segunda-feira, 6 de dezembro de 2010
A ENTREVISTA DE ASSANGE (FUNDADOR DO WIKILEAKS) AO JORNAL BRITÂNICO “THE GUARDIAN”
Julian Assange conversa com leitores do “Guardian” (“Julian Assange, WikiLeaks founder, answers your questions”)
O fundador de WikiLeaks, Julian Assange, responde perguntas de leitores sobre a divulgação de mais de 250 mil telegramas diplomáticos.
Leia adiante, perguntas e respostas.
“Fwoggie:
Começo então, eu, com uma pergunta genérica. Você tem passaporte australiano. Pensa em voltar ao seu país, ou está fora de questão, pelo risco de ser preso por ter divulgado telegramas que envolvem diplomatas e políticos australianos?
Julian Assange:
Sou cidadão australiano e sinto saudades do meu país. Contudo, nas últimas semanas, a primeira-ministra da Austrália Julia Gillard e o procurador-geral Robert McClelland deixaram bem claro que meu retorno é impossível e que, além disso, estão trabalhando ativamente com o governo dos EUA nos ataques contra mim e contra nossa equipe. Com isso, surge a questão de saber o que significa ser cidadão australiano – se é que significa alguma coisa. Ou se somos todos tratados como David Hicks [1], à primeira oportunidade, só para que políticos e diplomatas australianos continuem a ser convidados para as melhores festas da embaixada dos EUA.
girish89:
Como, na sua avaliação, você alterou o quadro político mundial? E se toda a atenção do mundo concentra-se sobre você, não lhe parece que você teria de agradecer aos espiões antiamericanos [orig. mole. É palavra do jargão da Guerra Fria, para designar espiões russos e outros, que se supunha estivessem infiltrados no serviço secreto dos EUA. NTs] e a suas outras fontes?
Julian Assange:
Ao longo dos últimos quatro anos, nossos objetivos têm sido proteger as fontes que assumem todos os riscos, em praticamente todos os furos jornalísticos e revelações que divulgamos, e sem cujos esforços os jornalistas nada são. Se for verdade, como diz o Pentágono, que um jovem soldado – Bradley Manning – está por trás de algumas das recentes revelações que divulgamos, não há dúvidas de que se trata de um herói, dos maiores.
Daithi:
Vocês já divulgaram ou pensam em divulgar (nos últimos dias ou antes, nos arquivos da guerra do Iraque e do Afeganistão) nomes de informantes afegãos ou coisa semelhante? Vocês censuram (perdoe-me por usar essa palavra) nomes que suponham venham a sofrer represálias locais??? Acho que a história absolverá vocês! Bom trabalho!!!
Julian Assange:
WikiLeaks divulga informações há quatro anos. Durante esse tempo, jamais houve notícia ou alegação confiável, nem por organizações como o Pentágono, de que uma única pessoa tenha sofrido represálias em função do nosso trabalho. E, isso, apesar de muitas tentativas de manipular e divulgar interpretações tendenciosas, com o objetivo de levar as pessoas a conclusões erradas, contra os fatos e as evidências que divulgamos. Entendemos que isso não mudará. Que não haverá represálias que, até hoje, jamais houve.
distrot:
O Departamento de Estado não para de divulgar ideias sobre se você é jornalista ou não. Você é ou não é jornalista? No que tenha a ver com divulgar informações que alguns não querem ver divulgadas, que importância tem que você seja ou não seja jornalista formado?
Julian Assange:
Meu primeiro livro de não-ficção, do qual sou coautor, foi publicado quando eu tinha 25 anos. Estou envolvido em trabalhos de produção de documentários, para jornal, TV e internet desde aquela época. Não é necessário, portanto, debater se sou ou não sou jornalista, ou como acontece de alguém, misteriosamente, deixar de ser jornalista no instante em que começa a escrever sobre nossa organização. Hoje, embora eu continue a escrever, pesquisar e investigar, meu principal trabalho é o de ‘Publisher’ e editor-chefe que organiza e dirige o trabalho de outros jornalistas.
achanth:
Sr. Assange, sua organização alguma vez recebeu material sobre objetos voadores não identificados [ing. UFO] e extraterrestres?
Julian Assange:
Muita gente nos manda e-mails sobre UFOs, que os viram, que tiveram contatos; ou que descobriram que o Demônio apareceu para seduzir a ex-esposa de alguém, numa festa, sentado num vaso de jardim. Essas notícias não são divulgadas porque, até agora, não satisfizeram uma ou outra das nossas exigências editoriais para divulgação de material recebido:
1) que os documentos não sejam produzidos por quem os envia (não divulgamos material assinado); e
2) que sejam documentos originais.
De fato, nos telegramas ainda não divulgados daquele mesmo grande arquivo, há, sim, referências a UFOs.
gnosticheresy:
O que aconteceu a todos os demais documentos que estavam em Wikileaks antes dessas séries recentes de “megavazamentos”? Voltarão à página online algum dia (se as “dificuldades técnicas” permitirem)?
Julian Assange:
Muitos ainda estão disponíveis na nossa página “mirror.wikileaks.info” e o resto voltará a ficar acessível logo que tenhamos tempo para cuidar das complexidades de engenharia da página. Desde abril deste ano, nossa agenda não nos pertence, porque estamos totalmente dedicados a resistir aos ataques movidos contra nós por elementos do governo dos EUA. Mas saiba que estou profundamente infeliz por ver que três anos e meio do nosso trabalho, meu e de outros, não está acessível ao público em geral.
CrisShutlar:
Você esperava esse nível de impacto em todo o mundo? Você teme por sua segurança?
Julian Assange:
Sempre acreditei que WikiLeaks, como conceito, teria um papel global a cumprir e, em certa medida, o impacto já acontece desde 2007, quando documentos divulgados por WiliLeaks alteraram os resultados das eleições gerais no Quênia. Sempre calculei que seria preciso esperar dois, não quatro anos, para sermos reconhecidos pela importância do nosso trabalho. Estamos dois anos atrasados, portanto, e ainda há muito por fazer. As ameaças contra a minha vida e a vida de outros que trabalham conosco são conhecidas de todos, estão em todos os jornais. Mas, sim, todos tomamos as medidas apropriadas de segurança, na medida em que algum cidadão pode proteger-se contra a ação de uma superpotência.
JAnthony:
Julian. Sou ex-diplomata britânico. Durante meus anos de serviço, ajudei a coordenar ação multilateral contra um regime brutal nos Bálcãs, a impor sanções contra um Estado renegado que ameaçava implantar ações de limpeza étnica, e a negociar um programa de renegociação de dívidas para uma nação pobre superendividada. Nada disso teria sido possível sem garantias de segurança e de sigilo para a correspondência diplomática, com essa correspondência protegida pela legislação do Reino Unido e de vários outros estados democráticos. Uma que não possa oferecer aconselhamento ou mensagens sigilosas e enviá-los com segurança a Londres é uma embaixada impedida de operar. A diplomacia não pode operar sem sigilo e fontes protegidas. Isso vale para o Reino Unido, para a ONU e para os EUA.
Ao publicar essa quantidade massiva de correspondência, Wikileaks não divulga apenas casos específicos de ações suspeitas, mas mina completamente todo e qualquer trabalho diplomático. Se você pode publicar telegramas dos EUA, você também pode publicar telegramas do Reino Unido e da ONU.
Minha pergunta é: por que não podemos responsabilizá-lo, você, pessoalmente, por cada futura crise internacional que não seja superada, porque os diplomatas já não podem trabalhar?
Julian Assange:
Se sua longa carta editorial for reduzida à pergunta que lhe interessa perguntar, lerei, com todo o prazer.
cargun:
Mr Assange, o senhor pode explicar a censura de identidades que se vê nos telegramas? Por que aparecem os nomes em alguns telegramas e em outros há XXXXXXXXXXX? Alguns telegramas não aparecem na íntegra. Quem toma essas decisões, sobre o que é divulgado e o que é mantido sigiloso, se não o governo dos EUA? Pelo que se sabe, o senhor solicitou a colaboração do Departamento de Estado para fazer essa seleção, seu pedido foi rejeitado. Há alguma ordem na divulgação dos telegramas, ou são divulgados ao acaso, sem qualquer ordem? Obrigado(a?).
Julian Assange:
Os telegramas já distribuídos são matérias distribuídas pelos jornais nossos parceiros na mídia-empresa e por nós. Foram editados pelos jornalistas que trabalham nas matérias, porque se supõe que eles conheçam bem o material, e possam escrever sobre ele. A redação final de cada telegrama, feita pelos jornalistas que receberam os arquivos, passa por uma revisão final de pelo menos um outro jornalista ou editor. Nós revisamos amostras que nos são enviadas por outras organizações, para termos certeza de que o processo está funcionando.
rszopa:
Por incômodo que seja, [a reação do] Departamento de Estado [dos EUA] parece ser boa publicidade (se por mais não for, porque faz aumentar a credibilidade de WikiLeaks). É como ter sido expulso da Amazon Web Services (AWS). Você concorda com essa ideia? Tudo isso foi planejado? Obrigado(a?) por fazer o que está fazendo.
Julian Assange:
Desde 2007 temos alocado nossos servidores, deliberadamente, em jurisdições em que suspeitávamos que houvesse censura à livre manifestação de pensamento, para separar o que é retórica e o que é fato. Amazon foi um desses casos.
abbeherrera:
Você começou algo que ninguém pode deter. O Início de um Novo Mundo. Lembre-se, a comunidade está com você e o apóia (da Eslováquia). Há vazamentos sobre o ACTA?
Julian Assange:
Sim, temos vazamentos sobre o Tratado Comercial Antipirataria [ing. Anti-Counterfeiting Trade Agreement, ACTA] um acordo comercial cavalo-de-troia, construído, desde o início, para satisfazer os grandes players da indústria de copyright e patentes dos EUA. De fato, WikiLeaks foi quem primeiro chamou a atenção pública para o ACTA – com um vazamento.
people1st:
Tom Flanagan, [ex]conselheiro sênior do primeiro-ministro do Canadá, disse recentemente que “Acho que Assange deve ser assassinado (...) acho que Obama deve por preço e mandar matá-lo (...) Eu não sofreria muito se Assange sumisse.” Como se sente sobre isso?
Julian Assange:
A lei diz que Mr. Flanagan e outros, que têm dito coisas semelhantes, cometem crime. É crime incitar ao assassinato.
Isopod:
Julian, por que você acredita que fosse necessário “dar uma cara a WikiLeaks”? Não lhe parece que seria melhor se a organização fosse anônima? O debate concentrou-se, reduziu-se a você e personalizou-se – “Julian Assange vazou documentos”, “Julian Assange é terrorista”, “Julian Assange foi acusado de cometer estrupro”, “Julian Assange deve ser assassinado” etc. Ninguém mais fala de Wikileaks como uma organização. Muita gente nem percebe que há mais pessoas por trás de Wikileaks. Isso, na minha opinião, torna Wikileaks vulnerável, porque permite que seus oponentes argumentem “contra o homem”. Se convencerem o público de que você é mau, estuprador, terrorista, acaba-se a credibilidade de Wikileaks. Além disso, com todo o respeito pelo que você tem feito, acho injusto com todos os demais, o bravo, valente, empenhado pessoal que trabalha longe dos holofotes, por Wikileaks, que só você receba todo o destaque.
Julian Assange:
Pergunta muito interessante. De início, fiz o possível para que a organização não tivesse ‘cara’, porque não queria que os egos interferissem na nossa atividade. Seguiríamos a tradição dos franceses que trabalharam com matemática pura, em grupo, sem que nenhum deles fosse identificado, e que ficaram conhecidos como por nome coletivo, “os Bourbaki”. Mas aconteceu que o anonimato acabou por chamar muita atenção sobre quem estaria por trás daquilo tudo, e apareceram inúmeras pessoas que tentavam passar-se por nossos representantes. No fim, alguém tem de ser responsável, e só alguém disposto a expor-se à opinião pública pode sugerir, genuinamente, que nossas fontes assumem riscos gravíssimos, pelo bem de todos. Nesse processo, acabei ficando eu, exposto. Tenho recebido muitos ataques, sobre todos os aspectos da minha vida, mas também tenho recebido créditos que não mereço, como se eu fosse alguma espécie de força de equilibração, de equilíbrio.
tburgi:
Governos ocidentais se apresentam como tendo autoridade moral, em parte porque há garantias legais para uma imprensa livre. Ameaças de sanções legais contra Wikileaks e contra você enfraquecem essas afirmativas. (Que imprensa precisaria de proteção, senão quando se torna indesejável para o Estado? Se ter a sanção do Estado é credencial para alguma empresa de imprensa, que só assim teria direito de apresentar-se como imprensa livre, vê-se que a situação é idêntica, seja em regimes autoritários seja no ocidente.) Você concorda com a ideia de que os governos ocidentais perdem autoridade moral ao atacar WikiLeaks? Para início de conversa, você acha que governos ocidentais têm alguma moral para atacar WikiLeaks? Obrigado(a?). [assina] Tim Burgi Vancouver, Canadá
Julian Assange:
O ocidente tem suas relações básicas de poder fiscalizadas por uma rede de contratos, empréstimos, acionistas e ações, bancos ‘holdings’ etc., etc. Nesse tipo de ambiente é fácil que a expressão e o discurso sejam “livres” , porque mudanças políticas raramente implicam qualquer mudança nesses instrumentos básicos. O discurso no ocidente, porque só raramente tem qualquer efeito sobre o poder, é, como as marmotas e os colibris, livre. Em estados como a China há censura generalizada e pervasiva, porque o discurso ainda tem muito poder e o poder teme o poder do discurso. Temos sempre de olhar a censura como sinal econômico que revela o poder potencial do discurso naquela jurisdição. Os ataques dos EUA contra nós sugerem que ainda há muita esperança: de que o discurso tenha poder suficiente para romper o bloqueio político.
rajiv1857:
Hi, Será que é possível vencer o jogo em que você se meteu? Tecnicamente, você conseguirá continuar a brincar de gato e rato com os poderes, sejam quais forem, quando os serviços e provedores de serviços são direta ou indiretamente controlados pelo governo ou vulneráveis a pressões – como a Amazon? Se vocês forem “derrubados” – pode ser no plano técnico, não necessariamente por ataque físico – que alternativas há para o material que está com vocês? Há alguma ‘segunda linha’ de ativistas a postos, que poderão continuar a campanha? O material está ‘disperso’, de tal modo que se uma parte ‘cair’, o jogo possa prosseguir?
Julian Assange:
O arquivo Cablegate foi distribuído, com mais material importante dos EUA e de outros países, para cerca de 100 mil pessoas, encriptado. Se alguma coisa nos acontecer, as chaves de decriptação serão automaticamente liberadas. Além disso, os arquivos de Cablegate estão em mãos de várias organizações. A história vencerá. O mundo será elevado a um patamar melhor. Se sobreviveremos? Depende de vocês.
CONCLUSÃO:
Obrigado a todos, pelas perguntas e comentários. Julian Assange lamenta não ter podido responder a todos, mas tentou cobrir a maior quantidade possível de território. Gratos pela paciência com nossas dificuldades técnicas iniciais.”
NOTA:
[1] David Matthew Hicks (nascido em 7/8/1975) é cidadão australiano que recebeu treinamento militar no campo de treinamento Al Farouq associado à al-Qaeda em 2001. Foi mantido preso sem acusação e processo na prisão de Guantánamo até 2007, quando foi o primeiro prisioneiro julgado e condenado nos termos da Lei das Comissões Militares dos EUA de 2006. Os maus tratos, torturas, as provas forjadas contra ele, o resultado do processo e o sistema legal então recentemente implantado despertaram indignação em todo o mundo.”
FONTE: publicado no site do jornal britânico “The Guardian” e transcrito no blog do jornalista Luis Nassif, traduzido pelo “Coletivo da Vila Vudu” (http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/a-entrevista-de-assange-ao-the-guardian#more).[foto adicionada por este blog].
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário