Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho), do blog Outras Palavras
"Está em curso um raciocínio distorcido, à esquerda do espectro político. São enumerados todos os incontáveis defeitos do governo Dilma Rousseff (o horror das políticas indígena, agrária e ambiental, a conivência com mineradoras, sua truculência pessoal, a política econômica, as traições de campanha) para em seguida se dizer: não importa, portanto, que ela caia; ela não representa a mim e nem os excluídos, e sim aquela nossa velha plutocracia de sempre.
Essa percepção ignora o decisivo fato de que estamos em uma democracia. Imberbe, um arremedo, mas uma democracia. E traz embutida uma certa ingenuidade. Como se vivêssemos em uma curiosa espécie de parlamentarismo onde só esses setores da esquerda apitassem. Um jogo de xadrez só com as nossas peças. “Não gostamos?” – pensam esses indignados veementes subitamente transformados em indignados blasé. “Que troquem – pois não faz diferença mesmo”.
Eu assino embaixo de quase todas as críticas “pela esquerda” a Dilma Rousseff ou ao lulopetismo. A ponto de nunca ter votado nela. Mas fico mais do que pasmo ao ver essa dedução aparentemente lógica (“não faz diferença”) ser enunciada por gente que respeito em suas áreas de atuação. Porque se trata de um falso silogismo: Dilma é ruim; estão promovendo o golpe; então que ela caia. É quase uma visão cristã – a de que cada ser ou partido deva pagar pelos seus pecados políticos.
Esse sofisma não pode ser aceito – para começo de conversa – porque parte de uma premissa inaceitável: a do golpe. Movido por um impeachment tresloucado, sem base jurídica, sem que ela tenha cometido crime de responsabilidade. Um golpe. Aceita-se, simplesmente, a possibilidade de um golpe. Maximiza-se Dilma e minimiza-se a rasteira. E é muito perigoso que cabeças pensantes naturalizem essa abominação “porque ela não fez nada do que a gente queria e joga o jogo do mercado”.
Sem dúvida. Joga mesmo. E parecia estar claro em 2014, para quem tivesse olhos para ver. Ou mesmo em 2010. Até mesmo em 2002 era possível enxergar a guinada do PT ao centro. (Ainda que também precisemos computar a diminuição da miséria e outras políticas inclusivas da era Lula – e me refiro ao ex-presidente porque o governo Dilma Rousseff, de fato, tem poucos méritos específicos.) Ou só descobriram agora a Carta ao Povo Brasileiro, conhecida como Carta aos Banqueiros?
O PIOR DOS MUNDOS
O Leviatã de Thomas Hobbes (1651)
Alguém poderá argumentar que o Estado, no fim das contas, é burguês, intrinsecamente burguês, e o presidente (ou primeiro-ministro) de plantão fará governos a favor do modelo econômico vigente. Certo. Mais ou menos isso – com certas nuances. Mas aí que se assuma de vez o desprezo geral e irrestrito por essa democracia, e que se apresente uma alternativa de mudanças mais efetiva do que as vidraças despedaçadas pelos "black blocs". (Quantos milímetros eles avançaram nesta semana?)
Enquanto essas alternativas não vêm, e mencionados honrosamente os estudantes secundaristas de São Paulo, esta é a democracia que temos. Como sempre digo, cercada de coerções por todos os lados. A democracia é um arquipélago. Apenas a algumas ilhotas podemos nos agarrar, mais ou menos, conforme nossa condição social. Alguns simplesmente não usufruem dessa democracia, não lhes é dado esse direito. A questão central é que, ruim com ela, pior sem ela. E isso já deveria ter ficado claro, não?
Quem se declara de esquerda não pode invocar o direito à amnésia que caracteriza os setores mais desinformados da direita. Até porque tem gente de centro e centro-direita que tem noção do que seria esse retrocesso, essa implosão do sistema representativo, essa anulação do voto de dezenas de milhões de eleitores, a Constituição rasgada – esta que, não custa lembrar, ainda pode ser piorada. E cabe perguntar: caso seja vaga, a cadeira presidencial seria capturada por quem mesmo?
Não que esse seja o ponto crucial. Às vezes dá a impressão que parte da esquerda acharia muito legítimo (misturando um pouco de Hobbes com o Cândido de Voltaire) um Leviatã canhoto, um senhor todo-poderoso, mas bom moço, justo, que trocasse uns fuzilamentos por uma boa conversa, um cara com boa lábia e ao mesmo tempo um gênio da economia e da psicologia, capaz de domar todas as multidões de descontentes e todos os conflitos – sociais, econômicos, ambientais.
O que estou querendo dizer é que, mesmo que o mais progressista e arguto dos mortais assumisse o cargo de uma presidente apeada do poder, teríamos uma gigantesca crise institucional, um desastre. Pois da próxima vez, sob qualquer pretexto do parlamento da ocasião, ele mesmo seria o próximo a ser degolado. E o próximo e a próxima e o próximo. Em qualquer hipótese, portanto, haveria retrocesso. O melhor dos mundos ainda seria o pior dos mundos.
E simplesmente não é o caso. Não é esse o cenário. Quem vem lá, caso derrubem essa presidente confusa, será um senhor chamado Michel Temer, quem vem lá são os cavaleiros do apocalipse peemedebista, esse apocalipse da eterna conveniência, construído discursivamente para reduzir ainda mais nossos direitos – e quem sabe capturar novamente a Polícia Federal, cortar as políticas assistencialistas, expulsar os médicos cubanos e os refugiados haitianos. O pior dos mundos agregado ao pior dos mundos.
ESQUERDA DISTRAÍDA
A Batalha da Maria Antônia: outubro de 1968
Ou seja, esses setores da esquerda conseguem dar de ombros (eu não consigo entender com qual perspectiva histórica) para a tomada à força do poder pela direita mais tosca, por essa trupe chantagista que se instalou no PMDB em regime de comunhão de bens com as bancadas ruralista, do fundamentalismo bíblico e da bala. (Sim, Dilma é amiga de Kátia Abreu e faz o jogo do agronegócio, mas a história mostra que tudo pode sempre ser pior. Que tal Kátia Abreu, ela mesma?)
De qualquer modo, o desprezo mais visceral possível a essa presidente específica ou a esse governo não pode simplesmente migrar para o desprezo à democracia. Essa seria uma visão equivocada mesmo numa perspectiva conservadora – pensando numa perspectiva conservadora que não seja movida a psicopatias. E se a esquerda continuar soando mais casuística que conservadores não construirá credibilidade nenhuma. A não ser que se jacte de sua solidão.
Somente um ódio muito cego (como um apaixonado em seus piores momentos de agressividade possessiva) para dar mais importância aos defeitos de uma presidente específica do que à própria democracia. E diversos ensaios já foram escritos sobre cegueiras. Não estou falando de José Saramago nem de literatura. E sim dos livros de história – história do mundo, história do Brasil, sugiro até pesquisas não muito profundas sobre a história recente do país.
Muita gente lutou e morreu para olharmos de lado, como se não fosse conosco mais esta treva."
FONTE: escrito por ALCEU CASTILHO, jornalista. Publicado no pórtal "Brasil 247" (https://www.brasil247.com/pt/colunistas/alceucastilho/209807/Esquerda-indiferente-a-golpe-maximiza-Dilma-e-relativiza-democracia.htm).
"Está em curso um raciocínio distorcido, à esquerda do espectro político. São enumerados todos os incontáveis defeitos do governo Dilma Rousseff (o horror das políticas indígena, agrária e ambiental, a conivência com mineradoras, sua truculência pessoal, a política econômica, as traições de campanha) para em seguida se dizer: não importa, portanto, que ela caia; ela não representa a mim e nem os excluídos, e sim aquela nossa velha plutocracia de sempre.
Essa percepção ignora o decisivo fato de que estamos em uma democracia. Imberbe, um arremedo, mas uma democracia. E traz embutida uma certa ingenuidade. Como se vivêssemos em uma curiosa espécie de parlamentarismo onde só esses setores da esquerda apitassem. Um jogo de xadrez só com as nossas peças. “Não gostamos?” – pensam esses indignados veementes subitamente transformados em indignados blasé. “Que troquem – pois não faz diferença mesmo”.
Eu assino embaixo de quase todas as críticas “pela esquerda” a Dilma Rousseff ou ao lulopetismo. A ponto de nunca ter votado nela. Mas fico mais do que pasmo ao ver essa dedução aparentemente lógica (“não faz diferença”) ser enunciada por gente que respeito em suas áreas de atuação. Porque se trata de um falso silogismo: Dilma é ruim; estão promovendo o golpe; então que ela caia. É quase uma visão cristã – a de que cada ser ou partido deva pagar pelos seus pecados políticos.
Esse sofisma não pode ser aceito – para começo de conversa – porque parte de uma premissa inaceitável: a do golpe. Movido por um impeachment tresloucado, sem base jurídica, sem que ela tenha cometido crime de responsabilidade. Um golpe. Aceita-se, simplesmente, a possibilidade de um golpe. Maximiza-se Dilma e minimiza-se a rasteira. E é muito perigoso que cabeças pensantes naturalizem essa abominação “porque ela não fez nada do que a gente queria e joga o jogo do mercado”.
Sem dúvida. Joga mesmo. E parecia estar claro em 2014, para quem tivesse olhos para ver. Ou mesmo em 2010. Até mesmo em 2002 era possível enxergar a guinada do PT ao centro. (Ainda que também precisemos computar a diminuição da miséria e outras políticas inclusivas da era Lula – e me refiro ao ex-presidente porque o governo Dilma Rousseff, de fato, tem poucos méritos específicos.) Ou só descobriram agora a Carta ao Povo Brasileiro, conhecida como Carta aos Banqueiros?
O PIOR DOS MUNDOS
O Leviatã de Thomas Hobbes (1651)
Alguém poderá argumentar que o Estado, no fim das contas, é burguês, intrinsecamente burguês, e o presidente (ou primeiro-ministro) de plantão fará governos a favor do modelo econômico vigente. Certo. Mais ou menos isso – com certas nuances. Mas aí que se assuma de vez o desprezo geral e irrestrito por essa democracia, e que se apresente uma alternativa de mudanças mais efetiva do que as vidraças despedaçadas pelos "black blocs". (Quantos milímetros eles avançaram nesta semana?)
Enquanto essas alternativas não vêm, e mencionados honrosamente os estudantes secundaristas de São Paulo, esta é a democracia que temos. Como sempre digo, cercada de coerções por todos os lados. A democracia é um arquipélago. Apenas a algumas ilhotas podemos nos agarrar, mais ou menos, conforme nossa condição social. Alguns simplesmente não usufruem dessa democracia, não lhes é dado esse direito. A questão central é que, ruim com ela, pior sem ela. E isso já deveria ter ficado claro, não?
Quem se declara de esquerda não pode invocar o direito à amnésia que caracteriza os setores mais desinformados da direita. Até porque tem gente de centro e centro-direita que tem noção do que seria esse retrocesso, essa implosão do sistema representativo, essa anulação do voto de dezenas de milhões de eleitores, a Constituição rasgada – esta que, não custa lembrar, ainda pode ser piorada. E cabe perguntar: caso seja vaga, a cadeira presidencial seria capturada por quem mesmo?
Não que esse seja o ponto crucial. Às vezes dá a impressão que parte da esquerda acharia muito legítimo (misturando um pouco de Hobbes com o Cândido de Voltaire) um Leviatã canhoto, um senhor todo-poderoso, mas bom moço, justo, que trocasse uns fuzilamentos por uma boa conversa, um cara com boa lábia e ao mesmo tempo um gênio da economia e da psicologia, capaz de domar todas as multidões de descontentes e todos os conflitos – sociais, econômicos, ambientais.
O que estou querendo dizer é que, mesmo que o mais progressista e arguto dos mortais assumisse o cargo de uma presidente apeada do poder, teríamos uma gigantesca crise institucional, um desastre. Pois da próxima vez, sob qualquer pretexto do parlamento da ocasião, ele mesmo seria o próximo a ser degolado. E o próximo e a próxima e o próximo. Em qualquer hipótese, portanto, haveria retrocesso. O melhor dos mundos ainda seria o pior dos mundos.
E simplesmente não é o caso. Não é esse o cenário. Quem vem lá, caso derrubem essa presidente confusa, será um senhor chamado Michel Temer, quem vem lá são os cavaleiros do apocalipse peemedebista, esse apocalipse da eterna conveniência, construído discursivamente para reduzir ainda mais nossos direitos – e quem sabe capturar novamente a Polícia Federal, cortar as políticas assistencialistas, expulsar os médicos cubanos e os refugiados haitianos. O pior dos mundos agregado ao pior dos mundos.
ESQUERDA DISTRAÍDA
A Batalha da Maria Antônia: outubro de 1968
Ou seja, esses setores da esquerda conseguem dar de ombros (eu não consigo entender com qual perspectiva histórica) para a tomada à força do poder pela direita mais tosca, por essa trupe chantagista que se instalou no PMDB em regime de comunhão de bens com as bancadas ruralista, do fundamentalismo bíblico e da bala. (Sim, Dilma é amiga de Kátia Abreu e faz o jogo do agronegócio, mas a história mostra que tudo pode sempre ser pior. Que tal Kátia Abreu, ela mesma?)
De qualquer modo, o desprezo mais visceral possível a essa presidente específica ou a esse governo não pode simplesmente migrar para o desprezo à democracia. Essa seria uma visão equivocada mesmo numa perspectiva conservadora – pensando numa perspectiva conservadora que não seja movida a psicopatias. E se a esquerda continuar soando mais casuística que conservadores não construirá credibilidade nenhuma. A não ser que se jacte de sua solidão.
Somente um ódio muito cego (como um apaixonado em seus piores momentos de agressividade possessiva) para dar mais importância aos defeitos de uma presidente específica do que à própria democracia. E diversos ensaios já foram escritos sobre cegueiras. Não estou falando de José Saramago nem de literatura. E sim dos livros de história – história do mundo, história do Brasil, sugiro até pesquisas não muito profundas sobre a história recente do país.
Muita gente lutou e morreu para olharmos de lado, como se não fosse conosco mais esta treva."
FONTE: escrito por ALCEU CASTILHO, jornalista. Publicado no pórtal "Brasil 247" (https://www.brasil247.com/pt/colunistas/alceucastilho/209807/Esquerda-indiferente-a-golpe-maximiza-Dilma-e-relativiza-democracia.htm).
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