quarta-feira, 4 de setembro de 2013

“SUPERPOTÊNCIA MORAL”? DÁ UM TEMPO...

“É impossível afirmar que os Estados Unidos, país responsável pela maior parte do derramamento de sangue desde a Segunda Guerra Mundial na Ásia, América do Sul, Afeganistão e Iraque, seja dirigido por considerações morais. O ataque a Síria seria um Iraque II. Os EUA – que nunca foram punidos pelas mentiras do Iraque I e pelas centenas de milhares de mortos em vão nessa guerra - dizem que uma guerra similar deveria ser lançada. Mais uma vez, uma cortina de fumaça. 

Por Gideon Levy, no jornal online israelense “Haaretz”.

“Um exercício de honestidade (e de duplo padrão de julgamento): o que aconteceria se Israel usasse armas químicas? Os Estados Unidos também afirmariam que iriam atacar? E o que aconteceria se os Estados Unidos mesmo tomasse essas medidas? É verdade, Israel jamais usaria armas de destruição em massa, embora as tenha em seu arsenal, exceto sob circunstâncias extremas. Mas o país já usou armas proibidas pelo direito internacional – fósforo branco contra a população civil em Gaza, bombas de fragmentação no Líbano – e o mundo não levantou o seu dedo. E seria preciso poucas palavras para descrever as armas de destruição em massa usadas pelos Estados Unidos, das bombas nucleares no Japão ao Napalm no Vietnã.

Mas a Síria, é claro, é outro assunto. Afinal de contas, ninguém pode seriamente pensar que um ataque a Síria sob o regime do Presidente Bashar Assad repousa em considerações morais. 100 000 mortos nesse país infeliz não convenceram o mundo a se coçar para tomar uma atitude, e apenas o informe da morte de 1400 por armas químicas – o qual não foi provado de maneira conclusiva – está persuadindo o exército da salvação mundial a agir.

Tampouco alguém poderia suspeitar que a maioria dos israelenses que apoiam o ataque – 67% de acordo com a pesquisa encomendada pelo jornal Israel “Hayom” – são motivados pela preocupação com o bem estar dos cidadãos sírios. No, provavelmente, único país do mundo em que maioria da opinião pública apoia um ataque, o princípio que o orienta é completamente estrangeiro: ataque aos árabes; não importa por que, apenas o quanto – muito.

Ninguém pode seriamente pensar que os Estados Unidos é uma “superpotência moral”, como Ari Shavit o definiu nas páginas deste jornal. O país responsável pelo maior derramamento de sangue desde a Segunda Guerra Mundial – alguns falam em algo como 8 milhões de mortos em suas mãos no sudeste da Ásia, na América do Sul, Afeganistão e Iraque – não pode ser considerado “uma potência moral”. Nem o pode o país no qual um quarto dos prisioneiros do mundo estão encarcerados, em que o percentual de prisioneiros é maior do que na China e na Rússia; e onde 1342 pessoas foram executadas – cumprindo pena de morte – desde 1976.

Até a afirmação de Shavit, de que “A nova ordem internacional que emergiu após a Segunda Guerra Mundial foi pensada para assegurar...que o cenário de horror e morte por gás não se repetisse” está desconectado da realidade. Na Coréia, no Vietnã, no Camboja, em Ruanda e no Congo, assim como na Síria, essa afirmação infundada pode somente causar um sorriso azedo.

O ataque assim seria um Iraque II. Os Estados Unidos – que nunca foram punidos pelas mentiras do ataque Iraque I e pelas centenas de milhares de mortos em vão nessa guerra - dizem que uma guerra similar deveria ser lançada. Mais uma vez, uma cortina de fumaça, com evidência parcial, e com linhas vermelhas traçadas pelo próprio presidente Barack Obama, e agora ele é obrigado a manter a sua palavra. Na Síria, uma guerra civil cruel se aproxima e o mundo deve tentar barrá-la; o ataque americano não fará isso.

Informes da Síria são aparentemente tendenciosos. Ninguém sabe o que exatamente está acontecendo, ou a identidade dos mocinhos e dos bandidos, se assim podem eles ser definidos.

Deveríamos escutar as sábias palavras de uma freira da Síria, a Irmã Agnes-Mariam de la Croix, que se queixou para mim, ao longo do fim de semana – do mosteiro em Jerusalém onde ela estava ficando, a caminho de volta da Malásia para a Síria – a respeito da imprensa mundial. A Irmã Agnes–Mariam descreveu o quadro de maneira diferente da maior parte da imprensa. Há uns 150 000 jihadistas na Síria, ela diz, e eles são os responsáveis pela maior parte das atrocidades. O regime de Assad é o único que pode barrá-los, e a única coisa que o mundo deve fazer é parar de fornecer-lhes militantes e de armá-los. “Eu não entendo o que o mundo quer. Ajudar a Al-Qaeda? Criar um estado jihadista na Síria?”.

Essa madre superiora, cujo mosteiro está localizado numa via que vai de Damasco a Homs, está certa de que um ataque americano só fortalecerá os jihadistas. “É isso o que o mundo quer? Um outro Afeganistão?”.

Talvez o mundo saiba o que quer, talvez não. Mas uma coisa agora parece clara: outro ataque dos Estados Unidos poderá se tornar outro desastre.”

FONTE: escrito por Gideon Levy, no jornal online israelense “Haaretz”. Transcrito no site “Carta Maior” com tradução de Katarina Peixoto   (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22631).

Nenhum comentário: