O Correio Braziliense de ontem publicou a seguinte reportagem de Luciano Pires
TRIBUNAL INVESTIGA SELEÇÃO DE R$ 130 MIL
TCU avalia se o concurso para práticos de navios tem cartas marcadas. Marinha afirma que atua corretamente.
“Um dos concursos públicos mais cobiçados do país é questionado na Justiça por suspeitas de irregularidades e indícios de direcionamento. O Ministério Público Federal (MPF) no Rio de Janeiro quer anular e o Tribunal de Contas da União (TCU) abriu processo investigatório sigiloso para passar a limpo denúncias de que a seleção de praticante de prático, aberta pela Marinha no ano passado — e ainda em curso —, desrespeitou regras básicas de lisura, transparência e impessoalidade. A batalha nos tribunais sugere uma complexa rede de interesses.
Os práticos são especialistas com elevada qualificação, além de alto valor de mercado tanto no Brasil como no exterior. Seu papel é assessorar comandantes de navios a manobrar as embarcações com segurança em procedimentos de chegada ou saída dos portos. Não se trata de emprego ou cargo público, mas de função pública. Os salários, em média, vão de R$ 60 mil a R$ 130 mil por mês, sendo que nos pontos de maior tráfego na costa brasileira há quem receba R$ 200 mil.
A remuneração fica a cargo de particulares que demandam o serviço de praticagem, os armadores (grandes transportadores marítimos). Por ser considerada estratégica, a profissão é regulada pelo Estado, que define as regras de atuação em campo, fiscaliza o exercício do cargo e coordena o recrutamento de mão-de-obra. O edital para a contratação de 117 práticos — maior concurso já realizado nessa área — foi publicado pela Diretoria de Portos e Costas (DPC) em março do ano passado. As vagas são direcionadas aos estados do Amapá, Maranhão, Pará, Ceará, Rio Grande do Norte, Alagoas, Pernambuco, Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Na última sexta-feira, as provas práticas chegaram ao fim.
A tentativa do MPF de barrar o concurso se baseia em relatos de candidatos que se sentiram prejudicados e em fatos concretos, pouco usuais, que acabaram tumultuando a realização da primeira fase dos exames. O Correio teve acesso à ação civil pública proposta pelo procurador Edson Abdon. Nela, há relatos de situações atípicas ocorridas durante a aplicação das provas teóricas, como falta de cadernos de questões em sala e um bloco de provas encontrado no banheiro feminino. Falhas de procedimentos também são reveladas no relatório.
Conforme sustenta o procurador, candidatos teriam sido aprovados sem o conhecimento técnico necessário. Abdon cita ainda representações contra um possível favorecimento de pessoas ligadas por vínculos de parentesco com militares de alta patente. Segundo ele, é grande a quantidade de sobrenomes com alguma coincidência.
“É incrível o elevado índice de membros de uma organização com familiares aprovados neste concurso, e justamente uma organização que possui laços estreitos, em suas atividades, com a Diretoria de Portos e Costas, organizadora do concurso”, justifica na página 48 da ação civil pública. Dos 2.248 inscritos, apenas 1.643 fizeram a prova.
RESPOSTA
A Marinha contesta de forma categórica as suspeitas. Em nota, informa que todas as dúvidas na execução da prova escrita foram “tempestivamente” objeto de apuração pela Administração Naval, não sendo constatada qualquer irregularidade. “Inúmeras demandas foram ajuizadas, sendo que, em sua maioria não foram acolhidas pelo Poder Judiciário, em caráter liminar. Em algumas, em que se concedeu liminar, com o envio das informações pela Diretoria de Portos e Costas, o Juízo revogou”, reforça o documento assinado pelo Centro de Comunicação Social da Marinha.
Como a ação civil pública proposta pelo MPF no Rio de Janeiro ainda está em curso, a Marinha do Brasil justifica por meio do documento oficial reservar-se o direito de não se pronunciar, “em respeito ao Poder Judiciário, ao qual caberá decidir (…). Assim o faz, repita-se, a despeito da certeza quanto à lisura do certame, pelo fato de a matéria encontrar-se sub júdice”, completa o comunicado enviado ao Correio.
Essas explicações, no entanto, não esgotam a polêmica. Com base em denúncias semelhantes às protocoladas pelo MPF, o TCU está determinado a descobrir se o exame nacional para a admissão de práticos está correto. A investigação, iniciada em sigilo, segue em ritmo acelerado. Órgãos públicos envolvidos na organização do concurso, candidatos e agentes de Estado já foram acionados para prestar esclarecimentos. Como a seleção terá de ser homologada no dia 18 deste mês, o tribunal deverá se pronunciar nos próximos dias. Caso o TCU decida pela interrupção do concurso, prováveis contestações terão como palco o Supremo Tribunal Federal (STF).
O PRÁTICO
Atividade pouco conhecida, mas fundamental no suporte da infraestrutura portuária
FUNÇÃO
Instruir manobras de embarcações com o máximo de segurança e precisão possíveis, de modo a resguardar vidas e o meio ambiente.
COMO ATUA
Uma lancha leva o profissional até o navio. Embarcado, o prático repassa orientações de vento, condições do mar, do terreno e particularidades do local, imprescindíveis para que o comandante execute as manobras. É preciso conhecer profundamente a geografia da região, dominar rotas de ventos, marés e correntes.
IMPORTÂNCIA ECONÔMICA
O incremento do comércio internacional aumentou o fluxo de navios na costa brasileira nos últimos anos. Ao mesmo tempo, as exigências ambientais e de segurança internacional tornaram-se mais rigorosas.
SALÁRIO
É alto porque exige responsabilidade e experiência associadas de tal forma que não há como comparar com outras profissões. O preço da manobra é definido conforme o porte do navio e o grau de dificuldade para atracar.”
RELACIONAMENTO EM CRISE
A relação entre os práticos e as empresas que recorrem a esse tipo de trabalho está em crise. As companhias reclamam de intervenções desnecessárias do Estado e da Marinha, contestam vendas casadas de serviços, mas se queixam principalmente do alto valor cobrado pelos profissionais que são tidos como os olhos e o cérebro dos navios nos portos brasileiros.
No momento em que o Brasil enfrenta dificuldades para manter níveis históricos de fluxo de comércio externo, devido aos reflexos da crise internacional, os transportadores marítimos cobram alterações emergenciais nas atuais políticas públicas. Armadores ouvidos pelo Correio afirmam que o setor não pode ficar refém de reservas de mercado sob pena de perder competitividade. “Em nenhum outro lugar do mundo acontece como no Brasil”, diz um executivo.
Um projeto em estudo pelo governo tem o objetivo de acabar com o monopólio das cooperativas de praticagem no país. Essas entidades ficam encarregadas de intermediar os negócios fechados entre as empresas e os práticos. Em 2007, a Secretaria Especial de Portos (SEP) rascunhou algumas propostas de mudanças. A principal delas: oferecer o mesmo serviço por meio das companhias docas — sociedades de economia mista, cujo o acionista majoritário é o governo federal.
Atualmente, existem 34 portos públicos marítimos sob gestão da SEP. Desses, 18 são administrados diretamente pelas Companhias Docas. O lobby contrário a qualquer discussão que envolva mudanças no equilíbrio de forças entre práticos e armadores emperra o avanço do debate. Enquanto isso, o Brasil é criticado internacionalmente por não modernizar seu poder regulatório.”
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