[Justiça cega não vê suas injustiças]
Por Saul Leblon“Há certo gosto de decepção no ar. O conservadorismo que, durante meses, anos, cultivou o julgamento do chamado ‘mensalão’ como uma espécie de terceiro turno sanitário, capaz de redimir revezes acumulados desde 2002 no ambiente hostil do voto, de repente percebe-se algo solitário na festa feita para arrebanhar multidões.
Como assim, se os melhores buffets da praça foram contratados; a orquestra ensaiou cinco anos a fio e o repertório foi escolhido a dedo?
Por que, então, a pista está vazia?
Pouca dúvida poderia haver, estamos diante de um evento de coordenação profissional.
O ‘timming’ político coincide exatamente com o calendário eleitoral de 2012; a similitude e a precedência comprovadas do PSDB na mesma e disseminada prática de ‘caixa 2’ de campanha --nem por isso virtuosa--, e que ora distingue e demoniza o PT nas manchetes e sentenças, foi enterrada no silêncio obsequioso da mídia.
Celebridades togadas não sonegam seu caudaloso verbo à tarefa de singularizar o que é idêntico.Tudo caminha dentro do figurino previsto, costurado com o afinco das superproduções, o que falta então?
Apenas o essencial: a alegria do povo.
A população brasileira não tem ilusões. Ninguém enxerga querubins no ambiente nebuloso da luta política. Consciente ou intuitiva, ela sabe a seu modo que a política brasileira não é o que deveria ser: o espaço dos que não tem nenhum outro espaço na economia e na sociedade.
A distância em relação ao ambiente autofestivo da mídia condensa essa sabedoria em diferentes versões.
Privatizada pelo financiamento de campanha a cargo dos mercados, a política foi colonizada pelos mercadores. Afastada do cidadão pelo fosso cravado entre a vontade da urna e o definhamento do voto no sistema representativo, a política é encarada exatamente como ela é: um matrimônio litigioso entre a esperança e a decepção.
O PT do qual se cobra aquilo que não se pratica em muitos círculos - à direita e à esquerda - é protagonista dessa ambiguidade; personagem e cronista dos seus limites, possibilidades e distorções.
Que tenha aderido à lógica corrosiva do financiamento eleitoral vinculado ao ‘caixa 2’ das empresas e , ao mesmo tempo, protagonizado um ciclo de governo que faz do Brasil hoje o país menos desigual de sua história (de obscena injustiça social), ilustra a complexidade desse jogo pouco afeito a vereditos binários.
Essa ambiguidade não escapa ao discernimento racional ou intuitivo da sociedade.
Se, por um lado, semeia degenerações clientelistas e apostas recorrentes nos ‘out-siders’ que se apresentam como entes 'acima dos partidos', ao mesmo tempo é uma vacina de descrença profilática em relação a encenações de retidão como a que se assiste agora.
A repulsa epidêmica dos eleitores de São Paulo a um dos patrocinadores desse rega-bofe, do qual se imaginava [e se planejava] o principal beneficiário, é sintomática do distanciamento que amarela o riso de vitória espetado nos cronistas convidados a animar o evento.
O baixo custo eleitoral do julgamento em curso no STF, contudo, não deve ensejar alívio ou indiferença na frente progressista da qual o PT é polo central.
O julgamento do chamado 'mensalão' por certo omite o principal e demoniza o secundário. Ao ocultar a dimensão sistêmica a qual o PT aderiu para chegar ao poder, sanciona o linchamento de um partido democrático, uma vez que desautoriza seu principal argumento de defesa.
A meia-verdade atribuída aos réus do PT pelos togados e promotores está entranhada na omissão grotesca da história de que se ressentem suas sentenças pretensiosamente técnicas, envelopadas em liturgia mistificadora.
A pouca ou nenhuma influência eleitoral desse engenhoso ardil que elegeu "a ausência de provas como a principal prova condenatória" diz o bastante sobre o alcance da hipocrisia vendida como marco zero da moralidade pública pelos vulgarizadores midiáticos.
Não é esse, porém, o acerto de contas com o qual terá que se enfrentar o PT.
Após uma década no governo federal, o partido, seus intelectuais, lideranças e aliados nos movimentos sociais têm um encontro marcado com indagação incontornável, que não é nova na história das lutas sociais: em que medida um partido progressista tem condições de se renovar depois da experiência do poder? Em que medida tem algo a dizer sobre o passo seguinte da história?
O legado inegociável das conquistas acumuladas nesses dez anos entrou na casa dos brasileiros mais humildes, sentou-se à mesa, integrou-se à família. Ganhou aderência no imaginário social.
Não é preciso desconhecer os erros e equívocos para admitir que essa década mudou a pauta da política; alterou a face da cidadania; redefiniu as fronteiras do mercado e da produção. Deu ao Brasil presença mundial que nunca teve.
Com todas as limitações sabidas, criou-se nova referência histórica no campo popular em que antes só avultava a figura de Getúlio Vargas.
Lula personifica essa novidade que a população entende, identifica e respeita.
E que o enredo [da mídia e oposição para o] 'mensalão' gostaria de sepultar.
Não está em jogo abdicar do divisor conquistado, mas sim ultrapassá-lo. Avulta que o percurso concluído abriu flancos, sugou agendas, talhou cicatrizes e escavou revezes de esgotamento, dos quais o julgamento em curso no STF é um exemplo ostensivo. Todavia não o principal.
Existe uma moldura histórica mais ampla a saturar esse ciclo.
O colapso da ordem neoliberal, os riscos intrínsecos espetados na desordem financeira e ambiental em curso no planeta --suas ameaças às conquistas brasileiras-- formam um condensado de culminâncias que pede desassombro na renovação da agenda da democracia e do desenvolvimento para ser afrontado.
O caminho não será trilhado, menos ainda liderado, por forças e partidos incapazes de incluir na bússola do trajeto o ponteiro da autocrítica política e de um ‘aggiornamento’ organizativo coerente com a renovação cobrada pela história.
O carro de som da direita faz barulho por onde passa neste momento. Mas isso não muda a qualidade da mercadoria que apregoa.
O que o alarido dos decibéis busca vender é o velho pote de iogurte vencido e rançoso, cuja versão eleitoral em São Paulo tem 43% de rejeição popular.
A resposta da frente progressista à qual o PT se insere não pode ser a mera denúncia da propaganda enganosa.
Urge esquadrejar revezes e resoluções para renovar o próprio estoque de metas e métodos requeridos pelo passo seguinte da história.”
FONTE: escrito por Saul Leblon na “Carta Maior” (http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=6&post_id=1075). [Imagem obtida no google e trechos entre colchetes adicionados por este blog 'democracia&política']
2 comentários:
Só um leitor assíduo deste blog, concordo com tudo que dizem sobre o PIG, acho que não enveredar por uma lei dos meios neste País, é uma de várias decepções com Dilma e PT.
Esta faltando nas esquerdas alguém que analise o fenômeno Celso Russomano em SP. PROCON nos empresários e luta por um tipo procon em políticos sejam de esquerda ou direita não faz o que promete ou virá casaca qdo no poder, perde o cargo afinal foi eleito com um discurso e faz diferente...
Unknown,
Concordo com a necessidade de uma análoga "Ley dos Medios". Está prevista na Constituição. Creio que ela não sai devido à pressão dos donos da mídia (e do poder econômico que a domina).
A solução de PROCON em políticos que mudam de discurso é complexa demais, até impraticável. Porém, pelo menos, teria evitado a tragédia dos anos 90, quando FHC dizia "esqueçam o que eu disse"...
Maria Tereza
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