“Apenas dez meses após o início do período mais turbulento da economia global em oito décadas, o Brasil dá sinais de que, por aqui, a crise foi mais rápida do que se imaginava. A Análise é da revista Exame, que credita a façanha ao mercado, sem reconhecer que foi a gestão da economia do país e as medidas tomadas pelo governo Lula que permitiu ao Brasil transformar o "tsunami" da crise numa "marola" sem graves consequências para o país.
Confira abaixo a íntegra da reportagem:
Apenas três semanas separaram o início da produção brasileira de notebooks pela coreana LG, em agosto de 2008, da quebra do banco americano Lehman Brothers, estopim do que já é vista como a maior crise econômica global em oito décadas. Parecia uma daquelas coincidências infelizes, em que um evento fora de qualquer radar faz ruir todas as expectativas positivas traçadas previamente.
Menos de um ano após sua inauguração, a divisão de notebooks, em Taubaté, no interior paulista, é uma das estrelas da LG no Brasil. "Foi uma surpresa. Só não vendemos mais porque não temos mais produto para entregar", diz o diretor de marketing, Eduardo Toni. Estima-se que, em 2009, serão vendidos 12 milhões de computadores no Brasil -- repetindo a marca histórica do ano passado e posicionando o país como o quinto maior mercado mundial. Lá fora, a GM acaba de sair de uma concordata que muitos julgavam inimaginável e tenta vender parte de suas operações na Europa para fazer caixa. Aqui, seus executivos acabam de anunciar um investimento de 2 bilhões de reais para ampliar a produção em sua fábrica em Gravataí, no Rio Grande do Sul. A indústria automobilística espera vender 3 milhões de carros no país, um recorde histórico num ano que tinha tudo para ser um pesadelo. Alguns representantes da indústria já esperam que, ao final de 2009, o Brasil supere a China como o mercado de carros que mais cresce no mundo. Recentemente, o McDonald’s anunciou que vai contratar 2 500 jovens em diferentes regiões do país e aumentar em 5% seu quadro de funcionários. Os novos empregados trabalharão nos 26 restaurantes que a rede deve inaugurar em 2009 -- e se somam à massa de 300 000 novos empregos criados nos seis primeiros meses do ano na economia como um todo. É possível que muitos desses trabalhadores usem parte dos salários que receberão para comprar computadores da LG ou, quem sabe, carros da GM.
Não estamos aqui falando de previsões -- mas de fatos, das coisas como elas realmente são. Em tempos de ansiedade e apreensão, em dias em que os países desenvolvidos sofrem com uma terrível ressaca, a economia brasileira volta a crescer. Contrariando o histórico turbulento do país, tudo indica que, para o Brasil, a crise -- na correta acepção da palavra -- ficou para trás. "Por aqui, a crise, entendida como uma ruptura do crescimento, já acabou", diz o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-ministro das Comunicações e sócio da Quest Investimentos. "Na comparação com os outros, o preço pago por nós foi pequeno. Incluímos muita gente no mercado de trabalho nos últimos anos e isso não foi afetado de forma radical. Essa é a base de nossa volta ao crescimento."
Para quem pagou esse preço com o próprio emprego ou com a concordata, esta crise é tão real e cruel quanto qualquer outra. Por meses, a sombra dessas histórias pairou sobre a economia.
Durante dois trimestres, houve queda no PIB, um quadro de recessão alimentado por falta de crédito, perda da confiança, redução das vendas e interrupção da produção. O ponto é que essa é uma imagem vista pelo retrovisor. Já estamos, neste momento, vivendo a fase seguinte, de retomada. Considerando um ano hipotético, com início no último dia 1o de julho, as previsões para o PIB em 12 meses são de crescimento considerável -- os prognósticos de uma dezena de economistas ouvidos por EXAME variam de 2,9% a 4,5%. Trata-se de uma melhoria notável, dado que a projeção do relatório Focus, elaborado pelo Banco Central com base em consulta a uma centena de instituições financeiras, aponta uma retração de 0,3% em 2009. Para identificar como essa recuperação ocorre no mundo real -- e no presente --, EXAME realizou nas últimas semanas uma pesquisa com 360 empresas com atuação no país. Um dado concreto chama a atenção: 70% delas retomaram, não alteraram ou estão ampliando investimentos.
Sempre que há uma reversão do quadro econômico, é normal que o panorama posterior seja algo incoerente. Afinal, a economia é a soma de milhões de ações individuais e, naturalmente, nem tudo caminha no mesmo ritmo ou sentido. Notícias positivas e negativas ainda vão conviver por algum tempo. Aos poucos, porém, começam a se somar evidências de que as dores, daqui para a frente, serão mais as do crescimento do que o contrário. Recentemente, o consumidor voltou a conviver com filas de espera para comprar alguns modelos de veículo -- sobretudo os mais populares, nos quais a isenção de IPI chega a representar cerca de 10% do preço, ou algo como 2 700 reais de desconto em um modelo como o Ka. Trata-se de uma diferença brutal -- e decisiva -- para o emergente consumidor brasileiro.
Grandes redes varejistas começam a enfrentar dificuldades para repor os estoques de alguns produtos, como notebooks, lavadoras de roupas e geladeiras. Parte da explicação para esse descompasso reside no fato de que algumas empresas, principalmente na área industrial, reduziram a produção abruptamente, seja por falta de crédito para tocar as operações, seja simplesmente por medo. "A indústria não estava preparada para vender tanto", diz Luiz Carlos Batista, presidente da Insinuante, rede baiana com 255 lojas espalhadas por Nordeste, Norte e Sudeste. No mês de junho, as vendas da rede cresceram 10% quando comparadas ao mesmo período do ano passado, após enfrentar perdas de 8% no faturamento nos quatro primeiros meses de 2009. Com receita de 2 bilhões de reais no ano passado, a Insinuante retomou em julho sua expansão, com a inauguração de quatro lojas em Manaus. Foram 100 milhões de reais investidos no Amazonas, onde Batista pretende abrir outras dez lojas até o fim do ano.
Por que, afinal, o Brasil emerge tão rapidamente de um cenário pintado como a antessala do fim do mundo? Como um país historicamente associado às confusões na economia surge como um dos mais bem alicerçados em todo o mundo? São essas questões que vão, a partir de agora, deliciar economistas, cientistas políticos, sociólogos e pensadores em geral. Debates acadêmicos à parte, é possível que o enigma seja parcialmente explicado pelo atual estágio do setor privado brasileiro.
De acordo com a última edição de MELHORES E MAIORES, de EXAME, há hoje no país 17 grupos empresariais com faturamento anual superior a 10 bilhões de dólares -- boa parte deles com atuação internacional. Talvez mais importante que o tamanho -- afinal esta crise nos ensina que ninguém é grande demais para quebrar -- seja a evolução da gestão. Há 12 anos, a crise da Ásia deu um golpe de morte numa das maiores redes do país, a Lojas Arapuã. A empresa cresceu velozmente nos primeiros anos do Real. Quebrou quando a economia desacelerou e a inadimplência disparou, em 1998. Nada remotamente parecido ocorreu desta vez. "A gestão nas grandes redes varejistas está mais profissional e o risco que elas assumem hoje é muito menor", diz Armando Vale, diretor de relações institucionais da Whirlpool, dona das marcas Brastemp e Consul e maior fabricante de eletrodomésticos do país. A estabilidade econômica dos últimos anos também levou à concentração e ao fortalecimento dos grandes grupos. No final do ano passado, em meio às incertezas da crise, o grupo Pão de Açúcar anunciou a suspensão de boa parte de seus investimentos. Do 1,2 bilhão de reais previsto para suportar projetos de expansão, apenas 500 milhões seriam gastos. Mas, desde então, as vendas nos supermercados só aumentam. Nos cinco primeiros meses do ano, as vendas do setor aumentaram mais de 5% em relação ao mesmo período de 2008. E os planos, aparentemente, mudaram de novo. Em junho, o Pão de Açúcar comprou a rede de eletrodomésticos Ponto Frio. Nas últimas semanas, adquiriu o controle total da rede de atacado Assai. Os investimentos nas duas aquisições somam mais de 1 bilhão de reais. "Continuamos investindo porque sabíamos que a economia voltaria a crescer. Isso começa a ficar claro agora", diz José Roberto Tambasco, vice-presidente comercial e de operações do grupo Pão de Açúcar.
Conscientemente ou não, empresários e executivos exploram aquele que tem sido o grande motor do crescimento brasileiro nos últimos anos -- o mercado interno. Qualquer avaliação da evolução da crise passa pela análise do comportamento do consumo, responsável por 60% do PIB. Sua variação retrata a dinâmica dos acontecimentos no país. Nos últimos meses de 2008, o temor de que a desaceleração econômica provocasse uma onda profunda de desemprego derrubou a confiança do consumidor. Cerca de 800 000 pessoas perderam o emprego de novembro do ano passado a fevereiro de 2009. A redução no mercado de trabalho afugentou o consumidor das lojas, dando início ao processo de queda da velocidade de toda a economia. A perda maciça de empregos, no entanto, durou cerca de três meses. Desde então, a roda se inverteu e 300 000 empregos foram criados em um semestre. O Brasil está entre os poucos países, da lista das 20 maiores economias do mundo, que devem fechar o ano com aumento de empregos, um saldo estimado em cerca de 600 000. "A economia brasileira ainda padece de uma série de distorções.
Quando se elimina uma delas, como no caso da redução do IPI, o crescimento vem fácil", diz Sérgio Vale, economista-chefe da consultoria MB Associados.
Passado o susto inicial, o consumo das famílias se expandiu 1,3% no primeiro trimestre de 2009, amparado pelo aumento da renda. A projeção é que o consumo termine o ano com crescimento de 1,9% -- número modesto perto dos 5,4% registrados em 2008, mas ainda assim passível de comemoração. Mas o que está nas entrelinhas desse dado é que, mesmo com menos crédito à disposição, o brasileiro continuou a ir às compras. "O apetite do consumidor não mudou. As pessoas têm carência de serviços, querem e podem comprar", diz o israelense Amos Genish, presidente da GVT, operadora que fornece serviços de telefonia e internet em 14 estados do país.
"Em nosso setor, ainda há muita gente sem acesso à internet banda larga." Ao perceber que os negócios continuavam em ritmo crescente, ainda em dezembro, Genish aumentou em 100 milhões de reais a previsão de investimento neste ano. Serão cerca de 600 milhões de reais, destinados à melhoria da rede existente e à expansão em novos centros urbanos. "Sentimos que é o momento de expandir o negócio. O Brasil é hoje um dos melhores lugares para investir no mundo", diz Genish.
Se o Brasil é hoje um dos melhores lugares para investir no mundo, o Nordeste se transformou num dos melhores lugares para investir no Brasil. "A percepção é que a região foi menos afetada pela turbulência", diz Luiz Borges de Medeiros Neto, gestor do Fundo Nordeste II, que acaba de ser criado pela Rio Bravo, administradora de recursos que tem entre os sócios o ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco. É a segunda incursão da Rio Bravo na região. Desta vez, serão destinados 141 milhões de reais para a compra de participações em companhias nordestinas de médio porte nos setores de alimentos, bebidas e serviços de apoio à indústria, além de educação e saúde. O interesse por negócios com esse perfil cresce à medida que a renda na região sobe.
Apenas como exemplo, na última pesquisa mensal de emprego do IBGE, realizada em maio, a região metropolitana de Salvador mostrou um aumento real de 5% no rendimento médio domiciliar em comparação ao mesmo período do ano anterior. No Brasil todo, o crescimento foi de 3,4%. É evidente que há um novo mercado surgindo -- e isso é quase tudo o que homens e mulheres de negócios podem desejar num momento em que o mundo inteiro só fala nela, A Crise.
Mesmo os setores que sofreram mais redução de vendas já começam a rever a estratégia defensiva.
Em geral, são empresas menos ligadas ao mercado interno e que, por isso, sentem mais quando o mundo desacelera -- um estudo recente do BNDES mostra que a redução das exportações respondeu por metade da queda da produção industrial de setembro de 2008 a março deste ano. A Bahia Pulp, fabricante de celulose solúvel para exportação, paralisou em novembro uma de suas duas linhas de produção, reduzindo em um terço sua capacidade. O corte ocorreu quatro meses depois de a empresa de capital chinês ter ampliado sua fábrica no Brasil. "Os pedidos sumiram com a crise e o estoque quase triplicou", diz Cláudio Cotrim, diretor financeiro da Bahia Pulp. A retração afetou fabricantes do setor no mundo todo. Quatro empresas de celulose fecharam na Europa após o agravamento da crise. Mas com a redução da oferta e o retorno da atividade industrial o mercado voltou a ficar favorável para a Bahia Pulp. Em junho, a fábrica foi reativada.
"Hoje, estamos vendendo quatro vezes mais do que há um ano", diz Cotrim. As siderúrgicas -- uma das bases da indústria no país -- também começam a retomar a produção. Entre dezembro e março, seis dos 14 principais altos-fornos do país foram desligados e o uso da capacidade das siderúrgicas caiu para apenas 49%. O vigor do mercado brasileiro e a leve melhora no cenário externo fizeram com que, nas últimas semanas, as companhias passassem a anunciar sucessivamente o religamento dos fornos.
A CSN retomou, em junho, a operação de um alto-forno em reforma havia três meses e ampliou de 65% para 90% o uso da capacidade de sua unidade em Volta Redonda, no Rio de Janeiro. A Gerdau recolocou em operação o maior alto-forno da Gerdau Açominas na primeira semana de julho. Dias atrás, a Usiminas se preparava também para reativar dois dos três fornos que havia desligado.
Quando se considera a economia como um todo, já é possível delinear as principais características da reação em curso.
Em primeiro lugar, fica claro que ela veio mais cedo do que muitos esperavam. Nesse sentido, a crise, embora intensa, foi breve -- durou, para valer, dois trimestres.
Em segundo, é claro que algumas empresas e setores estão reagindo antes e com mais força. A situação tende a ser melhor para quem atua mais perto do consumidor. Em terceiro, a volta ao ritmo de crescimento pré-crise não deve ocorrer rapidamente.
Embora tenha mostrado uma resistência invejável, o Brasil está integrado à ainda combalida economia global. Por fim, o investimento anda um passo atrás do consumo -- exatamente o que sugerem os manuais clássicos de recuperação após crises.
Por natureza, o capital é medroso. É, paradoxalmente, ansioso por achar um porto onde possa se multiplicar. Os portos seguros são escassos no mundo de hoje.
Provavelmente essa seja a explicação para a vinda ao Brasil de mais de 11 bilhões de dólares em investimentos estrangeiros no período de janeiro a maio deste ano. No primeiro trimestre, o país ficou com 2,4% dos investimentos feitos no mundo -- em 2007, a participação brasileira foi de 1,9%. "As buscas de estrangeiros por cenários de longo prazo aumentaram muito", diz Octávio de Barros, economista-chefe do Bradesco. "Se antes era impensável para um empresário não ter negócios na China, agora o mesmo acontece em relação ao Brasil." Aqui, a expectativa é de retomada dos investimentos no segundo semestre, com a gradual recuperação da produção. A utilização da capacidade instalada na indústria chegou perto de 80% em maio, a quarta alta seguida do ano. "Formou-se uma capacidade ociosa muito grande no final do ano passado", diz Fábio Akira, economista-chefe do banco JPMorgan no Brasil, que trabalha com uma previsão de crescimento da economia de 4,5% nos próximos 12 meses. "Há uma demora natural para a retomada dos investimentos, que agora começam a aparecer."
A americana Alcoa, maior produtora mundial de alumínio, possui 31 subsidiárias espalhadas pelo mundo. A brasileira foi a única a manter seu cronograma de investimentos, de 1,2 bilhão de dólares, inalterado. "Seria antieconômico parar agora. Mas não foi fácil convencer a matriz", diz Franklin Feder, presidente da Alcoa Brasil. "Para persuadir o conselho da Alcoa a manter o investimento na mina de bauxita em Juriti, no Pará, aleguei que, se parássemos agora um investimento no meio da Amazônia, a floresta engoliria o que já havíamos feito." A mina -- um empreendimento que consumiu 3,5 bilhões de reais em recursos e quase nove anos de trabalho -- começa a operar em setembro.
Com base em dados de empresas como a Alcoa, o BNDES projeta para o ano uma taxa de investimento igual à de 2008 -- nada mau para o ano da Crise. O desempenho geral da economia no segundo semestre, porém, será decisivo para a reação de outros setores que ainda precisam tomar mais impulso, como a construção. "Há uma ansiedade para fazer o segundo semestre acontecer", diz Marise Barroso, presidente da Amanco, fabricante de tubos e conexões de plástico, que elevou sua capacidade instalada em 20% neste ano. Os indicadores a ser colhidos nos meses de agosto e setembro orientarão o planejamento da Amanco para 2010, que será concluído em outubro. A expectativa é que, na virada do ano, o mercado de construção civil esteja a todo o vapor, impulsionado por programas de financiamento de moradias, como o Minha Casa, Minha Vida. O estímulo à construção também ajudará a reativar os negócios de empresas como a Termomecânica, de metalurgia básica, um dos setores em que a recuperação está no início.
Há duas maneiras de encarar o atual momento do país, ambas importantes. A primeira é com um olhar de curto prazo -- vital para quem precisa decidir onde investir, quem contratar, quanto produzir. A segunda é desviar o olhar do presente e captar o fenômeno mais amplo que a crise -- e a reação a ela -- traduz. Trata-se, sem ufanismo ou ingenuidade, da ascensão brasileira a um novo patamar de desenvolvimento. Historicamente, crises externas sempre se traduziram em mais inflação, no front interno, e falta de dólares, no externo. O resultado aqui era o caos. O cenário hoje é o oposto do que se viu no passado -- a inflação permanece domada e o país acumula reservas. A crise perdeu força ao cruzar a fronteira. Nesse sentido, é como se o Brasil tivesse passado numa espécie de teste. A crise colocou o país, sua economia, suas empresas e seu mercado em xeque. Os fatos gerados nas fábricas, nas lojas, nas ruas mostram que -- uau! -- estamos saindo da armadilha muito melhor e mais rápido do que nós mesmos imaginávamos.”
FONTE: Revista Exame desta semana. Postado no site “Vermelho” em 01/08/2009.
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