sábado, 29 de setembro de 2012

O PAPEL DA MÍDIA E DOS CIVIS NO GOLPE MILITAR DO CHILE

Palácio La Moneda, Santiago, 11 de setembro de 1973

Por José Justino de Souza Neto

“Fora de pauta? Pode ser. Mas, como diziam os gregos antigos, a verdade também é o não-esquecimento.

Abaixo, uma tradução livre de um texto que aponta alguns responsáveis (civis-midiáticos, principalmente) pelo golpe militar no Chile e a subserviência que tinham em relação aos interesses do Departamento de Estado dos EEUU.”

Publicado em “Punto Final”

OS GENERAIS CIVIS DO GOLPE DE ESTADO

AGUSTIN Edwards, dono do maior jornal chileno, o 'El Mercurio', pediu aos EEUU que implementassem um golpe militar no Chile
“Não parece explorado a fundo o papel que os civis tiveram na conspiração que, ao longo de mais de três anos, culminou com o golpe militar de setembro de 1973, quando se abriu a porta a uma ditadura que mudou profundamente o Chile.

Os "generais civis" não hesitaram em produzir o caos e, em seguida, respaldar, sem maiores escrúpulos, as atrocidades selvagens que se prolongaram dezessete anos. Muitos deles se enriqueceram e, até hoje, se esquivam de responsabilidades e vergonhas. Engendraram para empurrar os militares e para executar a política que mais convinha aos interesses da oligarquia.

À cabeça da conspiração esteve Agustín Edwards Eastman, então diretor proprietário do grupo “El Mercurio” e cabeça de um grupo econômico. Edwards sofreu verdadeira comoção pelo triunfo de Salvador Allende e a derrota do candidato de direita, Jorge Alessandri. Havia acreditado nas pesquisas e nas opiniões de Edward Korry, embaixador dos EEUU. Os piores pesadelos pareciam materializar-se. “El Mercurio” havia planejado que a decisão do povo se daria entre democracia e comunismo. Havia triunfado o comunismo. E isso era o que temia Edwards. Dois anos antes, quando o general Roberto Viaux havia se aquartelado no Regimento Tacna, tentando derrubar o presidente Eduardo Frei Montalva, o dono do “El Mercurio” -segundo se diz- conspirou nas sombras. E para assegurar-se, havia viajado aos EEUU.

CONSPIRADORES E GOLPISTAS

Em setembro de 1970, o proprietário de “El Mercurio” -que havia vivido nos EEUU- decidiu viajar a Washington. O convidava seu amigo, o principal executivo da Pepsi Cola, próximo ao presidente Richard Nixon. Seu objetivo era falar com o presidente dos EEUU. E conseguiu. A entrevista foi breve, mas específica. Edwards pediu a Nixon que interviesse para que Allende não pudesse ser presidente da República, fazendo com que o Congresso chileno, que deveria decidir entre as duas maiorias relativas, ou seja entre Allende e Alessandri, elegesse o segundo. Nixon esteve de acordo. E não era para menos, porque, praticamente, desde o mesmo 4 de setembro -como revelou o “Informe Church”-, Nixon e seu secretário de Estado, Henry Kissinger, estavam projetando, com a CIA, medidas de urgência com fundos ilimitados para barrar o passo de Allende de qualquer forma. Incluindo, implicitamente, o assassinato.

Edwards, entretanto, decidiu ficar nos EEUU, trabalhando numa subsidiária da Pepsi Cola. Só voltou ao Chile em 1975. Deixou, em todo caso, a dois pesos pesados a responsabilidade dos negócios jornalísticos: Arturo Fontaine Aldunate, um ideólogo da direita e, como diretor, a René Silva Espejo, experiente redator político com relações com oficiais do exército e a FACH [Fuerza Aerea de Chile]. Uma prática que o próprio Edwards cultivava esmeradamente como membro de uma confraria náutica. “El Mercurio” travou luta sem quartel e sem escrúpulos. Desde junho de 1973, clamou abertamente por golpe de Estado.

A desestabilização inicial centrava-se na pressão sobre a Democracia Cristã para que votasse a favor de Alessandri no Congresso Pleno; o candidato de direita renunciaria em seguida à Presidência da República e deveria chamar novas eleições, nas quais a DC e a direita unidas poderiam reeleger Eduardo Frei. Ao mesmo tempo, [montou-se e] desencadeou-se uma ofensiva terrorista para amedrontar a população. Simultaneamente e no maior segredo, com a colaboração de agentes ianques, planejava-se o sequestro do comandante em chefe do exército, general René Schneider, numa operação que contava com o apoio dos chefes máximos das Forças Armadas e Carabineiros. O sequestro seria a provocação necessária que obrigaria os militares a intervir.

As conversações políticas fracassaram quando a DC negociou com a Unidade Popular um “Estatuto de Garantias” para votar a favor de Allende no Congresso. Poucos dias depois, o general Schneider foi ferido de morte no atentado realizado pela ultradireita, o que provocou reação corporativa no exército, que cerrou fileiras junto ao general Carlos Prats, e foi necessário mudar de estratégia por outra que seria de longo prazo. Era necessário esperar que a economia, submetida a tensões internas e externas [capciosamente] provocadas pelos EEUU, atuasse. A pressão sobre a Democracia Cristã deveria acentuar-se para que se aliasse com a direita. Seria necessário um movimento de massas que incluísse setores médios e inferiores, e uma crescente agitação que levasse em definitivo as Forças Armadas, e especialmente o exército, a dar um golpe de Estado.

Passados os primeiros sessenta dias, a tranquilidade começou a impor-se. Mas não entre os grandes empresários que preparavam as espadas. Eugenii Heiremans, importante dirigente empresarial, propôs ao engenheiro Orlando Sáez que cumprisse um papel de primeira linha. Necessitamos, lhe disse, dirigentes jovens, menos conhecidos, que sejam capazes de articular um movimento gremial muito amplo que alcance todos os pequenos e grandes empresários, os comerciantes e os transportadores. Isso para começar. Orlando Saéz começou a mover-se. Foi para o exterior. Na Argentina, México, Peru e Brasil, reuniu-se com empresários amigos, não só chilenos, para que financiassem a oposição antiallendista. Em outubro de 1974, no “New York Times”, um jornalista ianque, Jonathan Kendall, revelou que dirigentes da SOFOFA haviam contado que, do México, Peru e Venezuela, haviam enviado 200 mil dólares ao Chile para sustentar a greve dos camioneiros. Kendall afirmou que os dirigentes empresariais chilenos "não disseram quanto dinheiro receberam da CIA". E também os empresários agrícolas foram implacáveis. Distinguiu-se Benjamín Matte, dirigente de “Patria y Libertad”, movimento sedicioso que começou a preparar ações armadas e sabotagens. “Patria Y Libertad” foi dirigida pelo advogado e professor de direito civil, Pablo Rodríguez Grez. Teve grupos de choque e sabotadores, vinculações secretas com grupos subversivos das Forças Armadas e participou no "tanquetazo" de 28 de junho de 1973, ante-sala do golpe de 11 de setembro. Depois do golpe, muitos de seus militantes se incorporaram aos organismos repressores. O latifundiários resistiam à reforma agrária iniciada nos tempos de Frei Montalva, que sabiam iria se aprofundar no governo de Allende. Muitos empresários queriam castigar os camponeses que recebiam terras. A “Compañia Manufacturera de Papeles y Cartones”, do grupo “Matte”, transformou-se, com apoio da CIA, num baluarte da oposição. Seu executivo máximo, Ernesto Ayala, mão direita de Jorge Alessandri, converteu-se no dirigente opositor entre os empresários.

Ricardo Claro Vial atuava por seu lado. Suas empresas –“Elecmetal” y “Cristalerías Chile”- foram confiscadas, assim como a companhia naval “Sudamericana de Vapore”. Fazia show de seu anticomunismo. Quando estudante universitário, havia denunciado colegas de curso como militantes comunistas pedindo sua expulsão da Universidade. Conservador integrista, Claro tinha bons contatos com a Marinha e prestígio entre os empresários por seu manejo de informação, especialmente de mercados internacionais. Depois do golpe, Claro -que foi nomeado assessor da Chancelaria dirigida pelo contra-almirante Ismael Huerta- recuperou suas empresas, pôs barcos à disposição dos golpistas para que servissem de cárceres e não se preocupou muito pela sorte dos dirigentes sindicais de suas empresas que se converteram em detidos desaparecidos. Sustenta-se que Ricardo Claro foi um dos financiadores da DINA, o que não tem sido investigado suficientemente.

JAIME GUZMAN, O IDEÓLOGO

O sociólogo francês Alain Touraine, que estava então no Chile, e viu Jaime Guzmán na televisão pouco antes do golpe, deixou um retrato exato em seu livro “Vida y muerte de Chile popular”: "Fico impressionado ao ver e escutar a um tal Guzmán, jornalista que é além disso professor de direito constitucional na Universidade Católica: jamais havia visto um homem assim neste país. Assustou-me: nos momentos de extrema tensão é que se veem sair as cabeças mais horríveis. A sua está habitada por uma paixão fria armada de uma lógica falsa: é um inquisidor, sua palidez é a dos jovens fascistas de antes da guerra. Cada uma de suas palavras lança uma manobra sinuosa. Não sei se faz parte de algum grupo extremista clandestino. Em todo caso, merece ser um de seus chefes, pois pertence ao mundo do fanatismo fascista".

Essa é a verdade. Jaime Guzmán sempre foi fascista. Nunca foi um democrata como fingia demonstrar. Quando adolescente, foi franquista. Era seguidor do sacerdote Osvaldo Lira, mentor do “Movimiento Revolucionario Nacional Sindicalista” e futuro capelão da DINA. Jaime Guzmán foi dirigente de “Patria y Libertad”. Depois do golpe, se aproximou do general Gustavo Leigh, porque este prometia extirpar "o câncer marxista"; só depois se aproximou de Pinochet. Entretanto, guardava silêncio sobre as atrocidades em matéria de direitos humanos, e dizia que o fazia para poder continuar ajudando, em silêncio, a algumas vítimas da repressão.

Renato Cristi, acadêmico, expert no pensamento de Jaime Guzmán, assinalou: "Parece-me que Guzmán é o autor intelectual do golpe militar. Não ocorria a Pinochet destruir a Constituição, o golpe foi dado precisamente para protegê-la". Guzmán sentia, como escreveu a sua mãe, que com Pinochet "O Chile haveria de encontrar seu verdadeiro destino".

No ano de 1975, escrevia: "A crença de que a democracia deve aceitar a coexistência de marxistas leninistas e democratas na vida cívica, no meio de um Estado ideologicamente neutro, é um grave erro porque a democracia deve proteger-se. Sem cair em excessos de fanatismo macartista, creio que os Estados livres devem ser militantemente antimarxistas e anticomunistas". Na discussão constitucional, Guzmán propôs e fez aprovar as normas para a vigência de uma "democracia protegida": binominal, leis orgânicas constitucionais e virtual impossibilidade de reformar a Constituição devido ao previsível empate que se produziria entre maioria e minoria configuradas em dois blocos que se enfrentam. Foram aprovadas outras normas altamente reacionárias -como o artigo 8° para proscrever a esquerda, a criação do Conselho de Segurança Nacional e dos senadores designados-, que foram anuladas à medida que consolidava a transição.

Jaime Guzmán foi um político hábil e com clara visão de futuro para seus interesses. Teve notáveis condições de liderança. O "gremialismo" -origem da UDI- por sua inspiração, prestou atenção especial a estudantes, jovens e mulheres.

“COLÔNIA DIGNIDAD”

Há sérios antecedentes, todavia sujeitos a investigação judicial, de que a “Colônia Dignidad”, próxima de Parral, dirigida por Paul Schaeffer, condenado por pedofilia, que morreu preso, foi um centro de torturas, de eliminação de presos políticos e ocultamento de restos de prisioneiros. Está demonstrado que, antes do golpe, Schaeffer e seus sequazes colaboraram com “Patria y Libertad” e com oficiais navais e militares que preparavam ações de sabotagem.

Radicalmente anticomunista, “Dignidad” saudou como triunfo próprio o golpe militar. A descoberta de arsenais, de automóveis pertencentes a detidos políticos cujo paradeiro não se conhece ainda, o desaparecimento do físico ianque Boris Weisfeiler e os testemunhos de políticos torturados no que fora um enclave de colonos alemães submetidos à vontade e à corrupção de seus líderes, torna verossímeis as denúncias que se investigam.

Dignidad” não foi somente um modelo admirado por Pinochet, Lucía Hiriart e altos comandantes, como o almirante Patricio Carvajal, ou por funcionários e homens de negócios da direita alemã, como o chanceler da Baviera, Franz Josef Strauss, mas também foi apoiada por dirigentes da direita chilena. Na democracia, deputados e senadores da UDI e “Renovación Nacional” foram zelosos defensores da “Colonia” frente às acusações que, definitivamente, demonstraram-se certas. Com excessão de Sebastián Piñera, pronunciaram-se contra a revogação da personalidade jurídica da “Colonia”. A proximidade “Dignidad-UDI” é um fato. A ex-ministra da Justiça Mónica Madariaga lembrou, numa entrevista, a presença de Jaime Guzmán, Pablo Longueira e outros dirigentes desfrutando da hospitalidade da “Colonia”. Mónica Madariaga foi desmentida, mas insistiu, esclarecendo que era explicável que a paz que rodeava a “Colonia” tenha levado aos então jovens líderes a utilizá-la como eventual lugar de descanso. Não teria sido estranho. Pinochet foi mais de uma vez à “Colonia”, Manuel Contreras foi também um visitante assíduo, inclusive acompanhado de seu filho Manuel Contreras Valdebenito; também me lembro de ter visto então dirigentes da UDI. Lucía Hiriart elogiou, com entusiasmo, "os alemães" da “Colonia” por suas obras de apoio à comunidade vizinha.

O MODELO ECONÔMICO

No mesmo 11 de setembro de 1973, o Alto Comando da Marinha recebeu volumoso estudo econômico, que havia encarregado a um grupo de economistas de direita. Indicava as medidas indispensáveis para começar a construção de uma economia a serviço dos vencedores, que eram as classes abastadas. Havia sido preparado, basicamente, por economistas da Universidade Católica que, há quase dez anos, mantinham um convenio com a Universidade de Chicago, onde imperava o pensamento neoliberal de Milton Friedman. Ano após ano, viajavam a essa universidade ianque alunos diplomados que voltavam munidos de instrumentos teóricos para estabelecer um “capitalismo desregulado”, com uma “drástica diminuição das funções do Estado” e “tarifas nulas”, “aberto ao mundo” e baseado no “aproveitamento das vantagens comparativas”. Obviamente, o documento considerava eliminar por completo a obra da “Unidade Popular”. O trabalho feito a pedido da Marinha, que preparava o golpe, foi chamado "El ladrillo" por sua extensão e espessura, e seus autores, logo conhecidos como “Chicago boys”, ainda que nem todos viessem dessa universidade.

Respaldados pela Marinha (através de Roberto Kelly), logo assumiram funções de governo. Um foi o empresário Fernando Léniz, ex-gerente do “El Mercurio”. Logo depois, veio Jorge Cauas, que havia atuado no governo de Frei Montalva, até que chegou Sergio de Castro, que junto a Pablo Baraona e Miguel Kast eram os líderes do grupo que controlava a Faculdade de Economia da Universidade Católica e também seu Instituto de Economia.

As medidas econômicas que impuseram foram drásticas. Tão brutais, segundo seus críticos, que só puderam impor-se pela feroz repressão da DINA, o Comando Conjunto e os serviços de inteligência e segurança das Forças Armadas e Carabineiros, como foi denunciado em Washington pelo ministro Orlando Letelier poucos dias antes de ser assassinado por agentes da ditadura.”

FONTE: escrito por Roberto Ortiz e publicado em “Punto Final”, edición Nº 765, 31 de agosto, 2012. Contribuição de José Justino de Souza Neto para o portal de Luis Nassif  (http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/o-papel-dos-civis-no-golpe-militar-do-chile) [Imagem do Google adicionada por este blog ‘democracia&política’].

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