sexta-feira, 25 de julho de 2008

PARA PINHEIRO GUIMARÃES, AL PRECISA DE UM PLANO MARSHALL

O jornal Valor publicou na semana passada (14) a interessante entrevista com o Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães a seguir reproduzida. Eu a li no site www.defesanet.com. O título original utilizado pelo jornal é o mesmo acima exposto.

“Logo à entrada do gabinete do secretário-geral do Ministério de Relações Exteriores, Samuel Pinheiro Guimarães, o desajeitado troféu Juca Pato - Intelectual do Ano, conferido em 2006 pela União Brasileira dos Escritores, lembra que o polêmico diplomata é, também, referência para uma parte importante da intelectualidade brasileira. No Itamaraty, despertou críticas com seus métodos de gestão, que incluíam a exigência de leitura de livros apontados por ele, para diplomatas em vias de promoção, mas firmou reputação de bom administrador, garantindo melhoria de infra-estrutura e de salários para o ministério.

Mestre em Economia pela Universidade de Boston, Pinheiro Guimarães é visto, hoje, como a face mais à esquerda da diplomacia brasileira, pelos críticos e pelos admiradores da política externa do governo Lula. É influente, e um dos principais emissários do governo em missões delicadas, embora, quando indagado, minimize sua atuação.

Sabedor da forte repercussão que costumam ter suas idéias, Pinheiro Guimarães evita entrevistas, embora publique regularmente livros sobre política externa, como o último deles, 'Desafios Brasileiros em Terra de Gigantes', que alinha ameaças e estratégias para a atuação do Brasil, no continente e em outras instâncias internacionais e faz comentários cortantes, como a afirmação de que os Estados Unidos são um país de 'povo democrático e elite autoritária'.

Para o Valor, Pinheiro Guimarães fala das FARC, Argentina, Itaipu, Estados Unidos, e defende uma 'espécie de Plano Marshall' para a América do Sul, mencionando o apoio americano para a reconstrução da Europa devastada do pós-guerra. 'Não há concessões excessivas quando as diferenças são tão extraordinárias e quando nossos interesses as exigem', comenta. Mas pede que leiam o contexto de suas afirmações.

Valor: O que diferencia a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) de outras instituições no continente que não saíram da retórica?

Samuel Pinheiro Guimarães: Tudo. A Unasul é o primeiro organismo sul-americano que reúne países subdesenvolvidos, com características comuns, para articular sua ação para dentro e para fora do continente. A Unasul já está sendo um extraordinário mecanismo de articulação e coordenação dos dirigentes da América do Sul. A defesa de nossos interesses comuns é vital em um mundo marcado pelo arbítrio, pela assimetria de poder entre Estados e pelas crises financeira, ambiental, energética e de alimentos. A redução do arbítrio e da assimetria e a solução dessas crises, que são fenômenos globais, dependerá de negociações que decidirão nosso futuro. As reuniões da Unasul geram oportunidades para encontros de presidentes e ministros, permitindo compreender os desafios de cada sociedade, definir esquemas de cooperação e articular posições comuns nas negociações com outros países e blocos.

Valor: O Brasil deve pagar para reduzir as chamadas assimetrias e garantir a integração continental?

Pinheiro Guimarães: As assimetrias são a característica principal da América do Sul e elas distorcem e dificultam a realização do nosso potencial. É indispensável que todos os países possam contribuir para o desenvolvimento econômico e para a estabilidade política da região e isso depende da redução das disparidades internas e das assimetrias entre eles. O livre jogo das forças de mercado e o livre comércio não serão suficientes para promover o desenvolvimento sempre que existirem gravíssimas deficiências estruturais e assimetrias enormes. Por esta razão, e até com menos razão, os países mais desenvolvidos europeus, em seu processo de integração, criaram fundos para o desenvolvimento dos países mais atrasados, em que os mais ricos contribuem com recursos importantes para o desenvolvimento dos mais pobres.

Valor: E qual será o custo para o Brasil?

Pinheiro Guimarães: Não há um custo em estabelecer melhores condições de financiamento de obras, de acesso a mercados, de investimentos. Há um custo enorme em não fazer ou em fazer como se os países fossem iguais em dimensão e potencial.

Valor: O que está sendo planejado concretamente pelo governo?

Pinheiro Guimarães: Um esforço maior de remoção dos obstáculos que dificultam a entrada de produtos dos vizinhos no mercado brasileiro, um maior esforço para melhorar as condições e volume de crédito para obras de infra-estrutura, um esforço maior para facilitar as transações comerciais aperfeiçoando os sistemas de pagamento em moeda local, um maior esforço para ampliar em muito os fundos de redução de assimetrias, tais como o Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul, o Focem.

Acima de tudo, é preciso imaginar um programa mais amplo, mais enérgico, mais generoso e mais ágil dos países mais ricos da região em favor daqueles mais pobres. Este programa é urgente, como foi o Plano Marshall para reconstruir a Europa, devastada após a guerra. Precisamos superar a devastação diária causada pelo subdesenvolvimento.

Valor: O Brasil não tem feito concessões excessivas aos vizinhos, à custa dos interesses do país?

Pinheiro Guimarães: Os interesses do Brasil, o seu desenvolvimento econômico e político, estão vinculados ao progresso econômico e à estabilidade política de cada vizinho e isto cada vez mais, devido aos laços que nos unem a eles e que tanto vêm se aprofundando e fortalecendo. Não há concessões excessivas quando as diferenças de dimensão são tão extraordinárias e quando nossos interesses as exigem para a construção de um bloco que nos fortaleça a todos.

Valor: A ajuda aos vizinhos deve se dar mesmo que isso aumente os custos, para os brasileiros, de energia, por exemplo?

Pinheiro Guimarães: A ajuda aos vizinhos reverte em benefício do Brasil. A construção da infra-estrutura, o desenvolvimento industrial, o aumento de demanda cria oportunidades não só para as empresas brasileiras mas para nossos trabalhadores pois aumenta a demanda por produtos e serviços brasileiros. O extraordinário aumento das exportações brasileiras, assim como os investimentos de empresas brasileiras nos últimos seis anos prova isto. Os custos serão sempre menores que os benefícios.

Valor: O presidente do Paraguai transformou Itaipu em medida de sucesso de sua gestão. O Brasil deve atendê-lo e reajustar a tarifa da hidrelétrica, como ele pede?

Pinheiro Guimarães: O cálculo da tarifa de energia leva em conta o custo de produção das diferentes empresas que operam no Brasil. A tarifa de energia elétrica de Itaipu é um dos componentes para o cálculo da tarifa geral. A tarifa de Itaipu obedece a método de cálculo definido pelo tratado, que tem sofrido ajustes ao longo do tempo, desde 1973. Preservado o elemento central do tratado, há sempre espaço para entendimentos técnicos. Há enormes possibilidades de cooperação entre Brasil e Paraguai para em benefício mútuo promover o seu desenvolvimento. O presidente Lugo e o presidente Lula sabem da importância deste esforço de compreensão e de cooperação.

Valor: As medidas protecionistas na Argentina e as restrições às exportações não comprometem a integração do Mercosul?

Pinheiro Guimarães: O Brasil é o principal fornecedor da Argentina no mundo. As exportações brasileiras cresceram 39% no primeiro quadrimestre, em comparação com 2007, e as exportações argentinas para o Brasil cresceram 41% mais do que haviam crescido em igual período de 2007. As empresas brasileiras participam da construção de duas grandes obras na Argentina e aguardam a contratação para sete outras e os investimentos empresariais se multiplicam nos mais diferentes setores da economia argentina.

Valor: A crise Argentina afeta em quê o Brasil? Como o país deve lidar com isso?

Pinheiro Guimarães: As crises nas economias da região são o reflexo de crises no centro da economia mundial. Essas são movimentos cíclicos do sistema capitalista, às vezes resultado de grandes manobras especulativas nos diferentes mercados de bens, como o petróleo, e no sistema financeiro desregulamentado pelo neo-liberalismo, hoje arrependido na prática.

Cada país da América do Sul tem características próprias e procura lidar com suas crises que têm origem no exterior a partir de sua visão dos interesses de sua sociedade. Se há crise na Argentina, como os arautos do pessimismo apregoam sem cessar, ela tem por hora afetado marginalmente o Brasil, como revela a expansão vigorosa de nosso comércio e dos investimentos. Nada temos a ensinar a quem quer que seja, em termos de política econômica, ou de qualquer outra.

Valor: Mas nem todos os países da região estão enfrentando problemas como os da Argentina. Não é exagero atribuí-los à crise nos centros da economia mundial?

Pinheiro Guimarães: Nem todos os países souberam vencer a gravíssima crise que a Argentina venceu e nem todos crescem à taxa que a Argentina tem crescido. Como a solução foi heterodoxa, as críticas não cessam nem a previsão de colapso iminente, sempre adiado.

Valor: As Farc não são uma ameaça ao Brasil? O governo brasileiro não deveria tomar alguma atitude com os outros países do continente para condenar a guerrilha?

Pinheiro Guimarães: As Farc são uma questão interna da sociedade colombiana. O Brasil anseia para que o povo colombiano encontre uma solução negociada para suas divergências. O Brasil está sempre disposto a atender qualquer solicitação do governo colombiano para colaborar neste sentido e já manifestou várias vezes essa posição. Não há queixa da Colômbia com relação à posição brasileira e, pelo contrário, há apreço e reconhecimento. Nem há pressa de nossa parte.

Valor: O senhor acredita que a mudança de atitude do presidente Hugo Chávez em relação às Farc possa ter sido provocada pelas denúncias de seu envolvimento com a guerrilha e a má repercussão que isso teve na Venezuela?

Pinheiro Guimarães: As mudanças de atitude de presidentes decorrem de sua avaliação da situação mundial e regional. Sei que Colômbia e Venezuela são países irmãos, unidos pela sua história comum e por fortes vínculos econômicos. Seu comércio bilateral atinge US$ 6 bilhões, sendo a Venezuela o principal mercado para as indústrias colombianas e muito importante para a sua agricultura. Há 4 milhões de refugiados colombianos na Venezuela e recentemente foi inaugurado um gasoduto entre os dois países. O interesse verdadeiro dos dois países é o entendimento e a cooperação.

Valor: A recusa da Colômbia em participar de um Conselho Sul-Americano de Defesa muda os planos do governo brasileiro em relação a esse órgão?

Pinheiro Guimarães: O Brasil continua convencido de que um Conselho de Defesa na América do Sul contribuirá para a construção de confiança, para melhor conhecimento entre dirigentes militares das questões que os preocupam, das oportunidades para executar programas de reequipamento e desenvolvimento da indústria de defesa no continente, o que além de gerar empregos e tecnologia economizará recursos e surpresas a todos nós. Com o tempo, haverá crescente compreensão da importância da coordenação política e de defesa na América do Sul, direito inalienável dos Estados soberanos.

Valor: As ONGs estrangeiras na Amazônia são ameaça à soberania nacional na região?

Pinheiro Guimarães: A ameaça à soberania da Amazônia é o seu subdesenvolvimento insustentável. As ONGs no mundo e no Brasil procuram influir sobre as políticas desenvolvidas pelos governos nos mais diversos campos. Sua atuação deve se pautar pelo respeito à lei e à soberania nacional.

Cabe ao Brasil executar políticas de desenvolvimento sustentável que atendam à realidade dos 25 milhões de brasileiros que vivem na Amazônia, que permitam a exploração racional de seus recursos, que defendam seus recursos de uma apropriação indébita, como a biopirataria. De forma sempre soberana.

Valor: As Forças Armadas devem sofrer mudanças para cumprir seu papel de defender a soberania brasileira?

Pinheiro Guimarães: As Forças Armadas necessitam de um esforço ainda maior de reequipamento para poder enfrentar a tarefa de defesa do território, do mar territorial, da zona econômica exclusiva, do espaço aéreo contra ameaças tradicionais, reais ou potenciais, e 'novas' ameaças. Esse esforço sistemático de modernização tecnológica e de reconstrução da indústria de defesa brasileira é imprescindível pois não há defesa eficaz quando se depende de equipamento importado.

Valor: A aproximação entre os países do continente e a eleição de governos de esquerda não contraria sua avaliação, em um de seus livros mais recentes, de que os EUA não abririam mão de ditar a agenda política na região?

Pinheiro Guimarães: Os Estados Unidos são e continuarão a ser o país com maior influência na região. Há mais influência americana em cada país da região do que influência de qualquer país da região em qualquer outro. É claro que a influência econômica, social, cultural, tecnológica, política, militar dos Estados Unidos no Brasil é muito maior do que a influência de qualquer país andino, caribenho ou platino no Brasil.

Essa crescente aproximação entre os países sul-americanos e a eleição de governos, de diferentes matizes, de esquerda permitem um diálogo mais proveitoso e respeitoso entre os países da região e de cada um deles com os Estados Unidos, e uma articulação serena e digna em defesa de nossos interesses.

Valor: O senhor ainda crê que os EUA são um país com povo democrático e elite autoritária?

Pinheiro Guimarães: O povo americano é democrático, como comprovam seus 232 anos de democracia e seus renovados esforços para aperfeiçoá-la, como foram a Guerra Civil para abolir a escravidão, a legislação dos direitos sociais, hoje ameaçada, a oposição popular à Guerra do Vietnã, a necessária reforma do sistema eleitoral, às vezes falho, e o aumento da participação popular na escolha dos candidatos com a indicação de um afro-descendente para presidente.

As elites tendem a se comportar de forma imperial em suas relações com os demais Estados, devido à sua crença na perfeição suprema dos sistemas político, econômico e social americano. Isto por vezes lhes causa grandes decepções e surpresas. É preciso reformar, democratizar o sistema político internacional, defender e lutar pelos princípios das Nações Unidas, fundada pelos Estados Unidos, onde quer e por quem quer que estejam sendo violados: não intervenção, autodeterminação, respeito à integridade territorial, solução pacífica de controvérsias, igualdade soberana dos Estados.”

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