosso problema. Temos que organizar uma estratégia com três grandes vertentes. Uma vertente é priorizar a qualidade no ensino básico. Nós conseguimos nos últimos anos grandes avanços no acesso a essa etapa escolar, mas a qualidade dela é calamitosa. Essa é uma verdade que tem que ser enfrentada. A segunda vertente dessa estratégia é a propriamente econômica, aquilo que chamo de produtivismo includente. A terceira vertente é a tradução dessa estratégia nacional em políticas e iniciativas para as grandes regiões do país. Não há estratégia realista no Brasil que não se traduza em política regional, e nós não temos uma concepção adequada desse tipo de política. A nossa é um conjunto de compensações para o atraso relativo, mas a verdadeira vocação da política regional é acalentar vanguardas e vanguardismos alternativos no país. Por exemplo, ir ao encontro dos empreendedores emergentes no semiárido nordestino e provê-los de instrumentos e oportunidades. É por isso que a política regional é necessária para todas as regiões do país. O Sudeste não precisa menos do que o Nordeste. Essa estratégia que acabo de esboçar nessas três vertentes é a alternativa à Suécia Tropical. Isso não é dourar a pílula do modelo econômico, isso é dar o que o povo brasileiro deseja: ele quer botar para quebrar, quer criar, produzir e aprender. O Brasil é o único país no mundo que pode ser comparado aos EUA. Nós temos o mais importante de tudo, que é uma vitalidade assombrosa. O Brasil é um caldeirão de energia humana que fervilha. Temos unidade nacional e recursos naturais, e não temos inimigos no mundo. Grande parte dessa energia humana se desperdiça por falta de instrumentos e oportunidades aos brasileiros. Temos que resolver rompendo com o discurso político açucarado e mentiroso e tratando de dar oportunidades. Não é possível fazer isso somente com dinheiro, simplesmente imitando as instituições dos americanos e dos europeus. Só é possível fazer isso inovando, abrindo nosso próprio caminho à luz da experiência mundial, mas com audácia política e imaginação institucional.
AE: A presidente Dilma Rousseff afirmou em seu discurso de posse que a Pátria Educadora é a prioridade do segundo mandado. O senhor cita a qualidade do ensino básico como uma das vertentes da nova estratégia nacional. Como colocar isso em prática?
MU: Há um grande projeto para a educação básica, com quatro elementos. Primeiro é desenhar a cooperação federativa na educação. O governo federal não consegue resolver o problema sozinho, só é possível trabalhando com Estados e municípios. O segundo elemento é reorientar radicalmente o currículo e a maneira de aprender e ensinar. Nós temos tido tradicionalmente uma educação focada em enciclopedismo raso e decoreba e precisamos de um ensino analítico que foque as competências analíticas centrais, como interpretação da palavra escrita e raciocínio lógico e matemático. O terceiro elemento é a qualificação dos nossos professores e diretores. E o quarto é o aproveitamento de tecnologias contemporâneas para acelerar a inovação. E não vai ser fácil, vai ser uma luta que vai enfrentar interesses corporativos arraigados e preconceitos influentes.
AE: O que é o produtivismo includente, que o senhor coloca como a segunda vertente da nova estratégia nacional?
MU: Ele pode ser dividido em três capítulos. O primeiro é a promoção de um empreendedorismo vanguardista em todos os setores - indústria, serviços e agricultura -, sobretudo tomando como destinatário aquilo que eu chamei de empresa média vanguardista, mas procurando subverter o nível de práticas e de tecnologias tanto nas pequenas empresas como nas maiores. Isso não pode ser feito simplesmente por uma política de crédito subsidiado, isso exige um desenho muito mais complexo e ambicioso, que junte acesso ao capital, à tecnologia e a aprendizagem de práticas avançadas. Não pode ser apenas uma política de crédito subsidiado.
O segundo capítulo tem a ver com as relações entre o trabalho e o capital. Nos últimos anos no Brasil, a informalidade diminuiu, mas dentro da economia formal a precarização aumentou. É um fenômeno não apenas brasileiro, mas mundial. O surgimento de novas formas de produção divide o processo produtivo em componentes a nível global e organiza o trabalho por meio de relações descentralizadas. Surge, então, um número crescente de trabalhadores terceirizados, temporários ou com autoemprego, não efetivamente protegidos pela lei. Nós corremos o risco de ver no país uma divisão entre duas classes de trabalhadores, um novo dualismo no mercado de trabalho. De um lado, os relativamente estáveis trabalhando em setores intensivos em capital e, de outro, os precarizados. O Brasil não pode prosperar apostando em trabalho barato, desqualificado e precarizado. Como os países de renda média, nós estamos em uma prensa entre economias de trabalho barato e economias de produtividade alta e o nosso interesse é escapar pelo alto, pela escalada de produtividade. Uma das condições para isso é reverter a dinâmica da precarização, daí a necessidade de criar um novo corpo de leis de trabalho que complemente as leis existentes, que proteja, organize e represente esses trabalhadores precarizados.
O terceiro capítulo desse produtivismo includente tem a ver com o marco legal e tributário da atividade produtiva. Eu tenho dado o exemplo do direito ambiental. O processo de licenciamento ambiental é um pesadelo para os produtores de todas as escalas no Brasil, mas o país não compreende qual é o problema. O problema não é que nosso direito ambiental seja exigente demais, o problema é que a rigor não existe direito ambiental. Existe um direito quase inteiramente processual, que delega poderes discricionários aos pequenos potentados administrativos, que por sua vez viram um joguete de lutas entre ideologias e entre interesses. Não há regras, por exemplo, que distinguam claramente entre o tratamento das áreas antropizadas e das áreas virgens. De igual forma a nossa legislação de controle confiadas aos tribunais de contas está nas mãos de uma cultura de desconfiança que engessa a produção e os atos administrativos. Nós precisamos quebrar todas essas travas ao impulso produtivista. Nós precisamos criar um marco legal que não sufoque a produção. Sobre o regime tributário, quase todas as economias avançadas estão organizando o regime tributário em torno do IVA, um imposto neutro e abrangente sobre o valor agregado que não distorce os preços relativos e não promove a guerra fiscal entre os estados. É um imposto regressivo, é verdade, mas que permite uma alta receita pública sem distorcer os preços relativos ou desorganizar os incentivos econômicos. E aquilo que se perde de progressividade do lado da arrecadação se pode ganhar no momento do gasto. É claro que esse imposto teria que ser complementado com outros explicitamente progressivos, por exemplo, um imposto sobre o consumo individualizado, baseado na hierarquia de padrões de vida.
AE: Os tributos devem aumentar. O senhor não acha que é incoerente?
MU: Olha, vamos voltar um passo atrás. Nós temos três grandes tarefas de construção nacional. Uma é capacitar os brasileiros. Se continuarmos a ter um ensino público com a qualidade de nosso ensino, a verdade é que a única coisa que podemos fazer é exportar soja e minério de ferro. A segunda tarefa que temos é democratizar as atividades econômicas e permitir que esta cultura empreendedora vibrante que temos no Brasil saia do primitivismo produtivo em que continua largamente afundada. A terceira tarefa é aprofundar a democracia brasileira e criar instituições políticas que não precisem de crises para permitir mudanças, mas não é uma tarefa para agora, não é uma tarefa para este momento histórico. Muita gente diz que a reforma política é a mãe de todas as reformas. Eu digo, pelo contrário, que nenhum país reforma suas instituições políticas para depois decidir o que fazer com elas. A reforma das instituições políticas ocorre só no meio de uma luta para mudar o caminho econômico e social do país. O país reforma suas instituições políticas quando precisa mudá-las. Agora, há uma exceção a esse princípio, de fazer a grande transformação política em um segundo momento: a necessidade premente de tirar a política da sombra corruptora do dinheiro. E a chave para isso é reordenar as regras de financiamento eleitoral e das campanhas políticas, não permitindo o financiamento empresarial e exigindo a simplificação das campanhas. Por exemplo, nada de truques cinematográficos na televisão, como instrumentos de campanha política porque aí é que vai o dinheiro das relações escusas entre os partidos e as empresas.
AE: Como o senhor analisa as relações de trabalho no país, agora que se discute um projeto que regulamenta a terceirização?
MU: Essa é uma grande tarefa que agora causa perplexidade em todo mundo. O paradigma de produção nas economias mais avançadas do mundo de meados do século XIX a meados do século XX foi aquilo que chamamos de fordismo industrial. A produção em grande escala de bens e serviços padronizados com maquinários e processos produtivos e relações de trabalho muito hierárquicas e muito especializadas. Esse paradigma de produção sustentava a reunião de um corpo estável de trabalhadores em grandes unidades produtivas como as fábricas, sob a égide de grandes empresas. Antes disso, a produção não era organizada assim. Antes do século XIX, era organizada na forma de contratos descentralizados. O chamado capitalista, por exemplo, dava a máquina e a matéria-prima para a pessoa, que trabalhava em casa com sua família e com seus amigos. Isso até se pode ver em Pernambuco hoje. Agora, a produção volta a ser organizada dessa forma, mas em nível mundial. O processo produtivo é decomposto em elementos e esses elementos são subcontratados para equipes de pessoas em diferentes partes do mundo. Aquilo que considerávamos natural, que é a força de trabalho estável na unidade produtiva, retrospectivamente pode parecer apenas um intervalo relativamente transitório entre duas longas épocas em que o trabalho é organizado de forma descentralizada e contratual. É isso que está acontecendo hoje e é isso que resulta no fenômeno da precarização. Os trabalhadores que estão em relações contratuais de contratos de trabalho terceirizado e temporário não estão na situação clássica do trabalho. Diante desse fenômeno, há duas posições convencionais. Uma delas, a das lideranças sindicais e da elite da justiça do trabalho, diz que são uma mera evasão fraudulenta das leis trabalhistas e tenta reprimir as relações contratuais. Não é realista porque é um fenômeno que está ocorrendo em todo o mundo, irreversível, que resulta de uma renovação das práticas de produção. A segunda posição convencional é dizer que essa nova realidade tem que ser aceita sem qualquer antídoto ou qualquer direito. Sob a égide do eufemismo da "flexibilidade", ameaça jogar os trabalhadores em uma insegurança econômica radical. É necessário desenvolver uma terceira posição, que não é uma síntese das outras duas, é uma outra abordagem. Essas mudanças na realidade de trabalho são irreversíveis, mas exigem um novo direito para governar, que reconheça as legitimidades das relações, mas as governe protegendo, organizando e representando esses trabalhadores e impedindo que sejam jogados em uma insegurança econômica radical. Jogá-los nessa insegurança é incompatível com a aposta na escalada da produtividade. Nenhum país pode organizar uma escala de produtividade e um choque de ciência e tecnologia com uma massa de trabalho barato e aviltado. Deixe-me só relacionar com uma questão central de política industrial para o país. Isso que eu chamei de fordismo, que é a produção padronizada em grande escala com maquinário rígido, é o centro de industrialização brasileira no século XX. O parque industrial foi estabelecido no sudeste do país. Alcançou padrões de excelência fabril, mas se mantém competitivo no mundo à base de uma grande restrição de retorno ao fator trabalho. Nós temos duas tarefas de reorientação industrial. Uma é conhecida e relativamente mais fácil. Outra ainda é incompreendida e é muito mais difícil e importante. A tarefa mais fácil é, dentro dos centros industriais do país, acelerar a transformação rumo a uma economia flexível, dedicada à inovação permanente e densa em conhecimento. Mas há uma outra tarefa, que é fora dos centros industriais do país: organizar uma travessia direta do pré-fordismo industrial ao pós-fordismo. De uma economia artesanal para uma economia densa em conhecimento. Para que o país não tenha de penar no purgatório de um fordismo industrial tardio. Parece abstração, mas tem um significado muito concreto. É dizer que o país todo não deve ter que virar a São Paulo do século passado para depois virar outra coisa.
AE: O Brasil é o país com mais escolas de direito do mundo. O senhor não acha que o governo falhou por não estimular outras profissões?
MU: Isso não é verdade. Isso não é uma política de governo. Há 200 anos se diz que o Brasil é país dos bacharéis. A classe média tradicional é o agente político do Brasil mais importante desde o Império e foi uma classe historicamente voltada para o emprego público e, para este, tradicionalmente a formação mais sutil foi o direito. Foi assim sempre. Não é uma política de governo. Qual é a solução para isso? Em primeiro lugar e fundamentalmente, a construção da nova estratégia de desenvolvimento que radicalmente amplie as oportunidades econômicas. Em segundo lugar, a solução para isso é construir no Brasil um conjunto de universidades de referência mundial. Nós ainda não temos. Se o Brasil se tornar um grande país sem ter uma grande universidade, será o primeiro caso no mundo. Isso nunca aconteceu.
AE: Como foi o convite para participar do governo Lula? Com quem o senhor se sente mais confortável: Lula ou Dilma?
MU: Eu havia sido um crítico severo do presidente Lula no seu primeiro mandato, mas o presidente, com grande magnanimidade, me fez um apelo para que eu trabalhasse com ele pelo futuro do país, na construção do novo caminho. E eu atendi a esse apelo e com o presidente Lula no governo só tive boas experiências. O presidente abriu o coração e a cabeça e me permitiu trabalhar muito amplamente. Eu me lancei a toda uma série de iniciativas na pasta criada quando entrei, de assuntos estratégicos. É uma pasta incompreendida na nossa política porque nós não temos uma prática de construir projetos de estado, tudo na nossa política é costumeiramente curto-prazista. Muita coisa falta no Brasil, mas o que falta mais é uma ideia clara das alternativas nacionais. Eu quis na pasta de assuntos estratégicos identificar uma série de iniciativas que prefigurassem um outro futuro para o Brasil, que rompesse com essa doutrina do açúcar da Suécia Tropical e que focasse no que mais importa, que é a democratização das capacitações e das oportunidades. E comecei o trabalho, um trabalho de largo fôlego. Não é um trabalho que possa ser executado em um único momento. A crise da estratégia de desenvolvimento que nós viemos seguindo na história recente do país criou uma oportunidade mais ampla, para avançar no projeto que eu creio necessário e com o qual o governo está comprometido, o governo Dilma Rousseff. Sobre as personalidades, elas não apenas são diferentes, mas estão também circunstâncias diferentes. Eu conheço a presidente Dilma há mais de 35 anos e sinto uma afinidade muito grande com ela. Tenho uma personalidade diferente da do presidente Lula. E cada um tem a sua. E uma das coisas que eu descobri nas minhas experiências de engajamento é que é mais fácil mudar um país que mudar uma pessoa. Então, não considero que minha tarefa tenha sido mudar o presidente Lula ou a presidente Dilma, foi apenas tentar mudar o Brasil.
AE: Como o senhor analisa a composição do governo atual?
MU: A construção de um novo caminho nacional é uma tarefa de toda a nação, não apenas do governo. O Brasil tem um governo que está lutando para abrir o caminho, mas só vamos abrir com uma luta empreendida por todos os brasileiros. É um grande momento, um momento mágico na história brasileira. Pode suscitar desalento, mas é um momento em que nós estamos à beira de um novo caminho. Quando o Brasil sentir que é possível transformar o espontaneísmo em culto, em flexibilidade preparada e esta nossa vitalidade anárquica ganhar como aliada a imaginação institucional. A vitalidade se transformará em grandeza para o Brasil e para cada brasileiro ficar de pé. E é isso que eu quero.
AE: O que o senhor almeja?
MU: O que eu sempre quero na vida é mágica. A vida é o bem supremo. A vida com amor e com inspiração. E o que nós todos devemos querer é nos tornar mais divinos, mais parecidos ao Deus real ou imaginado, sobretudo pelo cultivo do atributo mais importante para a humanidade, que é a transcendência. Nós somos sempre maiores que os mundos sociais ou conceituais que habitamos. Nós extravasamos. Há mais em nós do que há nestes mundos. E essa diferença é que nos faz divinos.
Breves considerações
BRICS
A vocação dos BRICS não é buscar posição melhor dentro da ordem mundial. É lutar por uma revisão da ordem mundial existente.
Petrobras
É um elemento precioso de nossa estratégia nacional e tem tudo para superar as dificuldades
Embraer
Exemplo de uma grande empresa que saiu do complexo industrial da defesa e baseada no nosso compromisso com a ciência e a tecnologia. Precisamos de muitas companhias como esta.
JBS
Precisamos fomentar a industrialização dos produtos agropecuários, sem dúvida, mas precisamos cuidar para que essa industrialização não promova a formação de cartéis ou oligopólios que destruam a classe empreendedora nascente na agropecuária brasileira em diferentes regiões do país.
BNDES
Cada vez mais a vocação dele será trabalhar com todas as empresas de todas a escalas. E cada vez dependerá menos do crédito subsidiado e mais da facilitação de um crédito de longo prazo para todas as empresas.
Fernando Henrique Cardoso
Um homem que combina seriedade intelectual [sic!...] e vocação pública , mas de cujas ideias divirjo fundamentalmente."
FONTE: da "América Economia". Transcrito no "Jornal GGN" (http://jornalggn.com.br/noticia/mangabeira-unger-%E2%80%9Co-brasil-fervilha-de-energia-humana).[Pequeno entre colchetes no final acrescentado por este blog]
3 comentários:
Gosto das idéias do Mangabeira Unger.
Mas o difícil é baixar do plano da idealização para o plano da realização.
Ao Iurikorolev,
Ele não é vocacionado para a realização. Conforme ele mesmo diz, a obra dele "é de filosofia e de pensamento social que atravessa as diferentes humanidades e ciências sociais".
Maria Tereza
Mas a Dilma nomeou-o Secretario de Assuntos Estratégicos.
Para mim estratégia sem pé no chão é fantasia ...
Postar um comentário