"Obama e Hillary batem à porta para cobrar "democracia saudável"
por Luiz Carlos Azenha
George W. Bush foi claro em seus objetivos: "refazer" o mundo à imagem e semelhança dos Estados Unidos, se preciso à força. A ideia era começar pelo Iraque. Uma vez construída lá uma democracia "saudável" -- pelos padrões de Washington, é claro --, o Iraque serviria com uma espécie de farol a iluminar o Oriente Médio: o Irã, a Síria e a Arábia Saudita seguiriam "naturalmente" pelo mesmo caminho.
Não é preciso ir longe para constatar a hipocrisia dessa ideia tola: Washington não cobra democracia dos aliados sauditas com a mesma força que cobra democracia dos aiatolás iranianos, aos quais acusa de reprimir mulheres, homossexuais e a oposição civil. Trata-se, portanto, da apropriação de um discurso de defesa da democracia para fazer avançar os interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos.
O padrão é o mesmo quando se trata da questão nuclear: a primeira bomba atômica do Irã é vista como "fim do mundo" em uma região onde é sabido que Israel tem algumas dezenas, talvez centenas, de ogivas nucleares. De novo, um país que tem milhares de bombas atômicas se apropria do discurso da não proliferação para condenar o Irã, enquanto protege Israel de qualquer tipo de sanção internacional, ainda que Israel desrespeite flagrantemente resoluções aprovadas pelas Nações Unidas ocupando terras alheias. Não me consta que o Irã ocupe militarmente terras de um povo vizinho.
Na América Latina, Bush promoveu com relativo sucesso a ideia de "flexibilização" das fronteiras nacionais, ao apoiar o ataque da Colômbia aos acampamentos das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) em território do Equador. Embora o ataque tenha sido condenado pela maioria dos países da América Latina, Washington propagandeou para a opinião pública da região, através do governo da Colômbia, a ideia da relativização da soberania em "situações de emergência". Foi um exercício da doutrina de "ataques preventivos". Ontem foi contra o território do Equador. Amanhã poderá ser contra um governante que "destrua o meio ambiente", contra um movimento social que "ameace a estabilidade regional".
Curiosamente, o governo Obama deu quatro passos recentes para aprofundar a doutrina Bush de ataques preventivos, ainda que com outro nome e métodos, quando se esperava que desistisse dela.
O primeiro foi na aceleração do uso de aviões não tripulados, os drones, na chamada "guerra contra o terror" no Afeganistão e no Paquistão. Os drones ajudam a confundir ainda mais a ideia de fronteiras nacionais e de soberania, uma vez que eles podem ser teleguiados desde o Afeganistão para atacar no Paquistão e desde o Paquistão para atacar o Afeganistão. Nesse caso, a tecnologia poderá acabar guiando a política: os ataques "cirúrgicos" com aviões teleguiados, que sabemos não serem tão cirúrgicos assim, são a arma ideal para conduzir "ataques preventivos". Oferecem baixo risco de perdas humanas para quem ataca e permitem ao agressor dizer que agiu "em legítima defesa", desde seu território, contra um alvo ameaçador além-fronteira.
O segundo passo foi no rearranjo das bases militares dos Estados Unidos no mundo, da qual temos um exemplo aqui mesmo na América Latina: Washington ampliou seus pontos de "touch-and-go", os pontos de passagem necessários para organizar ofensivas militares ou "humanitárias". A Colômbia, nesse sentido, foi convertida em uma espécie de porta-aviões. As bases colombianas, combinadas com os navios da Quarta Frota, permitirão a projeção do poderio militar do Pentágono de Caracas à Terra do Fogo, da costa brasileira no Atlântico à costa peruana no Pacífico.
O terceiro passo foi na aplicação de sanções seletivas, como a que os Estados Unidos pretendem agora adotar contra os Guardas Revolucionários do Irã. Isso permite a Washington argumentar que não está promovendo boicotes econômicos contra um país ou um povo, mas contra "elementos perniciosos", os "tumores" que precisam ser extirpados em operações "cirúrgicas". Por trás desse discurso de higienização da política alheia se esconde um perigo: amanhã, pelos critérios de Washington, sanções específicas poderão ser aplicadas contra um partido político que faça campanha ameaçando os interesses dos Estados Unidos. É uma forma engenhosa de intervir na política doméstica de outros países, tão absurda quanto se a China decidisse gastar rios de dinheiro para derrotar o Partido Republicano nas eleiçoes americanas.
O que me leva ao quarto ponto, que é a doutrina da secretária de Estado Hillary Clinton, amplamente anunciada no site America.gov, de que os Estados Unidos passarão a "julgar" os governos alheios não apenas pelos critérios de eleições livres e limpas, mas da "boa governança". Notem, mais uma vez, que quem define o que é "boa governança" ou "má governança" é Washington. Os critérios são suficientemente amplos para enquadrar qualquer governo do mundo como violador da "boa governança". Falam, por exemplo, na defesa dos direitos das mulheres e das adolescentes, das ONGs e da participação da sociedade civil no governo. No papel, a defesa desses princípios pode parecer louvável. Mas a inclusão deles como critérios de "boa governança", cuja violação pode sujeitar governos a ações punitivas de Washington, abre caminho para uma política externa ainda mais intervencionista dos Estados Unidos.
Não estranho, porém, que isso esteja acontecendo. Desde o escândalo Irã-contras, no governo de Ronald Reagan -- quando a Casa Branca vendeu armas secretamente ao Irã e usou o dinheiro para armar os contras, que tentavam derrubar o governo sandinista da Nicarágua --, a "promoção da democracia" no Exterior deixou de ser tarefa central da CIA e dos serviços de inteligência e passou a ser feita abertamente através do National Endowment for Democracy (NED).
A fórmula engenhosa de Reagan garantiu financiamento público para a tarefa, uma vez que o NED é bipartidário: dinheiro público aprovado pelo Congresso é entregue ao National Democratic Institute (NDI), o braço internacional do Partido Democrata; ao International Republican Institute (IRI), braço internacional do Partido Republicano; ao Solidarity Center, mantido pela maior central sindical dos Estados Unidos, a AFL-CIO; e ao Center for International Private Enterprise, ligado à Câmara de Comércio dos Estados Unidos.
A partir disso, uma rede internacional de organizações surgiu. Essa rede é "revolucionária" contra a junta militar da Birmânia, por exemplo; ajuda a organizar a oposição ou a derrubar governos contrários aos interesses dos Estados Unidos nas ex-repúblicas soviéticas. Mas, curiosamente, ela é muito menos ativa para denunciar a ocupação de terras palestinas por Israel, abusos de direitos humanos do governo da Arábia Saudita ou a guerra civil no Congo "patrocinada" pelo interesse externo nos minerais do país. Trata-se, portanto, de promover seletivamente a democracia e, ainda assim, um certo tipo de democracia.
Esse intervencionismo branco vem crescentemente despertando reações.
"A reação contra a assistência democrática" é um tema que tem sido vivamente debatido em Washington, pelo próprio NED, por jornais americanos como o Washington Post, pelo Journal of Democracy (publicação financiada pelo NED), pelo Democracy Digest e pela revista Foreign Affairs. Trata-se de uma ampla ação internacional, financiada primariamente mas não exclusivamente pelo Congresso dos Estados Unidos, com a participação de fundações privadas, cujo objetivo é promover uma espécie de "intervenção filantrópica" dos Estados Unidos. Quem questiona o modelo é taxado de "autocrata", "populista" ou "radical".
O modelo dessa intervenção já é razoavelmente conhecido, a partir de experiências práticas realizadas na ex-Iugoslávia, na Geórgia, na Ucrânia, na Venezuela e provavelmente em andamento agora no Irã: a mobilização da sociedade civil, especialmente de jovens desconectados das elites e dos partidos políticos locais, com o uso de palavras de ordem simples, objetivos políticos bem definidos e mobilização através das tecnologias de informação (Twitter, mídias sociais, mensagens de texto, You Tube, etc.)
O curioso é que esse modelo deu origem a um grupo exclusivamente dedicado a denunciá-lo, o International Endownment for Democracy, que trata do caráter intervencionista do NED e afiliados.
Tudo o que escrevi acima, em minha opinião, deixa claro que o governo de Barack Obama, com Hillary Clinton de secretária de Estado, longe de abandonar o caminho intervencionista e de "ataques preventivos" do governo Bush está aprofundando essa política com novas estratégias, conceitos e práticas."
FONTE: escrito pelo jornalista Luiz Carlos Azenha e publicado em seu portal "Vi o mundo" [título colocado por este blog].
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