quinta-feira, 2 de julho de 2015

RÚSSIA: OLHO POR OLHO



            Vladimir Putin (poker face) 

Rússia: Olho por olho

Por Israel Shamir, no "Unz Review", com o título "Russia: Tit for Tat". Traduzido pelo "pessoal da Vila Vudu" e postado na "Redecasrorphoto"


     Israel Shamir

Fogo e fumaça e enxofre, novas sanções ou os tanques dos EUA nas fronteiras, todas as pragas lançadas sobre a Rússia, uma por cima da outra.

"O presidente Putin poderia adotar o lema de Guilherme de Orange: saevis tranquillus in undis (calmo, em plena tempestade). A tempestade está por toda a parte.

Já há tanques norte-americanos nos estados bálticos.

Navios norte-americanos a caminho do Mar Negro.

As sanções da União Europeia contra a Rússia foram prorrogadas por outros seis meses.

Há patrimônio russo confiscado na França e na Bélgica.

Na Síria, Damasco é ameaçada por rebeldes que os EUA armaram e continuam a armar.

A Grécia quer alistar-se ao lado da Rússia, mas provavelmente não ousará.

A Armênia, pequeno país escondido entre o Irã e a Turquia, acaba de integrar-se aos estados da União Eurasiana liderada pela Rússia, e já apareceram perturbações da ordem pública por lá, que obrigam a lembrar de Kiev 2013.

A Ucrânia está em escombros, enviando ondas e ondas de refugiados para a Rússia.

Qualquer nação mais fraca já estaria histérica. Putin e a Rússia permanecem inabaláveis.

E há aquela piada do Mississipi. Um criminoso negro e um criminoso branco estão sendo levados para a cadeia. O negro está calmo, o branco, em prantos. “Pare de se lamuriar”, diz o negro. “É fácil falar” – diz o branco. – “Vocês negros são acostumados a ser maltratados”. É feito a Rússia. Desde os dias dos sovietes, a Rússia está acostumada aos maus tratos, e desde antes, até, porque a rivalidade entre os herdeiros de Roma e os herdeiros de Constantinopla é, sim, muito antiga. Agora, acabou mais um curto período de calmaria. E estamos de volta à guerra fria. Surpresa, surpresa: a maioria dos russos preferiria a hostilidade do ocidente, como nos tempos de Brezhnev, ao cálido abraço ocidental nos dias de Gorbachev e Yeltsin. Verdade é que as coisas melhoraram muito, com a guerra fria e as sanções.


     Boris Ieltsin e Mikhail Gorbachev (D)

Os russos ricos e ociosos, afastados dos prazeres de Miami e Côte d’Azur, prestam mais atenção aos compatriotas menos afortunados. Não que russos ricos e ociosos roubem hoje menos, mas eles gastam mais na Rússia mesmo, do que saqueiam.

Senhora muito conhecida, Valentina Matvienko, Presidente do Senado russo, foi proibida de viajar à Europa e aos EUA, e teve de passar uns feriados numa estação de veraneio na Rússia. Rapidamente, percebeu o que faltava ali, apesar do charme considerável do lugar. E providenciou os necessários recursos para necessárias melhorias. Tomara que todos eles sejam impedidos de sair do país, era o clamor que se ouvia por todos os lados.

Os produtores russos de queijo jamais conseguiriam competir com queijos franceses e italianos que ano passado abundavam nos mercados liberais abertos e transfronteiras. Vieram as sanções e, em seis meses, as vendas já quase dobraram. Os queijos russos, mais baratos, encontram-se livremente à venda quando, antes, os supermercados preferiam estocar só os caros queijos estrangeiros.

O Exército precisa de tudo para defender a Pátria Mãe, e a indústria russa de alta tecnologia recebe mais e mais encomendas do Ministério da Defesa. Fábricas fechadas e trabalhadores demitidos ou semiaposentados ganham nova vida, compradores estrangeiros fazem fila à entrada, o rublo foi estabilizado. Os jovens acham o que fazer, melhor que assistir à televisão e reclamar do governo. Um sentimento de orgulho russo – depois das terríveis humilhações na Iugoslávia, na Ucrânia e noutros lugares – está de volta.

A infraestrutura está flamante. Moscou ganha novas centenas de quilômetros de ciclovias, os parques estão bonitos e bem cuidados. A capital do país brilha, limpíssima, apesar das dificuldades trazidas por chuvas pesadas.

Agora você começa a entender por que os russos são favoráveis às sanções. Estão com o governo e o presidente, cujos índices de aprovação, medidos por agências norte-americanas de avaliação de opinião pública, alcançam espetaculares 89%. Nunca houve coisa semelhante. Não que os russos queiram guerra, mas estão fartos de ver seu país empurrado de costas contra a parede, como veem as coisas. Os russos não querem qualquer império só deles, mas querem ser ouvidos e querem ter seus desejos considerados. E querem que seu governo faça os ex-parceiros, atuais adversários, pagarem por cada gesto ou ação anti-Rússia.

Dentre os passos retaliatórios mais populares tomados pelo governo russo, está a firme determinação de não mais colaborar para a retirada das tropas da OTAN que ainda ocupam o Afeganistão.

O presidente Putin, no primeiro mandato, em 2001, foi apoiador entusiasta dos EUA. E, depois da invasão norte-americana ao Afeganistão, ele ofereceu ajuda russa para transferir equipamento para dentro e para fora daquele país. Hoje, quase 15 anos depois, essa via curta e fácil até Cabul foi fechada. Os norte-americanos que arrastem seu armamento pesado para cima e para baixo das montanhas, e pelos vales do Paquistão, onde são emboscados por guerrilheiros com longa experiência em combater invasores, de Alexandre o Grande, até Brezhnev.

Os russos também gostaram da decisão olho-por-olho de banir dúzias de políticos ocidentais, proibidos de entrar em solo russo, como resposta ao banimento de políticos russos, proibidos de entrar em solo europeu. A Rússia talvez não seja o mais buscado destino turístico, mas, acredite se quiser, a proibição de entrar dói. A simples ideia de resposta russa ativa, já colheu de surpresa os europeus: pensavam que os russos não tinham meios, ou não tinham coragem. O berreiro dos figurões ocidentais impedidos de entrar na Rússia é música aos ouvidos dos russos.

Sobre a crise da Ucrânia, há muitos que sonham com tanques russos varrendo Kiev e restaurando a paz civil na Ucrânia atormentada, mas esse sonho permanecerá não realizado, enquanto o presidente Putin acreditar que há outros meios, pacíficos, para resolver o problema. Mesmo assim, o estilo obsessivamente pró-paz, dos soviéticos, e o medo da guerra, dão lugar a atitude mais vigorosa, dado que a guerra, quando nos é imposta, é necessidade inevitável da vida. O velho mantra entorpecedor de “qualquer coisa é melhor que guerra” caiu ante a realidade.


Desfile de civis com retratos de perentes mortos
na IIª Grande Guerra em 9/5/2015. Putin à frente.


As celebrações, dia 9 de maio de 2015, dos 70 anos do Dia da Vitória, ficarão para sempre na memória do povo, e deram aos cidadãos boa chance de ver os mais novos brinquedos dos militares russos. Este ano, os russos destacaram a própria vitória, mais que qualquer vitimização, sofrimentos e perdas. A vitória foi vista como vitória dos russos sobre a Europa, não só sobre a Alemanha; porque praticamente todas as nações europeias, de França, Espanha e Itália, a Hungria e Bulgária, combateram ao lado de Hitler e contra a Rússia. É a mais absoluta verdade, mas foi verdade raramente mencionada, até este ano. Fanadas as esperanças russas de que a Europa apoiasse as políticas russas de independência em benefício também da Europa, veio afinal a consciência de que os líderes europeus são servis hoje a Washington, como seus predecessores foram servis a Berlim.

Lentamente, ah, tão lentamente, o gigante russo recordou seus dias de juventude, as batalhas do Rio Volga e a tomada de Berlim. Essas memórias o fizeram rir de Frau Merkel e de Mr. Obama. Imediatamente depois do desfile militar do dia 9 de maio, milhões de civis marcharam pelas ruas carregando fotos dos pais e avôs, soldados na Grande Guerra. Foi movimento absolutamente inesperado: nem eu nem outros observadores e jornalistas, estrangeiros ou locais, previram evento de tais dimensões. A cidade planejara marcha de dez mil participantes; 50 vezes mais que isso, mais de meio milhão de pessoas marcharam pelas ruas só em Moscou. Em toda a Rússia foram 12 milhões.

Esse ato sem precedentes de solidariedade à Rússia disparou tremores sísmicos por toda a sociedade. Muitos dos caminhantes levavam imagens do comandante vitorioso daqueles dias, Joseph Stálin. Não é nome amado por todos, longe disso. Mas nome que, apenas mencionado, já faz tremer de fúria os gatos mais gordos e seus aliados, não pode ser de todo mau. Há quem queira devolver o nome de Stalingrado ao local da grande batalha, que foi alterado por Khrushchev. Mas Putin não gosta da ideia. Por enquanto.

A presença do Presidente Xi Jiping da China às celebrações de maio significou um realinhamento histórico com a China: é mudança de proporções oceânicas nas políticas russas. A conexão com a China só se fortalece, dia a dia. Essa é atitude nova: antes, russos e chineses sempre desconfiaram uns dos outros, mesmo depois de superada a hostilidade dos últimos dias do período soviético. Liberais moscovitas pró-ocidente descartaram os chineses e planejaram uma guerra contra a China, liderada pelos EUA. Hoje, esse pesadelo já é passado. Não estamos de volta exatamente aos anos 1950s, quando Mao e Stálin estabeleceram seus laços, mas estamos perto.


 Xi Jinping e Putin nos 70 anos do Dia da Vitória

Há coisa de 800 anos, a Rússia esteve em situação semelhante, furiosamente pressionada pelo ocidente. O Papa abençoou uma Cruzada contra os russos, exigindo que aceitassem a hegemonia do ocidente, e desistissem de sua cristandade bizantina. Foi quando o príncipe Alexandre preferiu aceitar o patrocínio dos mongóis sucessores de Genghis Khan, a submeter-se ao diktat ocidental. A troca funcionou: a Rússia continuou a existir e o príncipe valente foi canonizado pela Igreja, como Santo Alexandre Nevsky. Os russos até hoje entendem que usar apoios orientais é menos perigoso para a alma russa do que se curvar a demandas ocidentais.

Será que Putin, nascido em São Petersburgo, que muito preza seus contatos europeus e fala quatro línguas fluentemente (mas não fala chinês), repetirá o feito de Santo Alexandre e realinhará a Rússia com o oriente? Seria perda gigante para a Europa, como Velho Continente convertido em colônia dos EUA.

São Petersburgo, cidade onde está enterrado o corpo de Santo Alexandre é, definitivamente, cidade europeia, virada para o oeste, diferente de Moscou, que olha para o leste. É especialmente deliciosa em junho, o mês das Noites Brancas, quando a cidade é banhada em luz fria e clara durante o dia, e em luz leitosa, quase opaca, à noite, com os lilases em plena floração, debruçados sobre o espelho d’água dos canais e rios que cortam a capital russa do norte, onde nunca se está longe de um curso d’água. A velha glória imperial ainda descansa às margens do rio Neva.

Ali foi o coração do Império Russo, até que Lênin levou o governo de volta para a antiga capital, Moscou. Por isso, durante os anos soviéticos, Petersburgo (então batizada Leningrado) não sofreu com os massivos programas de moradias populares que desfiguraram Moscou. O historiador britânico Arnold Toynbee (hoje caído em desgraça, por sua inclinação antissionista) disse que a mudança para Moscou “corporificou a reação da alma russa contra a civilização ocidental”. A presidência de Putin, ele talvez dissesse, corporificou uma guinada pró-Europa na alma russa. Algo como uma traição da Europa contra a Rússia (como alguns russos veem as coisas) teria levado Putin a afastar-se, agora, da Europa?


    Putin discursa na abertura do SPIEF-2015

Vi o presidente Putin no recente Fórum Econômico Internacional em São Petersburgo. No Fórum, Putin saiu-se muito bem: calmo, impenetrável "poker face", respondeu com sinceridade todas as perguntas. Em momento algum pareceu irritado ou incomodado. Lidou com calma com a crise da propriedade russa confiscada. Muita gente preferia vê-lo esmurrar a mesa, confiscar bens de franceses e belgas. Nada disso. Prometeu usar os meios legais facultados pelas cortes europeias de justiça.

Putin chegou a São Petersburgo depois de viagem muito bem-sucedida a Baku, capital do Azerbaijão rico em petróleo, onde os Jogos Europeus ofereceram oportunidade para longos encontros com os presidentes da Turquia e do Azerbaijão. Nenhum líder ocidental deu as caras, mas os governantes do nosso lado do mundo apreciaram devidamente a companhia uns dos outros.

Em resumo, o presidente Putin é homem de fala suave. Se tem algum grande porrete, não o exibe por aí. Não se mostra desconsolado, ante a grosseria e as más intenções ocidentais. Parece que está trabalhando muito em busca de arranjos alternativos, mas quer adiar pelo máximo tempo possível quaisquer decisões mais dolorosas. Eventualmente, talvez seja forçado a uma aliança estratégica com a China, que minará ainda mais o que resta da independência europeia.

Mas as coisas não são ou brancas ou pretas. A Rússia está conectada ao ocidente por várias inesperadas vias. O mais implacável inimigo da Rússia é o ex-Ministro de Relações Exteriores da Suécia, Carl Bildt. A esposa dele está proibida de entrar em território russo. Ao mesmo tempo, Bildt indicou um conselheiro para uma empresa russa de petróleo cujo proprietário e o segundo mais rico dos oligarcas russos, Michael Friedman. Friedman, um dos sete oligarcas originais dos tempos de Yeltsin, começou como cambista revendedor de ingressos para shows. Gasta prodigamente em escolas hebraicas de educação religiosa. O seu "Alfa Bank" tentou interromper a produção de novo tanque russo Armata, levando à falência a fábrica que produzia as proteções blindadas do tanque. Friedman e Putin são amigos. É o que deveria bastar contra a propaganda de que o cruel ditador russo seria inimigo jurado dos oligarcas judeus.


  Os jornais russos são livres para atacar Putin...

A verdade é que a Rússia continua liberal, e os liberais russos copiam os liberais norte-americanos, mutatis mutandis. Tratam Putin como seus contrapartes nos EUA tratavam Bush II, embora, a julgar pelo vocabulário, Putin mais pareça um Kim Jong Il. Os jornais são livres para atacar Putin, e usam furiosamente essa liberdade. Diretores de teatro insertam “cacos” anti-Putin nas falas de peças clássicas, sempre como se Putin vivesse de falar contra a Igreja. No cinema, o mundo de Putin é reino de misérias e abusos, feito filme de Jim Jarmusch.

Mas o povo comum gosta de Putin, como Bush II era popular nos estados Republicanos. E gostariam ainda mais, se ele arrancasse dois olhos de norte-americanos, por olho russo. Por enquanto, Putin prefere prosseguir na retaliação simbólica."

FONTE: escrito por Israel Shamir, no "Unz Review", com o título "Russia: Tit for Tat". Traduzido pelo "pessoal da Vila Vudu" e postado por Castor Filho no blog "Redecasrorphoto"   (http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2015/06/russia-olho-por-olho.html).
O autor, Israel Shamir, escreve sobre assuntos públicos, principalmente com relação ao conflito Israel/Palestina e política russa, incluindo três livros, "Galilee Flowers", "Cabbala of Power" e "Masters of Discourse", disponíveis em inglês, francês, alemão, espanhol, russo, árabe, norueguês, sueco, italiano e húngaro.  Ele se descreve como um nativo de Novosibirsk, na Sibéria; mudou-se para Israel em 1969, serviu como paraquedista no Exército e lutou na guerra de 1973; depois virou-se para o jornalismo escrito. No final dos anos 1970s, ele se juntou à BBC em Londres depois de viver algum tempo no Japão. Regressou a Israel em 1980. Passou a escrever para o jornal israelense "Haaretz"; foi o porta-voz no Knesset pelo Partido Socialista de Israel (Mapam). Também traduziu e anotou para o russo, a partir do original, as obras enigmáticas de SY Agnon, o único escritor em hebraico a receber o Prêmio Nobel de Literatura. Sua perspectiva sobre o conflito Israel/Palestina foi resumida em "The Pine and the Olive", publicado em 1988 e reeditado em 2004. Nesse mesmo ano, foi recebido na Igreja Ortodoxa de Jerusalém na Terra Santa, sendo batizado pelo Arcebispo Adam Teodósio Attalla Hanna. Atualmente, vive em Jaffa, mas passa muito tempo em Moscou e Estocolmo; é pai de três filhos.

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