Luciano Coutinho: "Não tenho nenhuma dúvida de que precisamos tornar o Estado brasileiro mais eficiente e mais capacitado, essa é uma agenda que nos preocupa"
(Foto: Regis Filho/Valor)
“A quase estagnação da economia brasileira e os sinais de que a indústria local definha são processos conjunturais. Ambos têm jeito, na avaliação de Luciano Coutinho, presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Confira abaixo a entrevista concedida ao Valor Econômico pelo presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Luciano Coutinho.
O crescimento, diz, já está a caminho e será reforçado, nos próximos anos, por uma extensa "fronteira de oportunidades", que vai da infraestrutura à saúde, entre outras áreas.
Revitalizar a indústria, contudo, é parte fundamental dessa estratégia, reconhece Coutinho. Integrante ativo das políticas industriais formuladas nos últimos anos, ele insiste que a nova agenda mantenha políticas da “velha” agenda, como conteúdo local e uso do poder de compra do Estado, como fazem outros governos, como o alemão. Ao mesmo tempo, defende que ela cada vez mais mire a inovação e incorpore um novo paradigma: para dar certo, é preciso ser competitiva a ponto de competir internacionalmente.
Valor: O governo adotou uma série de estímulos monetários e fiscais e a economia não reagiu. Por quê?
Luciano Coutinho: Talvez, a economia já tenha reagido e isso vai ficar claro no fim do mês, quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgar os dados. Todos os indicativos são de que houve crescimento expressivo no primeiro trimestre. Eu gostaria de mencionar uma série de processos que caracterizaram parte de 2011 e de 2012 e que a diferenciam da resposta rápida da economia em 2009 e 2010, quando houve recuperação em forma de V.
Valor: E agora?
Coutinho: Agora, estamos tendo uma recuperação em U, muito mais lenta. A crise na zona do euro foi em ‘câmera lenta’, com a repetição de vários episódios críticos que mantiveram incerteza muito densa por pouco mais de um ano. Mesmo depois que o Mario Draghi [presidente do Banco Central Europeu] deu a famosa declaração — “Farei tudo o que for possível para garantir os sistemas bancários porque cai dentro dos mandatos de um banco central” —, tivemos o episódio do Chipre.
Isso afeta o Brasil pelo canal da confiança?
Afeta o canal de expectativas e o de cautela. Outro fato é que a desaceleração de 2011 começou como um ato deliberado da política macroeconômica. Foram usados instrumentos macroprudenciais e uma subida inicial de juros para controlar a inflação. Sobrepôs-se a isso a crise externa. Além disso, 2011 e 2012 foram marcados por lento processo de ajuste de estoques na indústria. E foi um processo, em certo sentido, autoalimentado.
Por quê?
Como a economia crescia pouco, a produção também crescia pouco. Houve processo lento de ajuste de estoques, problematizado também pelo acirramento da concorrência internacional, com a retração do comércio em 2011 e crescimento muito medíocre em 2012. No caso brasileiro, áreas importantes de exportação industrial ficaram bloqueadas ou submetidas à forte concorrência. O canal exportação nos foi, em boa medida, obstado. Acresço a esse processo um terceiro elemento.
Qual?
O forte crescimento ocorrido entre 2004 e 2010, com breve interrupção em 2009, alavancou muito o consumo e o endividamento das famílias, além do endividamento das pequenas empresas. Esse processo em 2011 e 2012 se revestiu, diferentemente de 2009, da necessidade de desalavancagem do endividamento das famílias e das pequenas empresas, o que também travou uma das molas importantes da recuperação. Em que pese o esforço dos bancos públicos, a taxa de concessão do crédito com recursos livres desacelerou em 2011 e 2012. Só agora esse processo de desalavancagem está sendo concluído.
Quais são os indícios disso?
Os índices de inadimplência começaram a ceder, mas demoraram muito. Mas esses processos são longos. E, finalmente, tivemos um ano ruim para a agricultura em 2012. A questão relevante é: se o governo não tivesse atuado intensamente no sentido de reduzir taxa de juros, melhorar a posição relativa da taxa de câmbio em termos de competitividade, desonerar IPI e depois folha de pagamento, e se não tivesse motivado uma atuação mais forte dos bancos públicos, é muito provável que o quadro tivesse sido muito pior. Há, portanto, uma configuração conjuntural nesse período de 2011 e 2012 que está sendo extrapolada como se fora estrutural, como se tivéssemos uma perda de vitalidade da economia brasileira. O que em economês chamam de redução do PIB potencial, o que não é verdadeiro.
Por que não é estrutural?
Não é estrutural porque os grandes problemas brasileiros são também grandes oportunidades. O Brasil é um país de grandes oportunidades de investimento rentável, capazes de mobilizar capital e fazer subir a taxa agregada de formação de capital sobre o PIB, alargando o próprio crescimento potencial. É uma reflexão puramente estática tomar o passado recente como imutável. É ignorar a capacidade construtiva, tanto do governo quanto do setor privado. Quero dar exemplos de fronteiras de crescimento que o Brasil tem. Primeiro, as imensas oportunidades na área de infraestrutura logística, que constitui o cerne do programa de investimento lançado pela presidenta no ano passado, que está em processo de amadurecimento e que representará grande oportunidade de investimento em rodovias, portos, aeroportos, ferrovias, com duplo efeito, de ativar a construção pesada, de um lado, gerando empregos; e, de outro lado, de infundir eficiência crescente no funcionamento da economia. Há efeitos sistêmicos para o aumento da competitividade e redução de custos. Então, é uma fronteira relevante de investimentos. Outra fronteira muito relevante, essa já instalada e clássica, é a energia. O Brasil tem um potencial de energia a ser explorado, tanto de hidrelétricas quanto de renováveis e de outras; tem necessidade, e tem um modelo que funciona.
Esse modelo está funcionando?
O de energia? Perfeitamente. E o interesse nos leilões é ascendente, e não há razão para que não seja, e também é ascendente a curva de investimento em energia. Terceiro, temos grande fronteira na área de óleo e gás, onde eu enxergo a abertura das novas rodadas como grande oportunidade de acelerar os investimentos no setor e, se tivermos a capacidade de desenvolver a cadeia supridora, tanto melhor. Temos, ainda, a fronteira da construção. A construção residencial tem ainda grande potencial. É preciso terminar o ciclo de desalavancagem familiar, mas há ainda déficit de habitação. A combinação de instrumentos de habitação social - Minha Casa, Minha Vida - com instrumentos de créditos de longo prazo para o avanço da habitação residencial é outra avenida importante, e ela tem efeito de empuxe sobre ampla cadeia de materiais, insumos etc. Também devo mencionar os agronegócios competitivos, que têm perspectiva na medida que a Ásia, com seus processos de urbanização, é fonte de demanda e grande oportunidade.
Nem para a indústria houve perda estrutural de espaço na economia?
Se eu olhar a composição setorial do crescimento, verei que, nesse período, a indústria ficou patinando e até recuou um pouco. Dos grandes setores, foi o que mais sofreu. Como a indústria é proporcionalmente quem investe mais, o seu desempenho fraco afetou também a formação de capital. O desempenho da indústria foi afetado, além dos fatores de demanda que mencionei, pela deterioração das condições de competitividade, dada por pressões de custo. É um fenômeno que vinha acontecendo nos últimos anos, mas se acelerou em 2011 e 2012.
Que custos aumentaram?
Os custos salariais e de certos insumos importantes. Várias cadeias reclamam disso. Queria lembrar que o governo atuou. A desoneração de folha, em parte, visou aliviar pressão de custos sobre os salários. A redução da tarifa de energia foi em grande medida motivada para aliviar os custos de produção da indústria. A melhora relativa da taxa de câmbio também foi justificada publicamente pelo governo como movimento em direção a melhorar a competitividade da indústria. Temos que olhar as oportunidades que o Brasil tem de desenvolvimento industrial. É importante mencionar iniciativas como o plano Brasil Maior e iniciativas como o Inovar-Auto. O governo sinalizou claramente que a indústria é estratégica em longo prazo para o Brasil. Vejo que uma reflexão de como revitalizar a indústria é algo que está na ordem do dia. Tenho uma visão de que é, sim, possível revitalizar a indústria brasileira, ampliar um pouco o seu espaço na formação da renda nacional e voltar a ter política de competitividade e de exportação para a indústria.
De que indústria o senhor está falando? De toda a indústria? Ou talvez o Brasil tenha que olhar para a frente e lidar com o fato de que alguns setores vão desaparecer por causa da concorrência externa?
Como dizia Lavoisier, na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Antes de decretar a morte de um determinado setor ou cadeia industrial, é preciso compreender qual é a transformação competitiva possível; quais são os nichos e oportunidades que precisam ser estudados como forma de evoluir e gerar uma alternativa de sobrevivência competitiva. É evidente que qualquer política precisa olhar o que está acontecendo na divisão mundial de trabalho, a organização de cadeias, quem são os concorrentes e a viabilidade de sustentar uma capacidade de competir no quadro internacional.
O senhor diz que a capacidade de competir no quadro internacional é um critério, mas boa parte das medidas que o governo vem adotando são no sentido de proteger a indústria e dar sobrepreço para ela competir com o importado. Além disso, o governo vem exigindo conteúdo nacional. Isso não é conflituoso?
Não. Discordo de que a política seja protecionista no sentido clássico. É uma política que tem incentivos à transformação e à inovação. Em segundo lugar, é falsa a tese de que a política industrial trabalha com critérios de conteúdo local desarrazoados e ineficientes. Na verdade, já houve em várias cadeias importantes um processo de esvaziamento por dentro, o conteúdo local já diminuiu de forma significativa, principalmente nas cadeias muito longas.
O senhor pode citar um exemplo?
Na cadeia da indústria automotiva. Outro é a da cadeia eletroeletrônica, onde o esvaziamento é até anterior. Quem se recuperar dentro de critérios de competitividade e custo e com mais agregação de valor e adensamento de cadeias no país terá uma política válida. Ela não será factível se quiserem impor artificialmente às empresas normas incompatíveis com a concorrência internacional porque as empresas não farão, especialmente as que estão integradas em cadeias internacionais. Se você olha as pontuações e os incentivos que estão embutidos no Inovar-Auto...
Mas esse programa tem (exigência de) conteúdo local.
Tem, mas ele é relativamente baixo. Os níveis de conteúdo local históricos da indústria automobilística eram 90%. Hoje, estamos falando de níveis de 60%. Portanto, há grande margem dentro da política para acomodação de segmentos onde a especialização internacional já consolidou a necessidade de importar e combinar importação com a produção local. Quem tem feito a crítica a certo exagero da política de conteúdo local são economistas que não conhecem a indústria e que deveriam se informar primeiro antes de emitir opiniões taxativas a respeito.
O economista Edmar Bacha propõe o que chama de ‘Plano Real para a indústria’: uma combinação de forte redução da carga tributária com eliminação de tarifas de importação, redução da exigência de conteúdo nacional e flutuação do câmbio. Como o senhor vê isso?
A preocupação com a reindustrialização é muito positiva. Porém as políticas industriais são muito mais complexas. Não se resumem simplesmente a assegurar um câmbio competitivo, o que seria bom. Mas assegurar uma posição cambial competitiva duradoura e induzir processos de transição para o desenvolvimento no país de novas oportunidades industriais que intensifiquem processos de inovação, que capturem para a produção do país essas novas oportunidades e deem chance a determinadas cadeias de recuperarem capacidade de competir e de se adensarem, requer agendas bastante complexas, que vão além de simples combinação de tarifas com um câmbio competitivo. No mundo inteiro, existe um conjunto de instrumentos que tem sido exercitado de forma cada vez mais intensa.
De que forma?
Começa com fortes incentivos à inovação tecnológica, à disseminação de novas técnicas de automação e de produção, à qualificação e ao desenvolvimento de recursos humanos e de engenharia e à capacidade de aprendizado em muitos setores caracterizados pelas chamadas economias dinâmicas de escala. Isto significa o seguinte: é preciso começar a fazer e a repetir processos para alcançar padrões de competitividade. Além disso, há outros instrumentos usados de maneira muito intensa em várias economias.
Quais?
O uso do poder de compra público, especialmente em complexos ligados à defesa, a novas energias renováveis, a todo o complexo de saúde. A realidade nas economias desenvolvidas e em desenvolvimento hoje é de uma mobilização de instrumentos sofisticados de fomento ao desenvolvimento industrial. A tese de que o Brasil precisa revitalizar (a indústria) ou se reindustrializar, ou desenvolver novas especializações é altamente meritória e eu quero saudar esse debate, que se aperfeiçoe. Desonerar de impostos a indústria é algo positivo, pois a indústria é a maior pagadora de tributos. Ela é mais formalizada que outros setores e proporcionalmente paga mais que outros. Essa desoneração tributária da indústria poderia ser pensada imediatamente. Não precisaria esperar uma queda geral de todos os setores porque a indústria já paga mais. Em um redesenho da estrutura tributária brasileira, é válida a tese de que, dado o valor estratégico da indústria, ela não deveria ser tão penalizada quanto é hoje.
Isso será suficiente? Onde?
Não. É necessária uma estratégia. Se observarmos o que está ocorrendo no mundo, veremos estratégias muito bem afinadas.
A Alemanha tem estratégia. Os Estados Unidos não investem mais pesadamente porque os republicanos não deixam, mas eles têm estratégia. O Japão está retomando, desvalorizando o câmbio e tentando revitalizar a indústria.
Por que no Brasil há uma dificuldade de se defender uma estratégia para a indústria?
Não vejo tanta dificuldade. Vejo alguns poucos radicais defendendo a desindustrialização e a especialização em produtos primários e commodities. À medida que haja compreensão da importância da indústria, de que um sistema industrial razoavelmente sofisticado e diversificado é importante para a geração de empregos de alta qualidade e em serviços, inclusive, porque há os empregos pré e pós-manufatura dentro das cadeias, não vejo esse como um debate tão difícil. Mas, claro, existe ainda um pouco de desinformação de como são de fato complexas as estratégias de desenvolvimento industrial.
O governo Lula adotou duas políticas industriais; o governo Dilma fez duas fases do ‘Brasil Maior’. Se olharmos de 2004 para cá, a participação da indústria na economia caiu de 19% para 13% do PIB. O que deu errado?
Não houve descontinuidade das políticas. A primeira foi focada em setores intensivos em tecnologia. Isso foi mantido e se ampliou com a Parceria de Desenvolvimento Produtivo (PDP). O Brasil Maior é um passo adiante a partir da PDP, não é uma negação. Até o advento da crise internacional, em 2008, o crescimento da indústria era satisfatório bem como o aumento do investimento industrial. Embora algumas tensões competitivas já se manifestassem sobre a indústria brasileira. Acredito que os problemas começam a se tornar graves à medida que vem a segunda etapa da crise internacional.
Por quê?
Por causa de acirramento da concorrência internacional. Segundo, por causa de ciclos de apreciação do câmbio, finalmente revertidos em parte a partir de 2011 e 2012. Até 2010, foi possível não explicitar tanto as dificuldades. Elas se tornaram explícitas pelo conjunto de tensões sobre custos, perda de competitividade, a partir de 2011 e 2012, e ainda constituem desafios de primeira grandeza.
Nesse período, o BNDES adotou a política de “campeões nacionais”. Essa política foi encerrada?
O potencial de desenvolver empresas com projeção internacional, e não falo só de empresas que exportam, mas que tenham bases operacionais, isso tem valor grande. O investimento direto traz mais comércio, tem bases operacionais, consegue agregar mais valor porque se transforma em empresa de escopo internacional. No caso do Brasil, isso estava limitado, de alguma maneira, aos setores onde o país desenvolveu forte capacidade competitiva. Como seria impossível e insensato querer fabricar artificialmente empresas com projeção internacional, nós, e o mercado também e isso é importante lembrar, impulsionamos o desenvolvimento de companhias em que essas pré-condições existiam. Em larga medida, essas oportunidades foram endereçadas.
Mas a política acabou?
Se ainda existirem coisas pelo mérito de que o país desenvolva empresas de expressão internacional, elas podem ser examinadas. Quase todas essas operações foram feitas junto com o mercado de capitais. Em alguns casos, foram soluções a partir da crise, em que algumas empresas se machucaram em 2008, eram exportadoras e a solução caminhou naturalmente para consolidações que terminaram por aumentar a capacidade e a presença internacional dessas empresas. Todos os países que se desenvolveram historicamente projetaram, a partir de sua estrutura empresarial, grandes empresas internacionais.
Que exemplos o senhor dá?
O grande ciclo de internacionalização das empresas americanas começa nos anos 20, é interrompido pela Grande Depressão e ganha tremendo impulso nos anos 50, no pós-Guerra. Nos anos 60, é a vez de as grandes empresas europeias se internacionalizarem depois do período de recuperação econômica do pós-Guerra. Veio a resposta deliberada dos estados de projetar empresas dentro da Europa e transformá-las em empresas de expressão internacional. Se olharmos os anos 70, é o momento em que a economia japonesa desenvolve grandes empresas internacionais, novas marcas e novas especializações, com grande mérito porque o Japão começa a disputar segmentos altamente intensivos em inovação tecnológica e desenvolve marcas internacionais. Nos anos 80, começam a aparecer empresas coreanas. Na primeira década deste século, aparecem as chinesas em diversos segmentos. Há também um movimento de internacionalização de empresas da Índia. Se olharmos o Brasil, foi até tardio esse movimento. Não há nada de extraordinário nisso. É apenas uma expressão da importância da estrutura empresarial brasileira, em movimentos coetâneos com o capitalismo moderno. Infelizmente, dados os problemas estruturais da indústria manufatureira brasileira, que vêm desde os anos 90, o Brasil não pôde ainda desenvolver capacidade e empresas competitivas em alto valor agregado na manufatura, embora tenha uma ou outra, mas ainda não estamos no topo do pódio, ainda estamos ali em empresas que estão entre décima/vigésima. Uma exceção é a Embraer, que é um caso à parte e exemplar de desenvolvimento de política industrial, com poder de compra, desenvolvimento. Mas eu estou pensando na indústria manufatureira em geral.
Mas o senhor vê setores da indústria manufatureira onde o país ainda possa ganhar liderança mundial? Quais?
Eu acredito que, se trabalharmos em uma agenda de revitalização da indústria brasileira, uma agenda moderna que reconhece e parte da premissa de que a competitividade internacional é pré-condição para a própria formulação da política, é quase natural que se desenvolvam candidatos a se transformarem em empresas de expressão internacional.
O que é essa agenda moderna? O que tem nela que ainda não apareceu nas políticas dos últimos anos?
Primeiro, o desenvolvimento no país de todos os complexos industriais intensivos em inovação e em conhecimento. O Brasil é uma das poucas economias emergentes que não desenvolveu um complexo de tecnologia minimamente competente em tecnologia da informação com capacidade de produção, salvo poucas exceções. Não temos, dado o tamanho da nossa estrutura industrial, empresas importantes nos diversos segmentos de tecnologia de informação, como equipamentos de comunicação, de consumo, de informática, de automação. Não que não tenhamos uma ou outra empresa, até com potencial. Tivemos avanços e retrocessos e não conseguimos estruturar. Tivemos algum avanço na indústria de medicamentos e equipamentos ligados ao complexo da saúde, especialmente com a política de genéricos, que permitiu o desenvolvimento de empresas brasileiras razoavelmente líquidas e rentáveis, mas elas estão ainda em processo de dar um salto de qualidade em relação a uma nova janela de oportunidade que são os medicamentos de base biotecnológica, os biofármacos. É uma oportunidade que esta aí e que podemos ou não capturar. Olhando o complexo de saúde e usando de maneira inteligente o poder de compra, podemos desenvolver outras ou atrair empresas que possam desenvolver no país plataformas competitivas dentro do sistema global. Temos cadeia importante dada pelos grandes investimentos em petróleo e gás, em offshore, a possibilidade de desenvolver uma cadeia supridora de equipamentos e serviços mais sofisticados usando de maneira flexível e inteligente os requisitos de conteúdo local. O que, diga-se de passagem, nessa caso são bastante flexíveis aqui, falamos de um conteúdo local de 50/60%.
O senhor está falando do pré-sal?
Sim. E estamos aqui falando de processos progressivos, não são instantâneos. Se eu olhar o complexo industrial de aeronáutica, aeroespacial e defesa nós temos oportunidade de organizar melhor o nosso complexo. Temos uma empresa âncora exemplar que é talvez o exemplo solitário de empresa manufatureira internacionalmente competitiva brasileira que é a Embraer. Com a Embraer entrando no campo de defesa, e o governo tendo um conjunto de iniciativas direcionadas ao reequipamento das forças armadas, isso pode gerar um processo virtuoso de aprendizado. Aqui tem uma outra área de oportunidades. Posso olhar também as energias. O Brasil tem grande potencial em energias renováveis e é possível pensar que, a partir dessas oportunidades, posso desenvolver cadeias competitivas para essas energias. Temos, finalmente, mas não exaustivamente, um agronegócio que sempre foi muito competitivo e, aliás, é o grande exemplo de obtenção de ganhos substanciais de produtividade nos últimos anos. Tal capacidade de competir abre oportunidade para o desenvolvimento de empresas supridoras, tanto de equipamentos agrícolas, seja instalação de base de empresa internacional, que usa o Brasil como plataforma competitiva, seja no desenvolvimento no Brasil de toda a indústria de genética vegetal e animal, seja toda a indústria química aplicada ao agronegócio, defensivos e fertilizantes. Outra área é o etanol de segunda geração. Então, há oportunidades. O que nos faltou? É pensar o desenvolvimento da indústria de maneira articulada às oportunidades concretas de inserção competitiva que o Brasil possa vir a ter, inclusive das commodities. Eu, outra vez, reafirmo aqui o seguinte: se tivermos consciência da relevância estratégica da indústria e tivermos a sensatez de elaborar políticas que reconheçam a necessidade de competir internacionalmente, usem de maneira inteligente e flexível as políticas de adensamento de cadeias locais, capturem as oportunidades e usem as ferramentas e instrumentos que os países todos utilizam. Esses instrumentos são intensivos especialmente em estímulos, e inclusive, subsídios à inovação, e uso do poder de compra. É possível pensar no desenvolvimento de oportunidades para a indústria e projetar, no futuro, se o paradigma funcionar, que o Brasil tenha também empresas de expressão internacional nesses setores. Se o jogo da competição é global, é natural que, ao desenvolver uma indústria competitiva, ela participe do jogo global.
Mas não é contraditório que o exemplo que o senhor citou como melhor empresa da indústria brasileira é a Embraer, que atua em um setor onde não existe regra de conteúdo local?
A Embraer é uma exceção dentre todas as empresas internacionais do setor porque a base de suprimento local é a mais frágil quando comparada com as outras indústrias aeronáuticas do mundo.
Ela não é adensada no Brasil?
Isso, ela tem pouco adensamento no Brasil. O que é característico dela é sua capacidade de projetar produtos “estado-da-arte”, extremamente eficientes. E mostrou que é possível funcionar, ainda que com baixo conteúdo local, razoavelmente bem. Mas se você perguntar, é o ideal? Não. Se for possível ter um adensamento mais eficiente, tanto melhor. O que eu quero também dizer é que o exemplo da Embraer é especial, mas ela não pode ser um paradigma para toda a indústria, ela tem características especiais. Ela faz parte de uma indústria de altíssima especialização no plano internacional, com pouquíssimos produtores. É estruturalmente diferente de outras indústrias.
Então não daria para replicar o modelo dela em outros setores?
Talvez seja possível replicar o modelo em alguns segmentos parecidos onde a especialização internacional é muito grande e onde as cadeias de suprimento são poucas e internacionalmente especializadas. Para setores que vistam esse figurino é possível. O que estou dizendo é que esse figurino não é paradigma para a indústria toda. É desconhecimento de economia industrial achar que é. E tem muita gente opinando em economia industrial sem entender sua complexidade.
Mas olhando para esses setores e também para o programa de logística, onde só nele se tem pelo menos R$ 250 bilhões de projetos a serem financiados em um prazo relativamente curso, não vão faltar recursos? Qual a capacidade do BNDES de dar conta desse funding?
Essa já é outra pergunta, eu ainda nem mencionei a infraestrutura social, onde o Brasil é carente em metrô, trens urbanos, saneamento básico. Então, eu enxergo muitas fronteiras. E vejo os Estados brasileiros, graças ao longo cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, agora habilitados, uma parcela deles, a investir em infraestrutura como suporte aos investimentos federais. Ainda é importante lembrar minha visão de que é possível revitalizar e construir uma nova indústria competitiva no Brasil. Somando todos esses fatores, não há porque o Brasil não possa se desenvolver a taxas mais altas. Certamente, é preciso avançar em reformas que tornem o Estado mais eficiente, mas eu queria sublinhar uma coisa aqui: para a concretização de muitas dessas oportunidades é preciso resgatar a capacidade de pensar e planejar a longo prazo. Temos que combinar inteligentemente o dinamismo do setor privado operando sobre regras de mercado, que é a forma mais eficiente de alocar recursos, com a capacidade [do Estado] ordenadora de visões de longo prazo que sejam mobilizadoras e deem horizonte de previsibilidade para o setor privado. Conseguindo chegar lá, o Brasil se desenvolve com taxas de crescimento muito mais altas do que essas.
É curioso que o Brasil, tendo superado a hiperinflação, e estando há 18 anos no processo de estabilização da economia, ainda não consiga.
Eu discordo. Se eu olhar qual era a Formação de Capital Fixo sobre PIB até 2002/2003, ela estava em 15%/16%. Nós conseguimos agregar 4 pontos percentuais, chegamos a 19,5%, caímos para 18%, vamos voltar para 20%, 21%. Já agregamos isso com todas as precariedades e dificuldades de consolidação da última etapa da estabilização brasileira, que só veio mesmo quando acumulamos reservas, e deu para fazer um colchão de câmbio. Já conseguimos fazer um salto, a formação já subiu de 15% para 19%. Agora, precisamos dar outro salto, de 19% para 23%. É possível, perfeitamente possível.
Mas voltando à pergunta: haverá funding? Até porque de 15% para 19%, o BNDES ficou de que tamanho? E para ir de 19% para 23%? E não só BNDES, mas pergunto do funding para todos os projetos de investimento, incluindo o programa de logística.
E a resposta é mobilização e desenvolvimento do mercado de capitais junto com o BNDES, uma agenda da qual já falamos. O BNDES pode crescer um pouquinho mais? Pode, mas não vai dar conta de tudo, e o mercado precisa se desenvolver.”
Primeiro, o desenvolvimento no país de todos os complexos industriais intensivos em inovação e em conhecimento. O Brasil é uma das poucas economias emergentes que não desenvolveu um complexo de tecnologia minimamente competente em tecnologia da informação com capacidade de produção, salvo poucas exceções. Não temos, dado o tamanho da nossa estrutura industrial, empresas importantes nos diversos segmentos de tecnologia de informação, como equipamentos de comunicação, de consumo, de informática, de automação. Não que não tenhamos uma ou outra empresa, até com potencial. Tivemos avanços e retrocessos e não conseguimos estruturar. Tivemos algum avanço na indústria de medicamentos e equipamentos ligados ao complexo da saúde, especialmente com a política de genéricos, que permitiu o desenvolvimento de empresas brasileiras razoavelmente líquidas e rentáveis, mas elas estão ainda em processo de dar um salto de qualidade em relação a uma nova janela de oportunidade que são os medicamentos de base biotecnológica, os biofármacos. É uma oportunidade que esta aí e que podemos ou não capturar. Olhando o complexo de saúde e usando de maneira inteligente o poder de compra, podemos desenvolver outras ou atrair empresas que possam desenvolver no país plataformas competitivas dentro do sistema global. Temos cadeia importante dada pelos grandes investimentos em petróleo e gás, em offshore, a possibilidade de desenvolver uma cadeia supridora de equipamentos e serviços mais sofisticados usando de maneira flexível e inteligente os requisitos de conteúdo local. O que, diga-se de passagem, nessa caso são bastante flexíveis aqui, falamos de um conteúdo local de 50/60%.
O senhor está falando do pré-sal?
Sim. E estamos aqui falando de processos progressivos, não são instantâneos. Se eu olhar o complexo industrial de aeronáutica, aeroespacial e defesa nós temos oportunidade de organizar melhor o nosso complexo. Temos uma empresa âncora exemplar que é talvez o exemplo solitário de empresa manufatureira internacionalmente competitiva brasileira que é a Embraer. Com a Embraer entrando no campo de defesa, e o governo tendo um conjunto de iniciativas direcionadas ao reequipamento das forças armadas, isso pode gerar um processo virtuoso de aprendizado. Aqui tem uma outra área de oportunidades. Posso olhar também as energias. O Brasil tem grande potencial em energias renováveis e é possível pensar que, a partir dessas oportunidades, posso desenvolver cadeias competitivas para essas energias. Temos, finalmente, mas não exaustivamente, um agronegócio que sempre foi muito competitivo e, aliás, é o grande exemplo de obtenção de ganhos substanciais de produtividade nos últimos anos. Tal capacidade de competir abre oportunidade para o desenvolvimento de empresas supridoras, tanto de equipamentos agrícolas, seja instalação de base de empresa internacional, que usa o Brasil como plataforma competitiva, seja no desenvolvimento no Brasil de toda a indústria de genética vegetal e animal, seja toda a indústria química aplicada ao agronegócio, defensivos e fertilizantes. Outra área é o etanol de segunda geração. Então, há oportunidades. O que nos faltou? É pensar o desenvolvimento da indústria de maneira articulada às oportunidades concretas de inserção competitiva que o Brasil possa vir a ter, inclusive das commodities. Eu, outra vez, reafirmo aqui o seguinte: se tivermos consciência da relevância estratégica da indústria e tivermos a sensatez de elaborar políticas que reconheçam a necessidade de competir internacionalmente, usem de maneira inteligente e flexível as políticas de adensamento de cadeias locais, capturem as oportunidades e usem as ferramentas e instrumentos que os países todos utilizam. Esses instrumentos são intensivos especialmente em estímulos, e inclusive, subsídios à inovação, e uso do poder de compra. É possível pensar no desenvolvimento de oportunidades para a indústria e projetar, no futuro, se o paradigma funcionar, que o Brasil tenha também empresas de expressão internacional nesses setores. Se o jogo da competição é global, é natural que, ao desenvolver uma indústria competitiva, ela participe do jogo global.
Mas não é contraditório que o exemplo que o senhor citou como melhor empresa da indústria brasileira é a Embraer, que atua em um setor onde não existe regra de conteúdo local?
A Embraer é uma exceção dentre todas as empresas internacionais do setor porque a base de suprimento local é a mais frágil quando comparada com as outras indústrias aeronáuticas do mundo.
Ela não é adensada no Brasil?
Isso, ela tem pouco adensamento no Brasil. O que é característico dela é sua capacidade de projetar produtos “estado-da-arte”, extremamente eficientes. E mostrou que é possível funcionar, ainda que com baixo conteúdo local, razoavelmente bem. Mas se você perguntar, é o ideal? Não. Se for possível ter um adensamento mais eficiente, tanto melhor. O que eu quero também dizer é que o exemplo da Embraer é especial, mas ela não pode ser um paradigma para toda a indústria, ela tem características especiais. Ela faz parte de uma indústria de altíssima especialização no plano internacional, com pouquíssimos produtores. É estruturalmente diferente de outras indústrias.
Então não daria para replicar o modelo dela em outros setores?
Talvez seja possível replicar o modelo em alguns segmentos parecidos onde a especialização internacional é muito grande e onde as cadeias de suprimento são poucas e internacionalmente especializadas. Para setores que vistam esse figurino é possível. O que estou dizendo é que esse figurino não é paradigma para a indústria toda. É desconhecimento de economia industrial achar que é. E tem muita gente opinando em economia industrial sem entender sua complexidade.
Mas olhando para esses setores e também para o programa de logística, onde só nele se tem pelo menos R$ 250 bilhões de projetos a serem financiados em um prazo relativamente curso, não vão faltar recursos? Qual a capacidade do BNDES de dar conta desse funding?
Essa já é outra pergunta, eu ainda nem mencionei a infraestrutura social, onde o Brasil é carente em metrô, trens urbanos, saneamento básico. Então, eu enxergo muitas fronteiras. E vejo os Estados brasileiros, graças ao longo cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, agora habilitados, uma parcela deles, a investir em infraestrutura como suporte aos investimentos federais. Ainda é importante lembrar minha visão de que é possível revitalizar e construir uma nova indústria competitiva no Brasil. Somando todos esses fatores, não há porque o Brasil não possa se desenvolver a taxas mais altas. Certamente, é preciso avançar em reformas que tornem o Estado mais eficiente, mas eu queria sublinhar uma coisa aqui: para a concretização de muitas dessas oportunidades é preciso resgatar a capacidade de pensar e planejar a longo prazo. Temos que combinar inteligentemente o dinamismo do setor privado operando sobre regras de mercado, que é a forma mais eficiente de alocar recursos, com a capacidade [do Estado] ordenadora de visões de longo prazo que sejam mobilizadoras e deem horizonte de previsibilidade para o setor privado. Conseguindo chegar lá, o Brasil se desenvolve com taxas de crescimento muito mais altas do que essas.
É curioso que o Brasil, tendo superado a hiperinflação, e estando há 18 anos no processo de estabilização da economia, ainda não consiga.
Eu discordo. Se eu olhar qual era a Formação de Capital Fixo sobre PIB até 2002/2003, ela estava em 15%/16%. Nós conseguimos agregar 4 pontos percentuais, chegamos a 19,5%, caímos para 18%, vamos voltar para 20%, 21%. Já agregamos isso com todas as precariedades e dificuldades de consolidação da última etapa da estabilização brasileira, que só veio mesmo quando acumulamos reservas, e deu para fazer um colchão de câmbio. Já conseguimos fazer um salto, a formação já subiu de 15% para 19%. Agora, precisamos dar outro salto, de 19% para 23%. É possível, perfeitamente possível.
Mas voltando à pergunta: haverá funding? Até porque de 15% para 19%, o BNDES ficou de que tamanho? E para ir de 19% para 23%? E não só BNDES, mas pergunto do funding para todos os projetos de investimento, incluindo o programa de logística.
E a resposta é mobilização e desenvolvimento do mercado de capitais junto com o BNDES, uma agenda da qual já falamos. O BNDES pode crescer um pouquinho mais? Pode, mas não vai dar conta de tudo, e o mercado precisa se desenvolver.”
FONTE: do jornal “Valor”. Transcrito no portal “Vermelho” (http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=212834&id_secao=2).
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