terça-feira, 21 de dezembro de 2010

EDITORIAL DO “EL PAÍS”: "O QUE DE VERDADE OS GOVERNOS OCULTAM"


Javier Moreno, do jornal espanhol “El Pais” – Editorial

“O interesse global provocado pelos papeis de Wikileaks se explica principalmente por uma razão muito simples, mas ao mesmo tempo poderosa: revelam, de forma exaustiva, como certamente nunca havia acontecido, até que grau as classes políticas nas democracias ocidentais avançadas estiveram enganando seus cidadãos. EL PAÍS assumiu desde o início o desafio de revelar o que o poder oculta e cumprir a obrigação profissional de informar seus leitores.

1. O VAZAMENTO E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Quando numa sexta feira pela tarde, no mês de novembro, Julian Assange fez uma ligação para o meu celular, quase não podia ouvi-lo. Entrecortada pela bagunça habitual do fim de semana no aeroporto de Roma, onde me encontrava aquele dia ao regressar a Madrid, a conversa foi estranhamente breve. Assange fala devagar, mede com extremo cuidado cada palavra que pronuncia e sua voz grave, como de barítono, tende a tornar-se inaudível ao final da frase, característica que não facilita nada a compreensão. Momentos antes os carabinieri haviam mostrado um interesse especial por minha escassa bagagem e, nesse preciso momento, se ocupavam de analisar os traços químicos de um trapinho branco com o qual haviam perscrutado todas as superfícies do meu iPad, sem que eu nunca soubesse se em busca de explosivos, de drogas ou das duas coisas.

Trata-se de una situação que geralmente me intranqüiliza, mas à qual nesse dia quase não prestei atenção. Assange, segundo entendi, estava disposto a disponibilizar a EL PAÍS 250.000 comunicações entre o Departamento de Estado y as embaixadas dos Estados Unidos em três dezenas de países, o que indicava ser realmente o maior vazamento de documentos secretos da história. Acordamos prosseguir a conversa em momento mais propício e logo nos despedimos.

Quando retomamos o diálogo dois dias depois, desta vez com profundidade, começou a perfilar-se com uma clareza inusitada a gigantesca estrutura do projeto que logo foi conhecido como o cablegate. Paralelamente fui dando conta, com maior precisão, se cabe, das importantes consequências que derivariam de tudo isto para a maquinaria diplomática dos EUA, para a reputação do seu Governo, a de seus aliados, a de seus adversários, para o futuro do jornalismo e ainda para o debate sobre as liberdades nas democracias ocidentais.

Hoje, três semanas depois que ‘The Guardian’, ‘The New York Times’, ‘Le Monde’, ‘Der Spiegel ‘e ‘EL PAÍS’ começamos a publicar as informações que agora todo o mundo conhece, me atreveria a afirmar que já se pode extrair de todo esse assunto uma primeira conclusão que, ainda provisória, é muito importante, como tratarei de explicar a seguir. Mais que um agudo estado de crise de segurança supranacional, como antecipou alguns, o que verdadeiramente se instalou entre as elites políticas em Washington e na Europa é una espessa atmosfera de irritação e de embaraçosa contrariedade que resulta extremamente reveladora do alcance e do significado real dos papéis de ‘Wikileaks’.

Não foram esses precisamente os augúrios. Bem o contrário. Desde antes de publicar-se a primeira linha se sucederam as mais diversas admoestações, tanto públicas como privadas. Porta-vozes em Washington advertiram sobre a irresponsabilidade do empenho. Os diretores dos jornais responsáveis pelo projeto também fomos devidamente advertidos de que a publicação do material que já tínhamos em nosso poder – tanto as crônicas elaboradas por nossas redações como os despachos em que aquelas se baseavam – poria em perigo dezenas de vidas, arruinaria nobres esforços diplomáticos vitais para cimentar a luta contra o terrorismo mundial, e debilitaria de forma irremediável a coalizão internacional encabeçada pelos Estados Unidos, ao expor seus sócios a situações tão embaraçosas que dificultariam ou impediriam a colaboração entre eles.

Pois não me surpreendeu que o presidente Barack Obama qualificasse os vazamentos de atos deploráveis. Tampouco que a secretária de Estado Hillary Clinton utilizasse esses argumentos, quase com essas mesmas palavras, durante seu primeiro comparecimento diante da imprensa em Washington, para condenar as ações de ‘Wikileaks’ e lamentar a decisão que finalmente tomamos, os cinco jornais que tiveram acesso ao material vazado, de não atender aos rogos de sua Administração.

O que começou a revelar-se em seguida certamente tornou pequenos os piores pesadelos do Departamento de Estado, e motivou queixas amargas de diplomatas em todo o mundo. Não só estavam descobertas algumas de suas manobras e ordens menos confessáveis, como também acumulavam-se provas do duplo discurso dos aliados de Washington sobre os mais diversos assuntos – muitos deles em âmbito estritamente nacional –, que viam com estupefação como a publicação dos despachos lhes deixava em evidência, ora frente a países vizinhos e aliados, ora frente a seus concidadãos, que descobriam, com compreensível irritação, opiniões, declarações ou ações de seus líderes que lhes foram convenientemente ocultadas.

2. AMÉRICA, FAZENDO O SEU TRABALHO

Neste momento não disponho de informação precisa, mas resulta evidente, para qualquer observador, que a Administração norte-americana chegou bem rápido à conclusão de que sua estratégia inicial de condenar os vazamentos, deplorar sua difusão e profetizar um apocalipse diplomático como consequência imediata de sua publicação, não surtiria o efeito desejado. Por isso, logo se articulou outra muito distinta que encontrou com rapidez seu caminho em fartos editoriais e artigos de opinião em importantes jornais, revistas e televisões dos Estados Unidos e de outros países.

Mais que mentiras ou enganos, os telegramas mostrariam as habilidades dos diplomatas dos EUA, segundo esta nova interpretação apoiada sobretudo pelos meios conservadores. Mais que seus fracassos, a informação que se ia conhecendo ressaltaria como a maquinária de Washington se conduz, in situ e privadamente, segundo os mesmos altos princípios proclamados em público desde os púlpitos oficiais do Capitólio. E em toda ocasião, a América demonstraria professar mais atenção aos interesses da segurança internacional que aos seus próprios.

Como quase sempre, para a desgraça dos espanhóis, se deu também uma versão castiça das desculpas mencionadas, que vieram como adorno nacional quando os próprios jornais sustentaram, sem rubor, que a maior parte dos conteúdos dos telegramas vazados, e ainda o conjunto deles, em sua totalidade, não passava da categoria de fofocas ou maledicência sem valor algum para os cidadãos em general e para seus leitores em particular, aos quais consequentemente se furtou a informação. Não poucos comentaristas e debatedores na Espanha seguiram essa tosca argumentação, por preguiça mental ou por outras motivações igualmente condenáveis, ignorando assim de forma vergonhosa a onda de interesse público que a publicação dos papéis de ‘Wikileaks’ suscitou em todo o planeta.

3. MENTINDO AOS CIDADÃOS

Nada do anterior é correto, naturalmente, como a estas alturas podem comprovar por si mesmos os milhões de leitores que seguiram com avidez a informação em jornais, webs, blogs e demais meios em todo o mundo. Seria vã a tarefa de dedicar maior esforço para refutar-lo. Pelo contrário, tenho comigo que o interesse global provocado pelos papéis de Wikileaks explica-se principalmente por uma razão muito simples, mas ao mesmo tempo muito poderosa: revelam, de forma exaustiva, como seguramente jamais aconteceu, até que grau as classes políticas nas democracias avançadas do Ocidente estiveram enganando seus cidadãos.

O mesmo, aliás, caberia predicar dos governos com menor pedigree democrático em outras zonas do mundo, o que resulta menos surpreendente e poderia constituir matéria de outro ensaio. Baste resenhar aqui o júbilo inicial da ditadura cubana, que celebrou com alvoroço os apuros pelos quais previsivelmente ia passar Washington nos dias seguintes. Júbilo que se transformou primeiro em incômodo, ao surgir os relatos sobre o grau de implicação de seus agentes secretos na Venezuela e outros países latino-americanos, assim como o nível de deterioração de sua economia, e que acabou logo em insultos a este jornal e ao seu grupo editorial.

A lista de argúcias que os papéis de Wikileaks deixam descobertas é extensa, e não pretendo aqui realizar uma relação exaustiva. A enumeração de algumas delas, entretanto, é imprescindível para a argumentação deste esboço, pois a maioria afeta aos fundamentos democráticos de nossas sociedades, assim como ao seu correlato moral em tempos de crescente cepticismo dos cidadãos a respeito de seus governantes.

Dezenas de milhares de soldados livram no Afeganistão uma guerra que seus respectivos primeiro ministros ou presidentes consideram impossível de ganhar. Dezenas de milhares de soldados sustentam com seus esforços um Governo cuja corrupção é conhecida e tolerada por aqueles que lhes enviaram para a luta. Segundo revelam os despachos de Wikileaks, nenhuma das principais potências ocidentais envolvidas crê firmemente na possibilidade de que o país seja viável em médio prazo, para não falar já de seu altamente hipotético ingresso no clube das democracias, objetivo declarado dos combatentes. Assim, não deveria surpreender a ninguém o fato de que o vice-presidente afegão transfira ao exterior milhões de dólares em maletas com o consentimento de seus patronos, a fim de manter a fachada de que o país asiático conta com um Governo, se não decente, ao menos semissolvente.

O Paquistão se afoga na corrupção e mantém um arsenal nuclear em tão lamentável estado que cabe razoavelmente temer pela sua segurança e a ajuda a grupos terroristas que se empregam com afinco contra a Índia e em países do Ocidente. Dinheiro em abundância, proveniente de doadores da Arábia Saudita ou dos emirados do Golfo, financia também o terrorismo de grupos sunitas, sem que os Estados Unidos denuncie seus firmes aliados na região como potências do mal ante as tribunas internacionais. Clinton ou algum de seus subordinados mais diretos ordenou espionar na ONU não só um grupinho de países estranhos – suspeitos há tempos por sua excentricidade na geopolítica global e cuja necessidade de ser espionados parece ser consensual entre os mais desenvoltos –, senão o próprio secretário geral da organização, sem que este, pelo que se sabe, tenha exigido alguma explicação para tal violação de seu estatuto internacional.

Pareceria agora, no dizer daqueles que sustentam que os papéis das embaixadas não contêm novidades de envergadura, que os cidadãos estavam já conscientes de todo o exposto, assim como do resto de furos impactantes que inundaram as primeiras páginas dos jornais de todo o mundo durante duas semanas. Não vou insistir mais na falácia de tal asseveração. Interessa-me mais assinalar que a publicação dos telegramas secretos revela, ademais, que, coletivamente, a classe política no Ocidente era consciente da situação no Afeganistão, das turvas maquinações do Paquistão ou das ambiguidades dos países árabes aliados de Washington, para limitar-me unicamente aos exemplos antes citados, num exercício de dupla moral sem muitos precedentes conhecidos. Sabiam, mas ocultavam. E os destinatários de semelhante impostura eram seus eleitores, as sociedades com cujo esforço em soldados e em impostos se sustenta a guerra no Afeganistão. Já não me parece exagerada a comparação de agudos observadores, como John Naugthon, quando assinalam que o regime de Karzai resulta igualmente corrupto e incompetente como o do Vietnam do Sul, sustentado pelos Estados Unidos nos anos setenta. E que Washington e a OTAN se afundam em um pântano, o afegão, cada vez mais parecido ao que sofreram os Estados Unidos com o regime de Saigon há quarenta anos.

4. A INCOMPETÊNCIA DAS ELITES POLÍTICAS

Sem dúvida os mais cínicos argumentarão que nada disso resulta alheio à forma como tradicionalmente se conduziu a alta política internacional, e que o correlato objetivo do oficio consiste precisamente na manutenção dos segredos diplomáticos, sem os quais o mundo resultaria mais ingovernável, se é possível, e por tanto mais perigoso para todos. As classes políticas de ambos os lados do Atlântico vêm com isso transmitir uma mensagem tão simples como vantajosa: confiem em nós; não tentem desvelar nossos segredos; em contrapartida lhes oferecemos segurança.

Mas quanta segurança oferecem realmente em troco de aceitar tamanha chantagem moral? Pouca ou nenhuma, pois se dá o triste paradoxo de que se trata da mesma classe política que se mostrou incapaz de supervisionar adequadamente o sistema financeiro internacional, cuja explosão provocou a maior crise desde 1929, arruinou países inteiros ou condenou ao desemprego e à depauperação a milhões de trabalhadores. Os mesmos responsáveis pela deterioração dos níveis de vida e de riqueza de seus concidadãos, pelo incerto destino do euro, pela falta de um projeto europeu de futuro e enfim, pela crise de governança global que aflige o mundo nos últimos anos e à qual não são alheias as elites no poder em Washington e Bruxelas. Não estou seguro de que manter ocultos os segredos das embaixadas nos garanta uma melhor diplomacia ou um desenlace mais benigno às encruzilhadas atuais.

As incompetências dos Governos ocidentais a respeito da crise econômica, as mudanças climáticas, a corrupção ou a agressão militar ilegal no Iraque e outros países, ficaram abundantemente expostas ante a opinião pública nos últimos anos. Agora sabemos, ademais, graças aos papéis de Wikileaks, que todos eles são conscientes de sua desafortunada falibilidade, e que só a inércia das maquinarias oficiais e o poder de manter os segredos evitam que tenham que prestar contas aos cidadãos, a razão última numa democracia.

Esse poder imenso, o de evitar que a verdade aflore, o de manter secretos os segredos, é o que agora, ao menos de forma parcial, limitada, aleatória, as revelações que nos ocupam vieram quebrar.

Compreendo bem que diante de semelhantes destroços de suas reputações, tanto para o Governo dos Estados Unidos como, em um tom menor, para seus aliados ocidentais, resulte irresistível centrar a culpa em Julian Assange. Aí crêem ter um alvo fácil. Quais são suas motivações? Que inconfessáveis procedimentos emprega? Por que e sob quais condições cinco grandes meios de prestigio internacional concordaram em colaborar com ele e com sua organização? Não são perguntas ilícitas, naturalmente, e foram respondidas satisfatoriamente nos últimos dias pelos diretores dos cinco jornais que levamos adiante este projeto, pese o martelar oficial – ou ainda pior, o martelo sicário que se embosca em certos jornais e televisões – insista uma e outra vez em dizer o contrário.

5. ASSANGE E OS PROCEDIMENTOS

Apesar de que o vice-diretor de EL PAÍS, Vicente Jiménez, e o subdiretor Jan Martínez Ahrens mantivessem várias reuniões com ele na Suíça, eu só conheço Assange de um encontro presencial em Londres que durou muitas horas e do par de conversas telefônicas que relatei no início deste texto. Insuficiente mesmo para pretender esboçar aqui um perfil com imprescindível rigor jornalístico. Mas sim o bastante para testemunhar que o único discutido em todos os encontros foi a conveniência de pactuar um calendário comum de publicação e a exigência de proteger nomes, fontes ou dados que pudessem por em risco a vida de pessoas em países em que a pena de morte segue vigente; ou nos que não rege o Estado de direito como se desfruta no Ocidente.

Não houve pedido de contraprestação econômica alguma de sua parte, nem EL PAÍS aceitaria. Os papéis, em si, oferecem uma fiabilidade inquestionável e ninguém, nem sequer nas filas dos adversários de sua publicação, começando pela Administração dos EUA, duvidou de sua autenticidade.

Tanta obsessão em centrar a atenção em Assange e seus métodos, tanto interesse de escrutar suas motivações, tantas manobras para destruir sua reputação pessoal, contrastam, entretanto, com a colossal falta de respeito, pelo menos, que os diplomatas dos EUA demonstram pelo corpo normativo, normas e procedimentos dos países em que exercem seu ofício, começando pela Espanha, a julgar pelos telegramas publicados.

O mais importante das revelações de Wikileaks é sem sombra de dúvidas as próprias revelações, apesar que grande parte da cobertura mediática sobre Assange haja preferido futucar supostos pactos inconfessáveis com os jornais que difundimos as informações, o financiamento de sua organização, sua pretensa opacidade, ou umas acusações de agressão sexual cuja debilidade, a despeito do que finalmente determine a justiça sueca si ocorre a extradição, não deixa de resultar inquietante.

E pese o fascinante debate aberto sobre o futuro do jornalismo e as novas tecnologias na era do Wikileaks, tampouco deveria este centrar agora todo o interesse dos jornalistas. Resulta imprescindível, sobretudo, insistir que nos encontramos diante de notícias de cuja importância só fingem duvidar aqueles interessados em ocultar os danos que causaram às nossas democracias.

Fora o que determinam as leis, depois de quinze dias de revelações ficou meridianamente claro que a Embaixada dos Estados Unidos em Madri pressionou, conspirou e fez o possível e o impossível para conseguir aquilo que, em público, nenhum embaixador se atreveria a sequer sugerir, não digamos exigir.

Todos os casos são graves, e não é o caso de aqui e agora estender-se em cada um deles. Mas a nenhum observador atento escapa o fato de que as manobras para conseguir o arquivamento dos três casos na Audiência Nacional [órgão judicial], que de uma maneira ou de outra afetavam os Estados Unidos, assim como as gestões para forçar bancos e empresas espanholas a abandonar os negócios que de acordo com a legislação internacional realizavam no Irã, têm em comum uma mesma característica: o desprezo pela legislação espanhola e ainda pela internacional.

Que os juízes espanhóis sejam ferozmente independentes, como recordou à embaixada em mais de uma ocasião o fiscal general [procurador geral] ou algum ministro, ou que nenhum dos bancos ou empresas com negócios no Irã descumprisse alguma norma, nem a espanhola, nem a internacional, não foi óbice para o exercício das pressões mais obscenas sobre as quais publicamos até os últimos detalhes.

6. OS DANOS MORAIS

Desconheço sobre de quem partiu a ordem. Não sei se foi uma ordem recebida de Washington ou o produto do espírito empreendedor do próprio chefe da delegação. Mas a determinação em ambos os assuntos, pelo que conhecemos do relato detalhado dos fatos, foi rotunda: encerrar os casos da Audiência Nacional de qualquer maneira e impedir os negócios das empresas espanholas com o Irã.

Para isso não houve dúvida quanto ao emprego de qualquer método, sem reparar os custos. E os custos foram altos. À expensa de cometer algum delito tipificado no Código Penal, o que seria conveniente esclarecer devidamente, do imbróglio na Audiência Nacional ficou na retina dos espanhóis a excessiva promiscuidade de ministros e promotores com a embaixada, a sensação do duplo discurso, da dupla moral, da paisagem demolidora para a saúde democrática deste país.

De forma similar, os diplomatas dos EUA em Berlím advertiram o Executivo alemão das graves consequências de prosseguir com o procedimento legal contra os agentes da CIA acusados de sequestrar Khaled El-Masri, cidadão alemão, e levá-lo ao Afeganistão para ser interrogado sob tortura. El-Masri foi posteriormente abandonado na Albânia quando os agentes descobriram que haviam sequestrado a pessoa errada. O sequestro e a tortura são delitos graves. Nenhum Governo, tampouco o dos Estados Unidos, deveria contemplá-los com a indulgência que transpiram os documentos secretos. Pressionar um Governo aliado para evitar que os acusados sejam investigados resulta inaceitável e, francamente, encaixa com dificuldade na idéia de que os papéis de Wikileaks mostram tão somente diplomatas estadunidenses fazendo mais ou menos o seu trabalho.

Outro tanto cabe comentar sobre o caso das empresas e bancos espanhóis no Irã. Para encerrar seus magros negócios no país dos aiatolás, e seus minúsculos escritórios de representação, se recorreu, no caso dos bancos, à obtenção de informações do Banco de España, o que seu próprio subdiretor, nomeadamente José Viñals, se encarregou de reunir e fazer chegar à Embaixada. Li com interesse as explicações dos porta-vozes do banco central. Não me tranquilizaram. E posso imaginar que a mesma sensação que tive, de que a Embaixada estadunidense dispõe de um poder excessivo sobre os principais organismos deste país, é compartilhada por muitos cidadãos conscientes da importância da independência e da dignidade das instituições em uma sociedade democrática.

A diferença entre os objetivos e os meios empregados para alcançá-los é de uma desproporção assustadora. O caso ‘Couso’ segue aberto, um resultado que em última análise honra e salva o sistema judiciário espanhol. Os raquíticos intercâmbios comerciais e financeiros das empresas e bancos espanhóis afetados pouco serviam para apoiar a causa dos aiatolás, certamente inquietante. Mas a troco de conseguir tão esquálido resultado não se duvidou de violar todos os procedimentos. Uma democracia se compõe dos mais diversos elementos, instituições e normas: eleições regulares, juízes independentes e imprensa livre, entre muitos outros. Na base encontram-se os procedimentos. Quando se atropelam estes últimos, se põe em risco todo o demais.

Isto é o que no final das contas mostram os papéis de Wikileaks: um desprezo constante pelos procedimentos, incompatível não só com o funcionamento das instituições de um país senão também, ou, especialmente, com a melhor tradição legal e democrática dos Estados Unidos. De passagem, em seu destroçar, causa mais dano que qualquer reparação possível a imagem de tantos Governos que mostram, à luz do revelado até agora, uma necessidade de acomodar-se e uma triste nudez moral que resulta patética aos olhos dos cidadãos.

É justo aceitar que existe uma distinção fundamental entre o Governo eleito pelos cidadãos de um país, sempre temporário em seu exercício do poder, e o aparato militar, burocrático ou diplomático no qual aquele se sustenta, mas nem sempre controla, ou o faz de forma superficial, de modo que em numerosas ocasiões este funciona à margem e quase sempre com um deficiente grau de responsabilidade. Esta idéia antiga, formulada já faz cem anos por Theodore Roosevelt em sua plataforma progressista de 1912, é o que as revelações contidas nos papéis vazados tristemente certificam.

Não digo que Obama ou Clinton não devam oferecer explicações. Limito-me a constatar que quase tudo o que conhecemos pelos telegramas ocorreu à margem e independentemente de quem ocupava a cúpula do poder em Washington. O que, seguramente, ocorria de forma similar antes da posse da atual Administração democrata e provavelmente continuará acontecendo quando esta tenha abandonado a Casa Branca.

7. AS OBRIGAÇÕES DOS JORNAIS

O poder detesta a verdade revelada, escrevia sir Simon Jenkins no ‘The Guardian’ a respeito de ‘Wikileaks’. Eu acrescentaria que sobretudo o poder teme a verdade quando a verdade não coincide com seu discurso. Aquela sexta feira em que recebi a primeira chamada telefônica de Assange soube imediatamente que EL PAÍS tinha entre as mãos uma grande história e que nosso dever era publicar.

Vieram logo as conversas com o resto dos diários, a avaliação dos prós e contras, o cuidadoso sopesar das consequências, os dias e as noites, e de novo os dias de ponderação. Mas houve algo que nunca, nenhum dos que participamos em todo o processo jamais pôs em dúvida: o verdadeiramente responsável, o legal e o importante para as sociedades democráticas às quais nos dirigimos – e com cujo avanço e progresso nos sentimos comprometidos – era dar a história ao conhecimento. Revelar o oculto constitui a pedra de toque definitiva do jornalismo engajado, e nossa ‘raison d’être’ última.

Publicar informações confidenciais, reservadas, ou cujas consequências políticas, econômicas ou sociais excedem o comum, implica sempre um dilema, sobretudo se se trata de documentos sobre os quais os Governos podem aduzir, com ou sem razão, que ameaçam a segurança nacional ou a vida de determinadas pessoas. Levar ao conhecimento essas informações põe à prova alguns limites morais. Sem dúvida também roça os contornos de determinadas normas legais. Alguma vez pode ser uma irresponsabilidade. E sempre é incômodo.

Os papéis do Departamento de Estado não foram uma exceção. E na verdade não costumam ser tantas: em meus quase cinco anos como diretor deste jornal, a situação não se produziu em mais de uma dezena de ocasiões. Posso entender as objeções oficiais a tornar públicos certos detalhes, operações ainda em marcha, nomes e lugares, devido ao alto risco que sua publicação comporta. Para evitá-lo, os jornalistas de EL PAÍS aplicaram toda sua capacidade profissional, que é grande, assim como proveram do contexto necessário a informação que isoladamente poderia resultar excessivamente prolixa e difícil de compreender em todas as suas consequências.

Não concordo, naturalmente, com outras objeções. Sobretudo aquelas que visam manter ocultos os fatos que não põem em risco mais que a carreira política ou a estatura moral de quem emitiu opiniões francas, em demasiadas ocasiões contrárias àquelas que sustenta em público, convencido de que seu jogo duplo não corria algum risco de acabar nas primeiras páginas de cinco jornais com alcance internacional.

Sou consciente de que publicar esta informação, apesar das objeções dos Governos, supôs assumir determinados riscos. Mas também sei que de qualquer ponto de vista para nós resultava impensável esconder dos leitores de EL PAÍS, em ambos os lados do Atlântico, o relato detalhado do que nossos Governos, assim como o dos Estados Unidos, fazem em seu nome, convencidos de que, no final, a informação redundará sempre em um cidadão mais comprometido com a democracia.

É tarefa dos Governos, não da imprensa, manter os segredos enquanto possam, e não serei eu quem discuta seu direito, certamente legítimo, de assim fazê-lo sempre que não encubra fatos danosos ou que enganem os cidadãos.

Mas o principal dos deveres de um diário consiste em publicar aquilo que averiguou, e em buscar as notícias lá onde as possa conseguir. Como já disse em um chat com os leitores de EL PAÍS, os jornais têm muitas obrigações em uma sociedade democrática: a responsabilidade, a veracidade, o equilíbrio e o compromisso com os cidadãos. Entre elas não se encontra a de proteger os governos, e o poder em geral, de revelações embaraçosas.”

FONTE: escrito por Javier Moreno, no editorial do jornal espanhol El País. Traduzido por Geraldo Honório Oliveira Neto. Publicado no portal “Viomundo”, do jornalista Luiz Carlos Azenha (http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/el-pais-o-que-de-verdade-os-governos-ocultam.html).[imagem adicionada por este blog].

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