O que houve na Ucrânia?
Por Flávio Aguiar
Na Ucrânia houve de tudo, menos uma revolução popular.
"Tudo começou com uma série de manifestação empilhadas umas sobre as outras: uma juventude ansiosa por se identificar com a União Europeia, uma classe média cansada pelas sucessivas vagas de corrupção dos sucessivos governos, uma insatisfação com o autoritarismo e o fechamento do governo de Viktor Yanukovitch, o desejo de maior ascendência de grupos do oeste do país em detrimento de grupos do leste do país.
A repressão que o governo desencadeou abriu caminho para uma intensificação do descontentamento, açulado pelos partidos de oposição representados no Parlamento e pelo encorajamento internacional da União Europeia a políticos norte-americanos, republicanos e democratas. De todos, os mais animado foi o senador republicano John McCain, em dezembro, gritando na praça da Independência (Maidan), foco e espaço das concentrações: "O mundo livre está com vocês! A América está com vocês!" Melhor lembrança da Guerra Fria e do dito "A América para os [norte-]americanos" seria impossível. Como nos velhos bons tempos, o alvo continua sendo a Rússia.
No pano de fundo dessas confrontações, estão as desigualdades do país. O leste e o sul junto à Rússia e ao Mar Negro são mais desenvolvidos e industrializados do que o oeste, mais pobre. O leste, de um modo geral, tem seu foco econômico voltado para a vizinha Rússia, de que depende o abastecimento de gás do país, vital para a indústria e para o aquecimento durante o rigoroso inverno. Se a Rússia endurecer a questão do fornecimento de gás, cortando-o ou simplesmente cobrando o preço de mercado, a Ucrânia literalmente congela em todos os sentidos. Entretanto, para o oeste, mais próximo da União Europeia, a aproximação com esta significaria, em tese, maior autonomia em relação ao governo central e às demais regiões do país, além de mais oportunidades de colher investimentos. Pelo menos em tese.
Há também a questão do histórico repúdio aos russos, maior no oeste, um repúdio cujas últimas e trágicas edições foram uma relação ambígua, para dizer o mínimo, de movimentos nacionalistas ucranianos com o regime nazista da Alemanha, e um conflito sangrento e frequentemente descrito como inútil com o regime soviético. No leste, há também um fator étnico: o número de habitantes russos é muito grande, o que mexe com os brios dos movimentos nacionalistas. E é bom lembrar que, na Europa, ao contrário da América Latina, nacionalismo é sempre coisa de direita.
Se esse é o pano de fundo , deve-se levar em conta o que acontece nos bastidores e também no palco da política ucraniana. Nos bastidores, pairam as sombras dos grupos econômicos, assim como na Rússia, liderados pelos chamados oligarcas que se formaram depois do desmanche da ex-União Soviética, dos processos de privatização de tudo, feitos a toque de caixa, e da independência. Esses grupos de oligarquias é que dão as cartas, o poder do dinheiro para os que estão no palco, os políticos e seus partidos.
Entretanto, na Ucrânia, não houve, pelo menos até o momento, um Vladimir Putin que, na Rússia, digamos, botou a casa em ordem, oferecendo aos oligarcas a manutenção de suas fortunas recém-feitas (sobretudo durante o governo de Boris Yeltsin) desde que não se metessem em política. Enfiando os principais desobedientes na cadeia ou mandando-os para o exílio confortável, na verdade Putin e seu neoczarismo disfarçado de república impuseram uma espécie de pax romana em seu território. Na Ucrânia, não houve esse Putin, mas uma guerra de grupos ora antagônicos, ora aliados, pelas benesses dos oligarcas e pelos espaços de poder, o que conduziu todos a uma política onde alianças ocasionais são apenas passos para uma ideal tomada total do poder, no melhor estilo do "para mim e os meus tudo, para os demais os rigores da lei". Esse foi o conflito que se estabeleceu entre o atualmente já ex-presidente Viktor Yanukovitch e sua maior rival, Yulia Tymoschenko, que já fora primeira-ministra por duas vezes, líder do partido chamado de "União de Toda a Ucrânia Pátria Mãe", diríamos em português, embora em ucraniano seja "Pátria Pai".
Yanukovitch, chegando à presidência em 2010, ensaiou e pôs em prática uma reforma consitucional para aumentar a concentração de poderes em torno da presidência, alijando os demais partidos, inclusive o do Tymoschenko até mesmo das suas franjas. E, através de denúncias de corrupção e de um julgamento carregado de suspeitas, botou Yulia na cadeia. Aqui se pode ter uma ideia das complicações da política ucraniana. Yanukovitch é visto em geral como próximo da Rússia e Tymoschenko como aliada da União Europeia. Pois o primeiro processo aberto contra ela acusava a ex-primeira ministra de abuso de poder e super-faturamento no contrato de fornecimento de gás para Gazprom, a principal empresa russa do setor e uma das maiores do mundo que, como a Petrobrás, reúne capitais privados mas tem seu controle acionário e de fundos nas mãos do Estado.
Entrementes, o pró-Rússia Yanukovitch se aproximava da União Europeia e aprestava-se a assinar um acordo de livre-comércio com ela. Nessa altura, Moscou acendeu a luz vermelha. Para se entender isso, precisamos sair do teatro da política ucraniana e olhar o terreno em volta onde ele está localizado. Três grandes jogadores estão assentados nesse terreno, como os bispos de um jogo de xadrez, mais um cavalo que joga com dois deles, contra o terceiro. Os jogadores são a Rússia, a União Europeia e os Estados Unidos, e o cavalo é a OTAN, a aliança militar que teve como principal inimiga a antiga União Soviética e que agora, além de policiar o norte da África e áreas próximas, continua, nem que seja por força do hábito, a cercar seu adversário histórico, atraindo para si os ex-satélites deste.
Os interesses dos Estados Unidos e da UE não são coincidentes na região, pois na atual conjuntura interna de Washington não interessa atiçar o confronto a não ser na retóricacom a Rússia, devido às necessidades de acertos na Síria, no Irã etc. Já a UE tem interesse em desembarcar seus avatares dentro do teatro ucraniano, ampliando sua área de influência econômica, seu mercado e suas reformas de austeridade. Outro fator que complica esse movimento é o temor histórico dos EUA de que, mesmo com rivalidades marcantes, a proximidade entre Alemanha e Rússia termine por forjar uma aliança estável e poderosa que desenvolva outro núcleo regional de poder. Na base de um movimento desses, estaria novamente o gás russo, de que a Alemanha já depende e vai depender mais quando e se cumprir a promessa de desativar suas usinas nucleares.
De um modo ou de outro, o fato é que a Rússia colocou um sinal de Pare! nos movimentos de Yanukovitch: prometeu 15 bilhões de euros em empréstimos quase a fundo perdido, coisa que a UE, às voltas com suas próprias quebradeiras, não tem condições de oferecer à quebrada Ucrânia; baixou ainda mais o preço do gás e pôs à disposição um acordo de livre-comércio consigo mesma, mais outros países da região, ex-repúblicas, como a Ucrânia, da antiga URSS. Yanukovitch, que já estava com a caneta na mão e embarcando para Bruxelas, tampou aquela e desceu do avião. Junto aos projetos de novos capitalistas e da classe média do oeste ucraniano (onde o desemprego também é grande entre os jovens), que já sentiam o doce odor dos euros ao alcance da mão, este recuo foi a gota d'água.
Voltando ao cenário político, a gota d'água acabou se transformando num mar de sangue. É verdade que as manifestações foram reprimidas duramente pela polícia. Mas rapidamente sua linha de frente e também seu espaço foram ocupados por movimentos de extrema-direita, nacionalistas xenófobos, antirrussos, antidireitos humanos, anti-imigrantes, antissemitas, antietc., tradicionais na Ucrânia. São grupos de combate, armados, que fizeram frente a uma polícia que progressivamente foi se tornando caótica e desorganizada. Esses grupos são ligados, mas não necessariamente subordinados, ao Partido Svoboda, de extrema-direita, que tem representação no Parlamento. Na última semana, os confrontos chegaram ao paroxismo.
Na frente de negociação, assentaram-se à mesa três ministros de Relações da União Europeia (Alemanha, França e Polônia), Yanukovitch, três partidos de oposição e mais um representante da Rússia. Enquanto isto, na praça em frente, o conflito de agudizou, com armas de fogo de parte a parte, e franco-atiradores que provavelmente eram de ambos os lados, embora a polícia tivesse ainda maior poder de fogo. O resultado foi de centenas de feridos e muitas dezenas de mortos; as cifras desses últimos variavam entre cerca de 50 a mais de 70, com pelo menos 11 policiais. A certa altura, o noticiário chegou a informar que 70 policiais tinham sido sequestrados pelos manifestantes.
Coloquei manifestantes agora, logo acima, entre aspas, porque houve um movimento constante por parte da mídia do Ocidente de idealizar o que ocorria na praça principal de Kiev, apresentando os acontecimentos como um confronto desproporcional entre a brutal repressão do governo e os amantes da liberdade.
Apesar dessa cortina de fumaça, logo começaram a vazar as informações de que esses últimos eram, na maioria e na verdade, verdadeiras gangues neo-fascistas que não aceitavam nenhuma negociação nem nada , a não ser a queda de Yanukokovitch e o afastamento da arqui-inimiga Rússia.
Na mesa de negociação, chegou-se a um acordo, envolvendo um recuo nas reformas constitucionais promovidas pelo presidente, eleições em dezembro deste ano e a formação de um governo provisório de coalizão. Mas, na praça, a força policial vinha recuando cada vez mais diante dos manifestantes, a tal ponto que estes ampliaram os espaço sob seu controle, chegando inclusive a tomar as entradas do palácio presidencial. Sentindo-se sem condições de segurança, Yanukovitch deixou a capital em direção ao nordeste do país.
Seguiu-se, nessa altura, um verdadeiro golpe de estado no novo estilo legalizado corrente em várias ocasiões neste século XXI (Honduras, Paraguai, Grécia, Itália...): o Parlamento declarou que Yanukovitch abandonara o cargo e destituiu-o da presidência, com vários ex-membros de seu partido bandeando-se para o lado da oposição, antecipando as eleições para maio e libertando Tymoschenko, que já declarou-se candidata.
Que acontecerá no futuro? É uma boa pergunta. Antes de conjeturar, um parêntese: e as Forças Armadas da Ucrânia? Trata-se mesmo de um parêntese. Depois da independência em relação à ex-União Soviética, as FFAA abriram mão do arsenal nuclear que estava acantonado em seu território, passando-o à nova Rússia emergente, e diminuiram seu contingente de quase 800 mil para pouco mais de 300 mil homens. Estão entre a cruz e a caldeirinha, realizando manobras tanto com a Rússia quanto com a OTAN, que já se declarou de braços abertos para receber esse novo aliado quando ele quiser aderir. O namoro está no ar, e só não se concretizou por causa da vigilância do chá-de-pera Rússia. Até o momento, pelo menos, as FFAA ucranianas parecem estar olhando para o lado, pois nem mesmo a segurança do presidente foram capazes de garantir.
A esse caldo complicado, junta-se a ameaça de o país rachar em dois (pelo menos): a Criméia já manifestou desejos de se separar do restante do país e pedir sua reintegração à Rússia. E no oeste também há manifestações de separatismo e aproximação com a UE, à revelia das outras regiões.
O que vai acontecer vai depender das mensagens que estarão neste momento sendo trocadas entre Moscou, Washington, Bruxelas, Berlim, Paris e em menor grau outras capitais europeias, como Londres e Varsóvia. Qual será o novo arranjo entre os partidos políticos ucranianos? É uma boa pergunta. Tymoschenko vai mesmo recuperar seu antigo espaço na oposição que liderava, hoje ocupado por Vitali Klitschko, do Partido Democrático Aliança pela Reforma? O Svoboda vai aumentar seu poder de fogo? O que fará Yanukovitch? Os movimentos de trabalhadores, sobretudo no leste, ainda se mantinham a seu favor, embora no momento, com seu enfraquecimento, isto não tenha significado muito no tabuleiro enxadrístico ucraniano. E o que farão os grupos neofascistas que mantém Kiev sob seu controle?
O que estes farão ainda não se sabe. Mas já se sabe o que estão fazendo. No domingo pela manhã (23), enquanto eu redigia estas notas, corria a notícia em tom discreto, ao lado da retumbância triunfal dada ao discurso de Yulia Tymoschenko na praça da Independência, de que a Embaixada de Israel na Ucrânia emitira um comunicado pedindo que todos os judeus se abstivessem de sair às ruas de Kiev ou até mesmo deixassem a capital, se pudessem, diante dos ataques contra eles que se vêm sucedendo e intensificando nas ruas, com espancamentos, perseguições e outras coisas desse tipo.
Como em velhos mas nada bons tempos, brinca-se com fogo por aqui."
FONTE: escrito por Flavio Aguiar. Publicado originalmente no "Blog do Velho Mundo", na "Rede Brasil Atual". Transcrito no site "Carta Maior" (http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/O-que-houve-na-Ucrania-/6/30327).
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