Há um estranho ruído no ar. Velhas raposas que aparelharam a Organização Mundial do Comércio (OMC) ameaçam com novas leis, que lhes darão capacidade para retaliar os países emergentes, que procuram utilizar as compras governamentais como instrumento para ampliar a sua capacidade produtiva e acelerar seu desenvolvimento.
Os EUA têm uma atuação mais discreta: orgulham-se do seu "Buy American Act", que foi vitaminado durante a última crise, mas nunca deixam de criticar os outros. Os europeus são mestres na dissimulação: fazem o protecionismo que lhes interessa (restrições sanitárias abusivas, terrorismo sobre a Amazônia etc.) e querem nos convencer que o fazem em nome dos mais nobres valores da humanidade. O direcionamento das compras governamentais à luz do dia ou à sombra da noite é, e sempre foi, prática universal.
Os generosos economistas que creem na existência de um modelo geral de equilíbrio econômico que estabelece os "preços certos", a cuja obediência se realizaria o bem geral, gostam de condená-la. Mas o fazem em nome da confusão ideológica que tomam como "ciência".
A Medida Provisória 495, convertida em lei e cuja regulamentação está prestes a ser publicada, modifica a Lei de Licitações em vigor. Destina-se a direcionar as compras governamentais e dar alguma vantagem às empresas instaladas no Brasil (nacionais ou estrangeiras). Estamos prestes a assistir à discussão de alta filosofia na defesa da "produtividade" que se perderá com tal medida! Antes de mais nada, é preciso combinar que não se defende o protecionismo "à outrance". Se em algumas circunstâncias os "preços certos" podem ser profundamente errados, às vezes os "preços errados" não são, necessariamente, certos...
A regra geral de lei vigente prevê que nas licitações públicas devem ser observados dois princípios: 1) a isonomia; e 2) a proposta mais conveniente (em geral o menor preço).
Ora, existe isonomia quando o produto importado é estranhamente beneficiado por: 1) uma carga tributária menor do que a nacional; 2) por financiamentos "camuflados" e com taxas de juros reais duas a três vezes menores do que as nacionais; 3) quando, em grandes projetos, empresas estatais que escondem Estados soberanos podem "cobrir qualquer oferta" para dar emprego a sua gente; 4) quando existem enormes benefícios em alguns Estados pela via da importação; e, por último, mas ainda mais trágico, 5) quando graças a equívocos da política econômica, o real é a moeda mais valorizada do mundo?
A nova medida provisória acrescenta um novo requisito à licitação, "a promoção do desenvolvimento nacional". Reconhece a completa ausência de isonomia, quando determinou que o "fornecimento nacional de bens e serviços pode ter um valor superior a até 25% dos importados", se as demais exigências da concorrência forem atendidas. Não se trata de grande novidade. Há 40 anos, o Banco Mundial já admitia, nas concorrências em que se usava o recurso dos seus empréstimos, uma "preferência" nacional de até 15%, com condições "isonômicas" muito melhores do que as atuais. Quem julgará a concessão e a dimensão do "benefício", será uma comissão formada por membros de cinco ministérios (Fazenda, Planejamento, Desenvolvimento, Ciência e Tecnologia, além de Relações Exteriores), que deverão ponderar os benefícios internos e as ameaças externas.
Não se trata, obviamente, de problema de solução fácil ou trivial. Cada decisão deverá tentar avaliar os benefícios para o crescimento do PIB e para o nível de emprego, que deverão compensar a recusa do "menor preço" pelos efeitos multiplicadores da atividade interna produzida pelo produto ou serviço. Efeitos que as empresas instaladas no Brasil não podem internalizar nos seus preços.
Para dar um exemplo pedestre e propositadamente exagerado (mas não inverossímil): uma turbina importada, cujo valor é 100 (em geral isenta de impostos, porque é obra "prioritária"), deverá competir com uma oferta nacional de 125. Quando a turbina é produzida no Brasil, ela gera, provavelmente, uma demanda adicional de, pelo menos, mais 60 na sua cadeia produtiva. No nível de tributação que temos, isso significa a apropriação (pelo governo), nos efeitos secundários, de qualquer coisa como 21 de impostos (60 x 0,35 de carga tributária).
No nível da empresa, ela não pode internalizar esse efeito (o seu preço para o governo é de 120 menos 21 = 99), mas ele, claramente, deverá ser levado em conta na decisão do vencedor da concorrência. Esse problema levanta outro. Se a compra é de fardas para as Forças Armadas, por exemplo, essas também não poderão internalizar tal efeito. Se a verba orçamentária for a mesma, a decisão burocrática míope será insistir na compra pelo "menor preço".
A quantidade de obstáculos e de dúvidas exigirá muito cuidado para que os benefícios líquidos do "compre Brasil" sejam sempre o crescimento econômico e o aumento do emprego. Mas uma coisa é certa: não há "teoria" econômica que sugira que seus efeitos serão, necessariamente, prejudiciais ao aumento da produtividade, que no fim é o que interessa. Não se trata de uma questão teórica, mas de um problema de gestão, que produza a construção efetiva de uma isonomia competitiva a favor no nosso setor produtivo.”
FONTE: escrito por Antonio Delfim Netto, professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Publicado no jornal “Valor Econômico” e transcrito no Blog do Nassif (http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/as-compras-de-produtos-nacionais-por-delfim#more). [imagem adicionada por este blog].
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