quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

SAUDADES DE 1964

Por Leandro Fortes, na CartaCapital, reproduzido pelo site do IHU


“Em 1º de março de 2010, uma reunião de milionários em luxuoso hotel de São Paulo foi festejada pela mídia nacional como o início de uma “nova etapa na luta da civilização ocidental contra o ateísmo comunista e a subversão dos valores cristãos”. Autodenominado “1º Fórum Democracia e Liberdade de Expressão”, o evento teve como anfitriões três dos maiores grupos de mídia nacional: Roberto Civita, dono da “Editora Abril”, Otávio Frias Filho, da “Folha de S.Paulo”, e Roberto Irineu Marinho, da “Globo”.

Roberto Civita, dono da “Editora Abril” (“Veja”) no “1º Fórum Democracia e Liberdade de Expressão”

O evento, que cobrou dos participantes uma taxa de 500 reais, foi uma das primeiras manifestações do “Instituto Millenium”, organização muito semelhante ao “Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais” (IPES), um dos fomentadores do golpe de 1964.

Como o IPES de quase 50 anos atrás, o “Millenium” funda seus princípios na “liberdade dos mercados” e no “medo do avanço do comunismo”, hoje personificado nos movimentos bolivarianos de Hugo Chávez, Rafael Correa e Evo Morales. Muitos de seus integrantes atuais engrossaram as “marchas da família” nos anos 60 e sustentaram a ditadura. Outros tantos, mais jovens, construíram carreiras, principalmente na mídia, e ganharam dinheiro com um discurso tosco de criminalização da esquerda, dos movimentos sociais, de minorias e contra qualquer política social, do Bolsa Família às cotas nas universidades.

Há muitos comediantes no grupo.

Arnaldo Jabor

No seminário de 2010, o “democrata” [!] Arnaldo Jabor arrancou aplausos da plateia ao bradar: “A questão é como impedir politicamente o pensamento de uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo?” Isso, como? A resposta é tão clara como a pergunta: com um golpe.

Marcelo Madureira

No mesmo evento brilhou Marcelo Madureira, do Casseta & Planeta. Como se verá ao longo deste texto, há um traço comum entre vários “especialistas” do “Millenium”: muitos se declaram ex-comunistas, ex-esquerdistas, em uma tentativa de provar que suas afirmações são fruto de uma experiência real e não da mais tacanha origem conservadora.

Madureira não foge à regra: “Sou forjado no pior partido político que o Brasil já teve”, anunciou o “arrependido”, em referência ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), o velho Partidão. Após a autoimolação, o piadista atacou, ao se referir ao governo do PT de então: “Eu conheço todos esses caras que estão no poder, eram os caras que não estudavam”. Eis o nível.
O símbolo do “Millenium” é um círculo de sigmas, a letra grega da bandeira integralista, aquela turma no Brasil que apoiou os nazistas. Jabor e Madureira estão perfilados em uma extensa lista de colaboradores no site da entidade, quase todos assíduos frequentadores das páginas de opinião dos principais jornais e de programas na tevê e no rádio. Montado sob a tutela do suprassumo do pensamento conservador nacional e financiado por grandes empresas, o instituto vende a imagem de um refinado clube do pensamento liberal, uma cidadela contra a barbárie. Mas a crítica primária e o discurso em uníssono de seus integrantes têm pouco a oferecer além de uma narrativa obscura da política, da economia e da cultura nacional.

Replica, às vezes com contornos acadêmicos, as mesmas ideias que emanam do carcomido auditório do Clube Militar, espaço de recreação dos oficiais de pijama.

Meio empresa, meio quartel, o “Millenium” funciona sob uma impressionante estrutura hierárquica comandada e financiada por medalhões da indústria. Baseia-se na disseminação massiva de uma ideia central, o liberalismo econômico ortodoxo, e os conceitos de livre-mercado e propriedade privada. Tudo bem se fosse só isso. No fundo, o discurso liberal esconde um frequente flerte com o “moralismo udenista”, o discurso golpista e a desqualificação do debate público.

Criado em 2005 com o curioso nome de “Instituto da Realidade”, transformou-se em “Millenium” em dezembro de 2009 após ser qualificado como “Organização Social de Interesse Público” (OSCIP) pelo Ministério da Justiça. Bem a tempo de se integrar de corpo e alma à campanha de José Serra, do PSDB, nas eleições presidenciais de 2010. Em pouco tempo, aparelhado por um batalhão de “especialistas”, virou um bunker antiesquerda e principal irradiador do ódio de classe e do ressentimento eleitoral dedicado até hoje ao ex-presidente Lula.

José Nêumanne Pinto

O batalhão de “especialistas” conta com 180 profissionais de diversas áreas, entre eles, o jornalista José Nêumanne Pinto, o historiador Roberto DaMatta e o economista Rodrigo Constantino, autor do recém-lançado “Privatize Já”. A obra é um libelo privatizante feito sob encomenda para se contrapor ao livro “A Privataría Tucana”, do jornalista Amaury Ribeiro Jr., sobre as privatizações nos governos de Fernando Henrique Cardoso que beneficiaram Serra e seus familiares. E não há um único dos senhores envolvidos com as privatizações dos anos 1990 que hoje não nade em dinheiro.

Os “especialistas” são todos, curiosamente, brancos. Talvez, por conta da adesão furiosa da agremiação aos manifestantes anticotas raciais. A tropa é comandada pelo jornalista Eurípedes Alcântara, diretor de redação da revista “Veja”, publicação onde, semanalmente, o “Millenium” vê seus evangelhos e autos de fé renovados. Alcântara é um dos dois titulares do Conselho Editorial da entidade. O outro é Antonio Carlos Pereira, editorialista de “O Estado de S. Paulo”.

Alcântara e Pereira não são presenças aleatórias, tampouco foram nomeados por filtros da meritocracia, conceito caríssimo ao instituto. A dupla de jornalistas representa dois dos quatro conglomerados de mídia que formam a bússola ideológica da entidade, a “Editora Abril” e o “Grupo Estado”. Os demais são as “Organizações Globo” e a “Rede Brasil Sul” (RBS).

O “Millenium” possui uma direção administrativa formada por dez integrantes, entre os quais se destaca a diretora-executiva Priscila Barbosa Pereira Pinto. Embora seja a principal executiva de um instituto que tem entre suas maiores bandeiras a defesa da liberdade de imprensa e de expressão — e a livre circulação de idéias -, Priscila Pinto não se mostrou muito disposta a fornecer informações a “CartaCapital”. A executiva recusou-se a explicar o formidável organograma que inclui uma enorme gama de empresas e empresários.

Entre os “mantenedores e parceiros”, responsáveis pelo suporte financeiro do instituto, estão empresas como à “Gerdau”, a “Localiza” (maior locadora de veículos do País) e a “Statoil”, companhia norueguesa de petróleo. No “grupo master” aparece a “Suzano”, gigante nacional de produção de papel e celulose. No chamado “grupo de apoio” estão a “RBS”, o “Estadão” e o “Grupo Meio & Mensagem”.

Há ainda uma lista de 25 doadores permanentes, entre os quais se incluem o vice-presidente das “Organizações Globo”, João Roberto Marinho, o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga e o presidente da “Coteminas”, Josué Gomes da Silva, filho do falecido empresário José Alencar da Silva, vice-presidente da República nos dois mandatos de Lula. O organograma do clube da reação possui também uma “câmara de fundadores e curadores” (22 integrantes, entre eles o ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco e o jornalista Pedro Bial), uma “câmara de mantenedores” (14 pessoas) e uma “câmara de instituições” com nove membros. Gente demais para uma simples instituição sem fins lucrativos.

Uma das atividades fundamentais é a cooptação, via concessão de bolsas de estudo no exterior, de jovens jornalistas brasileiros. Esse trabalho não é feito diretamente pelo instituto, mas por um de seus agregados, o “Instituto Ling”, mantido pelo empresário William Ling, dono da “Petropar”, gigante do setor de petroquímicos. Endereçado a profissionais com idades entre 24 e 30 anos, o programa “Jornalista de Visão” concede bolsas de mestrado ou especialização em universidades dos Estados Unidos e da Europa a funcionários dos grupos de mídia ligados ao “Millenium”.

Em 2010, quando o programa se iniciou, cinco jornalistas foram escolhidos, um de cada representante da mídia vinculada ao “Millenium”: “Época” (Globo), “Veja” (Abril), “O Estado de S. Paulo”, “Folha de S.Paulo” e “Zero Hora” (RBS). Em 2011, à exceção de um repórter do jornal “A Tarde”, da Bahia, o critério de escolha se manteve. Os agraciados foram da “Época” (2), “Estadão” (1), “Folha” (2), “Zero Hora” (1) e “revista Galileu” (1), da Editora Globo. Neste ano, foram contemplados três jornalistas do “Estadão”, dois da “Folha”, um da “rádio CBN” (Globo), um da “Veja”, um do jornal “O Globo” e um da revista “Capital Aberto”, especializada em mercado de capitais.

Para ser escolhido, segundo as diretrizes apresentadas pelo “Instituto Ling”, o interessado não deve ser filiado a partidos políticos e demonstrar “capacidade de liderança, independência e espírito crítico”. Os aprovados são apresentados durante um café da manhã na entidade, na primeira semana de agosto, e são obrigados a fazer uma espécie de juramento: prometer trabalhar “pelo fortalecimento da imprensa no Brasil, defendendo os valores de independência, democracia, economia de mercado, Estado de Direito e liberdade”.

O “Millenium” investe, ainda, em palestras, lançamentos de livros e debates abertos ao público, quase sempre voltados para assuntos econômicos e para a discussão tão obsessiva quanto inútil sobre liberdade da imprensa e liberdade de expressão. Todo ano, por exemplo, o “Millenium” promove o “Dia da Liberdade de Impostos” e organiza os debates “Democracia e Liberdade de Expressão”. Entre os “astros” especialmente convidados para esses eventos, estão Marcelo Tas, da Band, Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo, ambos de “Veja”. Humoristas jornalistas. Ou vice-versa.

O que toda essa gente faz e quanto cada um doa individualmente é mantido em segredo. Apesar da insistência de “CartaCapital”, a diretora-executiva Priscila Pinto mandou informar, via assessoria de imprensa, que não iria fornecer as informações requisitadas pela reportagem. Limitou-se a enviar nota oficial com um resumo da longa apresentação reproduzida na página eletrônica do “Millenium” sobre a missão do instituto. Entre eles, listado na rubrica “código de valores”, consta a premissa da “transparência”, voltada para “possibilidade de fiscalização pela sociedade civil e imprensa”. Valores, como se vê, bem flexíveis.

Josué Gomes e Gerdau também não atenderam aos pedidos de entrevista. O silêncio impede, no caso do primeiro, que se entenda o motivo de ele contribuir com um instituto cuja maioria dos integrantes sistematicamente atacou o governo do qual seu pai não só participou como foi um dos mais firmes defensores. E se ele é contra, por exemplo, a redução dos juros brasileiros a níveis civilizados. O industrial José Alencar passou os oito anos no governo a reclamar das taxas cobradas no Brasil. A turma do “Millenium”, ao contrário, brada contra o “intervencionismo estatal” na queda de braço entre o Palácio do Planalto e os bancos pela queda nos “spreads” cobrados dos consumidores finais.

No caso de Gerdau, seria interessante saber se o empresário, integrante da câmara de gestão federal, concorda com a tese de que a tentativa de redução no preço de energia é uma “intervenção descabida” do Estado, tese defendida pelo instituto que ele financia. Gerdau e Josué se perfilam, de forma consciente ou não, ao “Movimento Endireita Brasil”,defensor de teses esdrúxulas como a de que “os militares golpistas de 1964 eram todos de esquerda”.

O que há de transparência no “Millenium” não vem do espírito democrático de seus diretores, mas de uma obrigação legal comum a todas as ONGs certificadas pelo Ministério da Justiça. Essas entidades são obrigadas a disponibilizar ao público os dados administrativos e informações contábeis atualizadas. A direção do instituto se negou a informar à revista os valores pagos individualmente pelos doadores, assim como não quis discriminar o tamanho dos aportes financeiros feitos pelas empresas associadas.

A contabilidade disponível no Ministério da Justiça, contudo, revela a pujança da receita da entidade, uma média de 1 milhão de reais nos últimos dois anos. Em três anos de funcionamento auditados pelo governo (2009, 2010 e 2011), o “Millenium” deu prejuízos em dois deles.

Em 2009, quando foi certificado pelo Ministério da Justiça, o instituto conseguiu arrecadar 595,2 mil reais, 51% dos quais oriundos de doadores pessoas físicas e os demais 49% de recursos vindos de empresas privadas.

Havia, então, quatro funcionários remunerados, embora a direção do “Millenium” não revele quem sejam, nem muito menos quanto recebem do instituto. Naquele ano, a entidade fechou as contas com prejuízo de 8,9 mil reais.

Em 2010, graças à adesão maciça de empresários e doadores antipetistas em geral, a arrecadação do “Millenium” praticamente dobrou. A receita no ano eleitoral foi de 1 milhão de reais, dos quais 65% vieram de doações de empresas privadas. O número de funcionários remunerados quase dobrou, de quatro para sete, e as contas fecharam no azul, com superávit de 153,9 mil reais.

Segundo as informações referentes ao exercício de 2011, a arrecadação do “Millenium” caiu pouco (951,9 mil reais) e se manteve na mesma relação porcentual de doadores (65% de empresas privadas, 35% de doações de pessoas físicas). O problema foi fechar as contas. No ano passado, a entidade amargou um prejuízo de 76,6 mil reais, mixaria para o volume de recursos reunidos em torno dos patrocinadores e mantenedores. Apenas com verbas publicitárias repassadas pelo governo federal, a turma midiática do “Millenium” faturou no ano passado 112,7 milhões de reais.

A INSPIRAÇÃO

O IPES e o IBAD reuniram a fina flor da reação ao governo João Goulart e foram a base dos movimentos que lançaram o Brasil em 21 anos de escuridão e atraso.
As duas fontes de inspiração do “Millenium” datam do fim dos anos 1950, início dos 60.

Fundado em 1959, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) foi criado por anticomunistas financiados pela “Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos”, a CIA, como o primeiro núcleo organizado do golpismo de direita nacional.

0 IBAD serviu de inspiração para a instalação, dois anos depois, do “Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais” (IPES), responsável pelo aparato midiático e propagandístico que viabilizou o golpe de 1964.
Tanto o IBAD quanto o IPES serviram, como o “Millenium”, para organizar um fórum multidisciplinar, com forte financiamento empresarial, calcado no anticomunismo e na ideia de que o Brasil, como o mundo, estava prestes a cair na mão dos subversivos.

À época, os alvos eram João Goulart, Fidel Castro e Cuba.

Os institutos serviram, ainda, como central de financiamento, produção e difusão de programas de rádio, televisão e textos reproduzidos em jornais por todo o País. 0 material era anticomunista até a raiz e, como hoje, tinha como objetivo disseminar o medo entre a população e angariar simpatia para os golpistas, anunciados como salvadores da pátria ameaçada pelos ateus e baderneiros socialistas.

Em 1962, a farra de dinheiro em torno do IBAD, sobretudo recursos vindos do exterior, começou a irrigar campanhas eleitorais e obrigou o Congresso Nacional a tomar uma atitude. Um ano depois, uma CPI foi instalada na Câmara dos Deputados para investigar a origem do financiamento. Apesar de boa parte da documentação do instituto ter sido queimada antes da ação policial, ainda assim foi possível constatar um sem-número de doações iiegais captadas pela entidade, principalmente de empresas norte-americanas.

Em 1963, com base nas conclusões da CPI, o presidente João Goulart conseguiu dissolver o IBAD, mas era tarde demais.
Na cola de Jango, continuava o IPES, fincado na zona central do Rio de Janeiro, como o “Millenium”. Enquanto o IBAD se desfazia, o IPES, presidido pelo general Golbery do Couto e Silva, conseguiu integrar os movimentos sociais ligados à direita e estendeu seus tentáculos até São Paulo. Golbery agregou à entidade mais de 300 empresas financiadoras, inclusive alguns dos gigantes econômicos da época, como a Refinaria União, a companhia energética Light, a companhia aérea Cruzeiro do Sul e as Listas Telefônicas Brasileiras.

Assim como o “Millenium”, o IPES reunia empresários, jornalistas, intelectuais e políticos, principalmente da conservadora UDN. Durante a ditadura, o instituto ficou responsável pela produção de documentários ufanistas. Fechou as portas em 1972, quando os generais da linha-dura decidiram que não precisavam mais de linhas auxiliares para manter o regime de pé.”

FONTE: escrito por Leandro Fortes, na revista “CartaCapital”, reproduzido pelo site do IHU e no portal “Viomundo”  (http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/leandro-fortes-saudades-de-1964.html) [Imagens do Google adicionadas por este blog ‘democracia&política’].

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