Como os EUA espionaram Paris
Por Julian Assange, Fabrice Arfi e Jérôme Hourdeaux, no site Outras Palavras:
"Os Estados Unidos colocaram a República francesa sob escuta. Os presidentes François Hollande, Nicolas Sarkozy e Jacques Chirac, assim como numerosos ministros, altos funcionários, parlamentares e diplomatas, estiveram sob escuta, diretamente ou indiretamente, por quase uma década, pelos serviços secretos norte-americanos, de acordo com documentos confidenciais da "Agência de Segurança Nacional" (NSA), obtidos pelo Wikileaks.
De acordo com as informações da NSA a que a "Mediapart" e o "Libération", em conjunto com o "WikiLeaks", tiveram acesso sob a operação de espionagem do Palácio do Eliseu [sede do governo francês], as interceptações foram instaladas de 2006 a 2012 – mas nada impede que tenham começado antes e não tenham continuado depois. Classificadas como “top secret”, as notas detalham a espionagem obsessiva da França pelos Estados Unidos em questões diplomáticas, de política local ou econômicas de todo tipo.
Que os Estados Unidos mantenham sob escuta os principais dirigentes de um país aliado, como a França, revela, para alguns, um segredo de polichinelo. A informação é agora comprovada por documentos originados no coração do aparelho de Estado dos EUA.
Sobretudo, os elementos que tornamos públicos a partir de hoje (veja aqui a análise dos documentos) revelam a magnitude até então insuspeita da espionagem estadunidense, desprovida de qualquer suporte judicial e controle real. Pois não são apenas os sucessivos presidentes da República que foram espionados nos últimos anos; todos os estratos do poder público foram, em um ou outro momento, alvo dos EUA, quer fossem ministros, conselheiros presidenciais e ministeriais, diplomatas, porta-vozes. Até mesmo dentro do Palácio do Eliseu, por exemplo, muitas linhas telefônicas (fixas ou celulares) foram grampeadas.
Já um pouco manchada pelas revelações do ex-agente Edward Snowden, a imagem da NSA e, com ele, a dos Estados Unidos, não deve sair engrandecida a partir dessas novas revelações, que lançam uma luz crua sobre as práticas agressivas e injustas da maior potência mundial contra um país normalmente considerado “amigo”. Ao menos de fachada.
Procurada, a NSA não quis comentar.
Assim como seus dois antecessores de direita, o atual presidente socialista François Hollande não escapou à curiosidade dos grandes ouvidos de Washington. Um relatório de 22 de maio de 2012 da NSA fez explicitamente referência a uma conversa mantida quatro dias antes entre o recém-eleito presidente e seu primeiro-ministro na época, Jean-Marc Ayrault. A conversa gira em torno da vontade de François Hollande de organizar “consultas secretas” com a oposição alemã a respeito de uma possível saída da Grécia da zona do euro – um assunto ainda atual.
Os analistas da NSA evocam, no mesmo documento, a existência de “relatórios anteriores” relativos a entrevistas sobre a chanceler Angela Merkel. Isso sugere, portanto, que as interceptações do presidente francês pelos EUA têm sido constantes.
No Palácio do Eliseu, afirmou-se na terça-feira (23/6) que, mesmo sem haver registro oficial dessa conversa, ela é “bastante crível.” Mas a presidência da República não quis fazer qualquer comentário quanto ao mérito do tema, neste estágio. Na comitiva do presidente, contudo, diz-se que, antes do encontro entre François Hollande e Barack Obama, em 11 de fevereiro de 2014, em Washington, em seguida a essa entrevista, “foi assumido o compromisso de não praticar mais escutas indiferenciadas dos serviços de Estado de um país aliado”.
O diretor geral do partido de Nicolas Sarkozi (LR, ex-UMP), Frédéric Péchenard, levou a informação para o ex-chefe de Estado, que “não pretende responder neste momento.”
Os documentos classificados como “top secret”
Como a maior parte dos documentos obtidos pelo WikiLeaks, o relatório de maio de 2012 da NSA, que tem como alvo François Hollande, relava numerosas iniciais que, uma vez decifradas, dão a dimensão da natureza ultrassensível dos documentos revelados. Carimbadas como “top secret” (TS), essas notas discutem as informações obtidas por meio de interceptações eletrônicas (SI para SIGINT, ou seja “sinal inteligente”) e não deveriam ser, sob nenhuma circunstância, compartilhadas com um país estrangeiro (NF para NOFORN, sendo “nenhum estrangeiro”).
A nota sobre Hollande também é acompanhada, além de muitas outras, da menção “não convencional”, uma categoria particular da numenclatura na NSA, que corresponde à obtenção de documentos por meio de operações excepcionais.
Nessa mesma nota sobre Hollande, aparece uma pequena menção adicional, nem um pouco anódina: “Satélite Estrangeiro”. Este termo, FORNSAT abreviado, refere-se a uma rede mundial de estações de escutas da NSA espalhadas em países aliados dos Estados Unidos. Todas as suspeitas dirigem-se — sem que seja possível ter certeza absoluta — às antenas alemãs.
Nos últimos meses, a imprensa de fato revelou como o serviço secreto alemão, o BND, foi subcontratado para apoiar a espionagem norte-americana. Isso gerou forte indignação na Alemanha e a abertura de um inquérito parlamentar que visa a descobrir o tipo de documento obtido pelo WikiLeaks.
Além do atual chefe do estado francês, outras personalidades francesas da alta cúpula foram vigiadas. De acordo com os documentos em nossa posse, que revelaremos nos próximos dias, o antigo presidente Nicolas Sarkozy e Jacques Chirac, o ex-ministro socialista da economia Pierre Moscovici (hoje é comissário europeu) e o ex-embaixador da França em Washington Pierre Vimont também foram espionados.
É preciso dizer que o apetite da inteligência norte-americana pela França revela enorme voracidade. Um outro documento confidencial (ver abaixo) da NSA, redigido sobre o ex-presidente Sarkozy (2007-2012), aponta a lista de alvos franceses definidos pelos EUA. Os dados são preocupantes. Foram espionados membros destacados da assessoria pessoal do então presidente Nicolas Sarkozy: o conselheiro diplomático Jean-David Levitte, o secretário geral do governo Claude Guéant, o porta-voz do ministério das Relações Exteriores Bernard Valero, o ex-ministro Jean-Pierre Jouyet (hoje secretário geral do governo), um dirigente da diplomacia não identificado, e o ministro do Comércio Exterior Pierre Lellouche.
A lista de alvos franceses estabelecidos pela NSA sobre o presidente Sarkozy
Para Claude Guéant, antigo secretário geral do governo e ex-ministro do interior, “essa prática é escandalosa”. “O governo francês deve reagir de forma apropriada. No mínimo, é necessário uma explicação em alto nível, colocando um compromisso absoluto para acabar com essas práticas. Estamos caminhando em direção a um mundo que é extremamente preocupante, onde ninguém mais tem intimidade ou confidencialidade”, queixa-se o assessor próximo de Nicolas Sarkozy.
“Se os americanos espionaram Merkel, por que os outros não teriam sido grampeados?”, comentou Frédéric Péchenard, ex-chefe da policia nacional e atual diretor geral dos Republicanos. “Mas se quisermos ser capazes de nos defender, precisamos que nossos serviços estejam à altura. Precisamos de meio técnicos, humanos e jurídicos mais eficazes. Ser vigiado por aqueles que deveriam ser nossos aliados, pode causar um problema diplomático”, frisa ele.
“Eu, que era um grande amigo dos EUA, sou cada vez menos”, disse o deputado Pierre Lellouche ao Midiapart. “Não estou surpreso. Não me surpreende de ter sido vigiado enquanto estava no Comércio Exterior, porque a espionagem industrial interessa muito aos norte-americanos. Sempre temos esse tipo de conversações. Agora, retrucam com o argumento no âmbito da lei sobre inteligência: nós vigiamos a todos, por que nos impedir de vigiar? Vigiamos todos em qualquer lugar. Infelizmente, vou ter que dizer à Assembleia Nacional, que estamos inseridos num império global construído no plano econômico, onde os EUA não hesitam em conectar as redes da CIA, NSA, e também a justiça norte-americana, que na sequencia amarra o processo. Eu denunciarei isso sem parar”, acrescenta.
Segundo os documentos da NSA, telefones fixos de conselheiros africanos a serviço do governo francês e os ministérios da Agricultura e das Finanças foram igualmente grampeados. Encontramos também uma lista de alvos conectados â antena do "Centro de Transmissão Governamental" (CTG), situado no Palácio do Eliseu. Esse é responsável de assegurar a “defesa secreta”, em permanente contato com o governo e particularmente com os chefes de Estado e o primeiro-ministro. Em outro número, referido com o título “FR VIP AIRCRAFT REL”, reenvia para verificação uma linha da frota aérea governamental, o ETEC [French Air Force], ligado a Força Aérea.
"Au-delà du scandale que peut susciter aujourd’hui cet espionnage américain, la facilité avec laquelle les États-Unis paraissent pouvoir intercepter la moindre conversation des plus hauts dirigeants français interroge aujourd’hui la faiblesse des capacités de contre-ingérence des services de renseignement français. À ce propos, l’Élysée a coutume de rappeler que sur les questions diplomatiques et militaires, il n’y a jamais eu de fuite quelle qu’elle soit, précisant que s’agissant des sujets les plus sensibles, toutes les précautions sont prises. Jusqu’à preuve du contraire."
Além do escândalo que pode suscitar, a espionagem norte-americana demonstra a facilidade com a qual os EUA podem interceptar qualquer conversa do mais alto escalão francês, diante da fraca capacidade dos serviços da contra-inteligência francesa. A esse respeito, o governo francês costuma lembrar que, nas questões diplomáticas e militares, nunca houve vazamento de nenhuma natureza, acrescentando que, nos casos mais sensíveis, são tomadas devidas precauções. Até que prova em contrário…
FONTE: escrito por Julian Assange, Fabrice Arfi e Jérôme Hourdeaux, no site Outras Palavras. Artigo publicado no Miadiapart. Tradução de Inês Castilho e Cauê Ameni. Transcrito no "Blog do Miro" (http://altamiroborges.blogspot.com.br/2015/06/como-os-eua-espionaram-paris.html ).
COMPLEMENTAÇÃO
Três últimos presidentes franceses foram espionados pelos EUA
Todos os três também foram espionados
Do "Público.pt" (de Portugal)
Serviços secretos dos EUA espiaram os três últimos Presidentes franceses
Por FÉLIX RIBEIRO
"Eliseu [Palácio do Eliseu, sede do governo francês] diz que práticas dos serviços secretos norte-americanos "são inaceitáveis". Documentos revelam que Hollande se queixou da intransigência de Merkel face à Grécia.
Os serviços secretos norte-americanos vigiaram as chamadas de três Presidentes franceses e vários altos-responsáveis governamentais durante pelo menos seis anos, entre 2006 e 2012. A revelação foi feita na noite de terça-feira pela organização "Wikileaks", em colaboração com o jornal francês "Libération" e o site "Mediapart", que publicaram uma série de documentos secretos da NSA (a agência de Segurança Nacional norte-americana) com dados sobre conversas privadas entre os líderes franceses e membros do Governo.
O Governo francês reagiu na quarta-feira. As práticas da NSA “são inaceitáveis” e "a França não tolerará actos que ameacem a sua segurança e a proteção dos seus interesses", anunciou num comunicado o Eliseu. O executivo francês convocou ainda a embaixadora dos Estados Unidos em Paris para manifestar pessoalmente o seu desagrado com as revelações e agendou um encontro com os partidos representados no Parlamento.
A agência interceptou e resumiu várias chamadas dos ex-Presidentes franceses Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy, e também do atual Presidente, François Hollande, pelo menos no início do seu mandato. Foram publicados cinco documentos com conversas dos líderes franceses e a Wikileaks diz que mais se seguirão “num futuro próximo”. “Os franceses têm o direito de saber que o seu Governo eleito está sujeito a uma vigilância hostil da parte de um suposto aliado”, escreveu na terça-feira o fundador da organização, Julian Assange.
Tal como aconteceu com a Alemanha e o Brasil em 2013, os Estados Unidos arriscam-se agora a que se azedem as suas relações diplomáticas com a França. O Conselho de Segurança norte-americano assegurou na quarta-feira que o telemóvel [celular] do Presidente francês não é um alvo da NSA, mas não fez referência a programas de vigilância passados. De acordo com o comunicado do Conselho de Segurança francês, que se reuniu durante a manhã a pedido de Hollande, a Casa Branca deve “recordar” e “respeitar” os compromissos feitos à França em 2014, já depois de terem sido revelados os programas de espionagem da NSA pelo ex-analista Edward Snowden.
Não se conhece a origem dos documentos publicados na terça-feira, mas a revelação do programa de vigilância da NSA ao telefone de Angela Merkel, por exemplo, foi apenas possível graças às revelações de Snowden. E o resultado foi uma deterioração visível da relação entre Merkel e Barack Obama. “Espiar entre amigos é algo que simplesmente não se faz”, disse então a chanceler alemã.
Foi só na última reunião dos G7, quase dois anos depois de as escutas a Merkel terem surgido em público – e, coincidentemente, depois de também a Alemanha ter sido acusada de espiar empresas europeias a pedido da própria NSA – que se falou de uma relação sanada entre Obama e Merkel.
As implicações dos documentos publicados pela "Wikileaks", o "Libération" e o site "Mediapart", aliás, devem pesar pouco para as relações entre a França e os países visados nas escutas. Isso apesar de o último resumo das escutas da NSA revelar que François Hollande, no seu primeiro encontro com Merkel enquanto Presidente francês, em 2012, ter criticado as posições da chanceler alemã sobre a crise na Grécia e de ter tentado agendar, em segredo, um encontro com a oposição no Bundestag.
De acordo com a NSA, o então recém-eleito Hollande queixa-se de que Merkel estava “muito concentrada” no "Pacto Orçamental" europeu e que “desistira” e não “queria ceder” à crise econômica na Grécia. Algo que, escreveu a agência secreta norte-americana, “preocupara muito Hollande”, porque a “Grécia e o povo grego poderia reagir votando num partido extremista”.
No mesmo resumo das conversas interceptadas, os serviços secretos dos EUA dizem que Hollande quis agendar encontros em Paris com a oposição a Ângela Merkel, especificamente com o Partido Social-Democrata alemão (SPD). Nesse período, o Governo francês estaria a considerar seriamente a possibilidade de a Grécia sair da zona euro e quis agendar uma reunião, também secreta, para discutir “as consequências de uma saída grega” da moeda única [Euro].
Como explica o site de jornalismo investigativo "Mediapart", nem todas as comunicações foram interceptadas telefonicamente. Alguns dos documentos foram sinalizados como "inconvenientes", o que "significa que foram obtidos através de pirataria informática".
França quis liderar retomada
Os documentos da NSA revelam episódios passados da política externa francesa sob a tutela de Chirac e Sarkozy. Sobretudo com este último. Sarkozy quis que fosse a França a liderar a retomada econômica mundial. Em 2008, o então Presidente francês considerava que "muitos dos problemas econômicos" tinham origem "em erros cometidos pelo Governo dos EUA", como se lê no resumo da agência, mas acreditava que "Washington está agora a acolher alguns dos seus conselhos".
FONTE da complementação: escrito por FÉLIX RIBEIRO no "Público.pt" (de Portugal). Transcrito no "Jornal GGN" (http://jornalggn.com.br/noticia/tres-ultimos-presidentes-franceses-foram-espionados-pelos-eua).
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