quarta-feira, 5 de setembro de 2012

ATÉ QUANDO O FUTURO PODE ESPERAR?

Por Saul Leblon


“O artigo de domingo de FHC no 'Estadão' é uma das excrescências mórbidas de que falava o italiano comunista Antonio Gramsci. Morto em 1937, ele ensinou: o que caracteriza uma crise é justamente o fato de que 'o velho já morreu e o que é verdadeiramente novo não consegue nascer; nesse interregno, aparece toda uma série de sintomas mórbidos”.

Que poderia haver de mais sintomaticamente mórbido nesse arrastado colapso do que um ex-presidente tucano vir a público pontificar lições de ética, finanças e desenvolvimento [!!!] tendo como régua e compasso o governo e o credo que o ralo da história digere há quatro anos?

FHC, Serra e outros valem-se do limbo pegajoso dos dias que correm para insistir em políticas e agendas condenadas, mas ainda não substituídas no plano mundial --o que dificulta a sua ruptura definitiva também no Brasil.

Debater com FHC nesse ambiente movediço traz a angústia das reiterações inúteis. 'O velho já morreu', dizia Gramsci.

Mas o novo não consegue nascer.

A quebra do banco “Lehamn Brothers” completa quatro anos no próximo dia 15. A falência do 4º banco de investimento dos EUA rompeu o sistema financeiro mundial e desencadeou a deriva da qual somos passageiros desde 2008.

Sugestivamente, na 3ª feira (4 de setembro), começou também a convenção do Partido Democrata nos EUA, da qual Obama sairá candidato à reeleição.

Visto como esperança de recomeço no terremoto de 2008, o democrata tornou-se ele, também, um ponto dentro da curva. Mais tragável que o antecessor ou o adversário, sem dúvida. Mas a nicotina mentolada de que é feito provou-se insuficiente para arejar o quadro asfixiante da maior crise capitalista desde 1929.

2008 não encontrou seu Roosevelt. E parece cada vez mais improvável que encontre um “new New Deal” capaz de afrontá-lo a partir do centro rico.

George Soros, o megaespeculador de cuja argúcia não se deve duvidar, declarou em recente entrevista ao “El País” [jornal espanhol] que teme pelo desfecho político da deterioração em marcha. Sobretudo na Europa, coalhada de governos histericamente ortodoxos.

Profundamente pessimista com o futuro do euro, vítima da incapacidade alemã de assumir-se como um 'Roosevelt na UE', Soros, a 20ª maior fortuna do planeta, inquieta-se com os fantasmas que povoam seu ângulo de visão privilegiado. Um pouco como aconteceu depois da “Depressão de 29”, ele adverte: o salve-se quem puder será entremeado de nacionalismos econômicos e totalitarismo político.

A margem de manobra se estreita de uma ponta a outra do impasse.

O extremismo mercadista dobrou a aposta neoliberal na sua versão arrocho. O resultado desespera eleitores que se voltaram à direita desde 2008. Espanha, Portugal, Itália, Grécia etc fazem água e desemprego por todos os lados. Ninguém leva a sério 'os esforços' do direitista Rajoy para esfolar a Espanha até o osso, em troca de maior confiança dos mercados. Os mercados tiraram mais de 240 bilhões de euros da economia espanhola só no primeiro semestre deste ano.

Não é exatamente convidativo, tampouco, o horizonte de forças que se opõem à razia conservadora, mas o fazem na margem, sem afrontar o ‘cuore’ da austeridade suicida.

O liquidificador dos interesses contrariados e das expectativas insatisfeitas tende a moê-los com virulência até superior à mastigação lenta dedicada às administrações direitistas.

Na França, o socialista recém-eleito François Hollande vê o seu espaço de governo estreitar-se sob duplo torniquete: de um lado, a voz rouca de 3 milhões de desempregados; de outro, pressões do bureau do euro para cortar 33 bilhões de euros do orçamento público.

O ambiente é cada vez mais abafado na sala VIP do mundo. Mas a brisa da esperança que sopra da América Latina tampouco exibe vigor, por enquanto, para fixar nova rota de longo curso, à margem do engessamento neoliberal.

A AL --Brasil à frente-- logrou em pleno colapso preservar baixas taxas de pobreza e desemprego, com alguma retomada de investimento.

Havia a expectativa de que o vendaval da crise pudesse amainar mais depressa, devolvendo fôlego a essa travessia lenta e gradual, feita de redistribuição do crescimento com maior convergência de direitos e oportunidades.

A visibilidade dessa zona de conforto político torna-se, a cada dia, mais opaca.

Tudo indica que os avanços sociais tendem a se tornar mais difíceis. Sobretudo porque, após vitórias significativas contra a pobreza, ir além implica afrontar a desigualdade. Essa requer mudanças estruturais na alocação do estoque da riqueza existente para ser alterada (seja na esfera fundiária, urbana, patrimonial ou financeira).

Não é um mantra ideológico. Que ninguém se iluda com fábulas amenas de retorno a um mundo de desconcentração financeira amigável à produção e ao desenvolvimento. Regulação não significa diluição, mas sim subordinação do capital financeiro aos desígnios da sociedade e seu retorno ao papel de alavanca da produção.

A concentração de capitais, a formação de grandes fundos de recursos é um traço intrínseco à dinâmica capitalista. Num certo sentido, é também uma necessidade da escala de financiamento requerida pelas demandas por infraestrutura, planos de universalização de serviços e direitos, ademais da reordenação ambiental.

Essa agregação de grandes volumes de recursos terá que ser feita por alguém. O colapso neoliberal mostra para onde a coisa caminha quando os mercados ficam livres e capturam o crédito, o financiamento e o juro para estrepulias especulativas dissociadas do circuito da produção.

A alternativa com capacidade para fazê-lo de maneira socialmente democrática é o Estado.

O prolongamento da crise exige que ele ocupe espaços crescentes na economia. Sem esse salto político será impossível comandar a retomada do crescimento e colocar os mercados à serviço da sociedade.

Não se cumpre esse papel indutor e planejador sem fundos públicos em escala correspondente.

A carga fiscal média vigente na AL, de 18% a 19%, trava esse passo. (dados da CEPAL, "Mudança Estrutural para a Igualdade: Uma Visão Integrada do Desenvolvimento").

Na Europa e na América Latina, incluindo-se o caso específico do Brasil, a alavanca fiscal emperrada reflete um flanco mais grave: o desarmamento político das forças sociais que deveriam assumir a tarefa de acionar o papel hegemônico da iniciativa pública. Ou seja, erguer as linhas de passagem para equacionar a crise com uma socialização democrática dos recursos disponíveis.

É o cerne do impasse de que fala Gramasci.

A questão que se coloca aos partidos progressistas é de urgência transparente: quanto tempo o futuro ainda pode esperar antes que manifestações mórbidas, como a de FHC, tentem se impor à sociedade com sua agenda zumbi? A ver. “

FONTE: escrito por Saul Leblon na “Carta Maior”  (http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=6&post_id=1080).

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