Da caçamba ao beijo gay
"Antes que um leitor desprevenido ou precipitado comece a me lançar pedras indevidas com acusações de homofobia, deixem-me declarar, previamente, que, na questão sexual, não faço qualquer distinção valorativa entre gays, lésbicas , simpatizantes ou heteros convictos. Quando muito, posso ter – e tenho – predileções. Algo assim como preferir para um filho meu a profissão X, e não a Y, ou gostar mais do Chico Buarque do que do funk ostentação, ou preferir as crônicas do Veríssimo às agressões intelectuais do Jabor, ou achar que o Nelson Motta na música é bem melhor que na política. Preferências, meras preferências...
No caso do movimento gay, tenho posicionamentos bem opostos aos dos felicianos ou bolsonaros da vida. Enxergo nele a mesma dinâmica que os meus cabelos embranquecidos permitiram testemunhar na saga trilhada pelas mulheres em nossa sociedade, que, aliás, ainda está longe de chegar a bom termo. Creio que tempo virá em que os nossos dramaturgos de plantão – que hoje participam da luta pela não discriminação dos gays - terão que buscar outra fonte para os seus ganhos espirituais e materiais. E quanto ao propalado beijo gay, admito que, no momento presente, ele contribuiu para combater a discriminação sexual.
O título do artigo tem a ver com outras considerações que trago aqui à reflexão, sobre os rumos da telenovela brasileira, a partir do término da última delas, “Amor à vida”. A novela, por assim dizer, começa com uma criança atirada em uma caçamba (provavelmente para morrer ali) e termina com o aplaudido beijo redentor, ambas as ações praticadas pelo mesmo personagem.
Muitos poderão me perguntar por que ainda vejo novelas que – pelo tom dessa crônica e de outras que já fiz a respeito – considero, no geral, abomináveis. Mas, como já disse outras vezes, é preciso conhecer para criticar, e não dá para se meter a opinar com argumentos do tipo “não vi e não gostei”. No caso das novelas, esse juízo crítico fica facilitado, pois tenho mais o que fazer e não preciso ver a novela toda, com suas idas e vindas previsíveis e desfechos idem (que, aliás, são previamente anunciados nas magníficas publicações voltadas para as fofocas televisivas). Isso vale principalmente para a “novela das oito”, que há muito já virou “novela das quase dez”. Bastam-me capítulos pontuais para identificar os tipos de sempre: membros da elite econômica passando por cima dos valores familiares e disputando patrimônios empresariais e heranças polpudas; um segmento menos favorecido que busca ascensão social, nem sempre por linhas corretas, e que é caracterizado pelo viés brega e barraqueiro, para fazer o deleite da classe média preconceituosa; invejas generalizadas, traições recorrentes ; relações conturbadas entre pais e filhos, tendo como subprodutos desconhecimentos de paternidades e/ou intermináveis buscas nesse sentido.
Pessoas que prezo muito argumentam, a favor das novelas, com a sua excelência “técnica”, com a estética exuberante de suas imagens, com o trabalho superior de seu atores. Concordo. Mateus Solano, por exemplo, teve desempenho insuperável na novela que se encerrou. Alguns outros também. Isso, porém, não muda um milímetro o que penso a respeito dessas produções do assim chamado “horário nobre”, que de nobre não tem nada, a julgar, também, pelos Ratinhos e congêneres.
Sigo, aqui, os versos de Fernando Pessoa: tudo vale a pena, se a alma não é pequena. Ou seja, a tecnologia só serve se trabalhar no sentido da construção de um ser humano melhor. Há muito lixo na internet e muito lixo na tevê, que a tecnologia não encobre e, pelo contrário, faz sobressair. A questão não é o meio, não são as técnicas, não são as máquinas, mas as pessoas que estão atrás delas e que as manipulam.
Há ainda a alegação de que o objetivo dessas novelas é a diversão, o entretenimento. Até posso concordar, mas só em tese, porque nada impede que se produza divertimento com enriquecimento cultural. A própria Globo faz isso nos seriados que invadem a madrugada, mas que o povão trabalhador não vê.
Desculpem-me, então, os noveleiros convictos, mas essa última novela foi “mais do mesmo” e prestou, mais uma vez, inúmeros desserviços à sociedade, a começar pela impunidade de autores de crimes os mais variados, até assassinatos , alguns levando dezenas de capítulos praticando a ausência de ética e moralidade para, em uma única penada, atingirem a redenção e o aplauso público. Inevitavelmente, penso na falsa visão moralista que essa corporação midiática nos quer passar em outros âmbitos, como o da política. E lamento que atores formidáveis, do lado de lá da telinha, e pessoas sérias e éticas, do lado de cá, ainda participem, ativa ou ingenuamente, da glorificação dessa falsa dramaturgia, com endereço marcado para a alienação, o descompromisso moral e o empobrecimento social. Nessa novela, pelo menos duas mães tentavam o tempo todo convencer as suas filhas de que casamento e dinheiro tem tudo a ver. Em outro segmento da “trama”, na chamada troca de casais, quase houve um sorteio para saber, no final, quem era o pai de uma criança, pois podia ser qualquer um. Alguém joga um recém-nascido no lixo e não vai para a cadeia. Alguém confessa o mando em um assassinato, mas acaba feliz para sempre... Não vale aqui argumentar com a solução final da novela. As casas brasileiras foram invadidas por lixo ético durante vários meses.
Educação de qualidade, que virou mantra hipócrita de muita gente que abomina a escola pública, não se faz apenas nos colégios. É formação, preparo para a vida, e faz-se – ou devia fazer-se - também nas famílias. Essa mídia que invade o lares com seus valores dúbios deveria ser proibida de falar em educação.
Perdoem-me, mas um beijo gay, mesmo com a marca do ineditismo, é apenas um beijo. Pessoas trocam beijos. Um beijo gay, ainda que simbolize a luta contra o preconceito, não pode, através da falsa solução de um fácil arrependimento tardio, transformar um bandido em herói. Porque, se puder, vamos admitir o arrependimento de todos os criminosos desse país e criar, finalmente, nesta terra abençoada, o tão esperado Nirvana."
FONTE: escrito por Rodolpho Motta Lima, advogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ. Funcionário aposentado do Banco do Brasil. Artigo publicado no "Direto da Redação".
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