quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

O SAMBA DO BRANQUELO DOIDO




Flávio Aguiar

O negacionismo do branquelo doido

"Há um negacionismo brasileiro, que vem a redundar no samba do branquelo doido. São vários que se unem numa espécie de negação meio esquizo da história e do real

Perdoem-me, leitoras e leitores, pelo tom enigmático do título. É que por extenso ele seria muito longo: ‘O negacionismo brasileiro e o samba do branquelo doido’.

Negacionismo todo mundo sabe o que é: é a palavra que recobre a teoria e a prática daqueles caras que negam o Holocausto. Uma barbaridade. E ninguém me venha argumentar com as atitudes do governo de Netanyahu ou de outros governos anteriores. Não vamos confundir Netanyahu com buganvílias, para não dizer bugalhos, já que parece que por lá não se produzem alhos. Negar o Holocausto é negar a História, é fechar os olhos para o que aconteceu em nome do que eu queria que tivesse acontecido – por sua vez, em nome do que eu quero que venha a acontecer.

Pois há um negacionismo brasileiro, que vem a redundar no samba do branquelo doido.

Bom, negacionismo implica negacionismos, pois são vários. Mas se unem todos numa espécie de negação meio esquizo da história e do real.

O primeiro negacionismo que me vem à cabeça é de brasileiros – intelectuais ou não – que vêm à Europa e acham que ‘falar mal do Brasil pega bem’. Nossa, descem o pau, sem comiseração. Dependendo do meio ambiente, mais ou melhor informado, a turma ergue os sobrolhos: quem é este ou esta cara, quem ou o que representa?

O público aqui, é verdade, não é burro. Aliás, em geral, nem aí.

O segundo, mais sofisticado, é o desqualificador.

Nada no Brasil adianta. Nada no Brasil adiantou nos últimos milênios, porque décadas para esse povo é pouco. E tem mais: precisa revisar a história. Negar a História.

Aí a fauna e a flora são muito variadas, e não apenas brasileiras.

Vamos começar pelo Brasil.

Vem daí a notícia de que um professor universitário, candidato a historiador, proclamou que a ditadura brasileira não durou 21 anos, mas somente 11, de 1968 (Ato 5) a 1979 (Lei da Anistia). Não importam os tanques nas ruas e os assassinatos nas catacumbas desde 1964, nem a eleição de um presidente (João Figueiredo, o simpático amante de cavalos) por 1 x 0, voto de Geisel (sim, também contra a extrema-direita). O proto-historiador assume sem mais aquela nem aquele o discurso 'direital' de que a ‘Revolução’ foi traída em 68. Ah, mas ao contrario do restante da América do Sul, a ditadura brasileira promoveu o comércio, a indústria, o desenvolvimento. Aumentou o número de universidades. Por isso não poderia ser comparada às co-irmãs hispano-americanas (olhaí o antigo traço de que somos luso-melhores em relação aos nossos vizinhos castelhanos). Ah sim, é bom lembrar a este hipo-historiador: Hitler fez o mesmo na Alemanha. Deve ter sido também uma ‘meia-ditadura’. Até porque para se eleger não precisou de tanques; estes vieram depois.

É uma hipótese mais refinada do que a da ‘ditabranda’ da Folha de S. Paulo. Mas o açucareiro é o mesmo.

Basta? Não! Porque aí vem um diplomata nada diplomático – aqui mesmo nesta "Carta Maior" – dizer que está tudo igual a dantes no quartel do FHC-saints. Que desde 1954 (talvez pela morte do finado Dr. Getúlio) nada mudou, e que a expressão deste ‘nada mudou’ é o PSDB-lulo-petismo que continua a arruinar o país. Um verdadeiro peronismo requentado. Em primeiro lugar porque Vargas nada tinha a ver com esta perspectiva simplória. Em segundo lugar, porque o peronismo original nada tinha de simplório. Mas não importa.

O que importa é negar tudo o que aconteceu: redistribuir renda não é nada, melhorar a vida dos pobres também não, nada disto importa, o que importa é seguir os planos meio faraônicos, descendentes desde os tempos da Guerra Fria, e conseguir armar um arcabouço militar que leve à derrota dos inimigos.

Parece mentira? Não é. Há quem pense assim.

Aí vem o melhor, a quintessência: o 'whiteblock' europeu. Um analista diz que nossa Constituição não vale nada. Que o melhor exemplo é o dos países do Leste Europeu. Lá (aqui) sim, houve uma troca de mãos no poder. Éééé? Bom, vamos ver. Em alguns lugares, não houve: na Romênia, não houve. Na época, o grupo dominante, depois de uma guerra civil que até hoje ninguém esclareceu, despachou Ceaucescu e a sua esposa para a pior e ficou no poder – mais ou menos que nem agora o general Al-Sisi no Egito, o pós-Mubarak. Rússia? O camarada Putin, o domador de leopardos e tigres conforme o noticiário – era o chefe da KGB. Melhor ‘troca’ de poder não poderia haver. Na Hungria, houve uma troca – para muito pior: o país está dominado por um grupo de extrema-direita, antitudo o que há de bom no mundo. A maioria dos outros países estão nas mãos de uma direita ávida perante seu povo mas timorata perante as grandes potências. Outro exemplo: a Ucrânia. Nenhuma das forças institucionais em disputa pode ser declarada de esquerda. Todo mundo é de direita. Que exemplo para nós e para o mundo!

E ainda vem gente dizer que a Europa sabe o que fazer para enfrentar a direita. Onde? Aqui onde eu vivo não. A esquerda está pulverizada, esmagada, reduzida a nichos universitários ou a partidos minoritários ao extremo. Na Grécia, há o 'Syriza', é verdade. Mas não vai levantar a Grécia. Só se for puxando o país pelos próprios cabelos, como o Barão de Münchäusen e seu cavalo atolado. Na França, Hollande se atola, a direita sobe, Sarkozy quer voltar. A esquerda fica com sua minoria auto-satisfeita. Não compõe com ninguém, nem entre si, nem na verdade disputa. Mantém seu território, o que já é meritório: se não é uma solução, é uma rima.

Na Alemanha, a esquerda (Linke) também mantém seu território, e com dignidade, diga-se de passagem. Com a dignididade de uma velha dama encurralada.

Enquanto isto, a ex-esquerda (SPD) se entrega à volúpia do parco poder repartido com a direita. É verdade que trouxe o governo de Angela Merkel mais à esquerda – ou melhor – menos à direita, o que é meritório. Mas para admitir platitudes, como um salário mínimo nacional, ou uma aposentadoria combinada entre idade e tempo de contribuição, coisa que já tem provocado reações espumantes, escabujantes, da direita e do establishment econômico-acadêmico, tonitroando ameaças de desemprego, trabalho no mercado negro, etc. E os Verdes já faz muito que não têm quase nada de esquerda – a não ser algumas figuras respeitáveis, como o Ströbele.

Mas há mais. Enquanto essas coisas acontecem, no Brasil há coisas notáveis. Por exemplo: um ministro do Supremo Tribunal Federal levanta a suspeita de que quem doou dinheiro para correligionários petistas pagarem a dívida a quem foram condenados – entre outros – por ele mesmo, é suspeito de lavagem de dinheiro.
Veja bem, cara leitora, caro leitor: não se trata de algum colunista de nossa preclara velha mídia ‘isenta’ – quer dizer – caolha, pois só olha para um lado.
Trata-se de um ministro do Supremo, que vai julgar a denúncia que ele mesmo insinuou. Portanto, pode-se dizer, o caso está pré-julgado. Em mim, que doei, doeu: estou pré-condenado. E sem conta nas ilhas Caimã. Nem férias em Miami ou na Europa, embora eu viva aqui, mas trabalhando como um mouro.

Em suma, o clima não está para peixe, nem para crocodilo, nem para piranha. Está mesmo é para tubarão. Em mar de tubarão, jacaré, piranha e peixe ficam na praia.

Por isso mesmo, quando eu ia escrever ‘samba do crioulo doido’, voltei atrás e escrevi ‘do branquelo doido’. Homenagem ao nosso Stanislaw-Ponte-Excesso de Melanina.

Porque nestes tempos aloprados, eu iria acabar na lei Afonso Arinos. Condenado antes de sequer citado pelo Supremo. Supremo-Faraó, é claro.

Bom, pelo menos o título está explicado."

FONTE: escrito por Flávio Aguiar, de Berlim, para o site "Carta Maior"

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