SE A NATUREZA CANTAVA, OS HOMENS QUERIAM CANTAR TAMBÉM
“A Terra tem uma idade aproximada de 4,5 bilhões de anos.
Nossa espécie, o Homo sapiens, apareceu em torno de 200 mil anos atrás, na África.
Se concentrássemos 4,5 bilhões de anos em uma hora, nosso aparecimento teria ocorrido há menos de dois décimos de segundo. Somos a presença mais recente neste planeta e nos achamos donos dele. Algo para refletir.
Evidências fósseis e genéticas indicam que grandes migrações da África em direção à Eurásia e à Oceania ocorriam já há 70 mil anos. A fala, parece que tínhamos há pelo menos 50 mil anos. Dos 200 mil anos que marcam a nossa presença na Terra, há apenas 10 mil nós nos organizamos em sociedades agrárias, capazes de se sustentarem com o plantio e colheita regular de espécies de vegetais domesticados.
Certamente, quando essas sociedades começaram a se organizar, alguns animais também foram domesticados.
Antes dessas sociedades agrárias, bandos de homens e mulheres corriam pelas savanas africanas e planícies eurasiáticas à procura de alimentos e abrigo. Os perigos eram muitos, de animais predadores e grupos inimigos a fenômenos naturais violentos, como misteriosos vulcões e terremotos. Para sobreviver, nunca se podia baixar a guarda.
Desde cedo, ficou claro aos nossos antepassados que a natureza tinha seus próprios ritmos, alguns regulares e outros irregulares. A linguagem nasceu tanto para facilitar a sobrevivência dos grupos quanto para imitar os sons ouvidos pelo mundo, de cachoeiras e trovões aos pássaros e os temidos tigres. Se a natureza cantava, os homens queriam cantar também.
Recentemente, foram descobertos os instrumentos musicais mais antigos, flautas feitas de ossos de abutres e mamutes, datando entre 35 mil e 40 mil anos atrás. Os objetos foram encontrados em uma região na Alemanha, provando que não só humanos haviam já saído da África então, como também haviam desenvolvido habilidades musicais e artesanais. Se o vento assobiava ao passar por frestas e galhos, se gotas caiam ritmicamente das folhas, os homens procuravam imitar esses sons, criando os instrumentos capazes de fazê-lo.
Apesar de não sabermos muito sobre os costumes dessa gente, é difícil evitar imagens, talvez um pouco românticas, do que ocorria então. A vida era difícil. Provavelmente poucos sobreviviam além dos 20 anos. Mas imagino que existisse uma abundância enorme de animais nos campos, mares e rios. Pinturas nas cavernas da Europa e da África, algumas datando de mais de 20 mil anos atrás, mostram uma enorme variedade de animais e também de cenas de caçadas e de rituais.
Provavelmente grupos se reuniam nas cavernas para comer, dormir e celebrar uma boa caça. As pinturas podiam ser tanto ornamentos quanto desenhos ritualísticos que faziam parte de cerimônias religiosas.
Certamente o som das flautas e dos tambores acompanhava os rituais, talvez até na tentativa de imitar os grunhidos dos animais e os sons do ambiente natural onde viviam.
A música e a pintura não eram as únicas expressões artísticas dessas sociedades ancestrais. A escultura também. Figurinos conhecidos como Vênus do Paleolítico, datando de mais de 25 mil anos, mostram o corpo de mulheres bem dotadas de estrogênio, provavelmente símbolos de fertilidade. O impulso criativo parece ser tão antigo quanto a nossa espécie.
Do pouco que conhecemos a respeito dos nossos ancestrais, identificamos neles bastante do que somos hoje. A diferença é que eles viviam em comunhão com o mundo -e não em guerra com ele”.
FONTE: escrito por Marcelo Gleiser, professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo". Artigo publicado no jornal Folha de São Paulo em 23/08/2009.
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