quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

TRAVAS DO SISTEMA POLÍTICO ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS


“Neste terceiro artigo sobre o tema ‘políticas públicas’, trato de um aspecto superestrutural: as travas e os impactos do sistema político brasileiro na elaboração e implementação de políticas públicas transformadoras.

 


Tratei, nos dois artigos anteriores publicados no Portal [“Carta Maior”], respectivamente nos dias 24/12/2012 (“Políticas públicas: armadilhas às reformas sociais profundas”) e 06/02/2013 (“Políticas públicas no capitalismo contemporâneo: alcances e limites”) das armadilhas que as políticas públicas contêm quando não se leva em conta os conflitos de interesse e os pontos de veto (primeiro artigo), e de seus alcances e limites tendo em vista o modelo de acumulação capitalista (segundo artigo).

Nessa sequência lógica, trato agora de um aspecto superestrutural: as travas e os impactos do sistema político brasileiro na elaboração e implementação de políticas públicas transformadoras.

Deve-se ressaltar que o sistema político brasileiro foi, estruturalmente, moldado pela ditadura militar, e jamais alterado significativamente desde a redemocratização. Vejamos algumas de suas características:

--multipartidarismo extremamente flexível e pouco representativo; ----financiamento misto (público e privado), mas que, na prática, é largamente privado por meio do conhecido “caixa 2”;
--infidelidade partidária (apenas recentemente minorada por decisão do Tribunal Superior Eleitoral);
--acesso institucional ao rádio e à televisão franqueados a todos os partidos com representação federal, independentemente de sua real representatividade (os partidos chamados “de aluguel” têm pequena representação parlamentar e todas as benesses do sistema político); --toda sorte de casuísmo, tal como a coligação nas eleições proporcionais, que implica o voto num partido ou candidato e a eleição de outro, entre outros;
--baixa transparência quanto ao uso dos recursos públicos (também recentemente minorada com a Lei de Acesso às Informações Públicas);
--lógica da coalizão para governar, ou melhor, para obter maioria no Parlamento, com impactos diretos na coerência das políticas públicas e nos resultados eleitorais, uma vez que, usualmente, partidos derrotados participam de coalizões de governo capitaneadas pelos partidos vencedores;
--desenho eleitoral que concede carta branca do eleito ao representante – tornando o mandato “propriedade” deste – e o distancia de seus representados (a aludida reinterpretação da fidelidade partidária, pelo TSE, amenizou essa prática, mas ainda assim não a eliminou);
--baixo poder conferido ao Parlamento;
--desbalanceamento na proporcionalidade federativa no Congresso Nacional no contexto do confuso bicameralismo; entre outras.

A emenda da reeleição aos chefes do Poder Executivo, verdadeiro “golpe branco” desferido à democracia pelo Governo FHC, com apoio entusiástico da grande mídia, contribuiu ainda mais para as mazelas do sistema político brasileiro, pois: mudou profundamente as regras do jogo político/institucional em meio a regras vigentes que proibiam a reeleição; não criou nem fortaleceu qualquer mecanismo institucional de fiscalização; e sequer obrigou os governantes recandidatos a se licenciarem enquanto concorriam ao cargo que estavam ocupando. Em outras palavras, inseriu nova lógica ao sistema político, com efeitos profundos nos partidos e nas eleições, sem qualquer mecanismo de controle e, mais grave, sem alterar as regras norteadoras do modus operandi da vida política. Tratou-se de verdadeiro casuísmo, sem qualquer responsabilidade quanto a seus efeitos.

Em relação à grande mídia – partícipe ativa [pró-direita] do jogo político e parte atuante no sistema político, como o comprovam sua ações golpistas na vida política do país, em sua longa história –, nenhum movimento significativo foi feito pelos governos desde a redemocratização no sentido de seu enquadramento nas regras do Estado de Direito Democrático (voltarei a esse tema no próximo artigo). As ações do Governo Lula no sentido de pulverizar a propaganda federal, de criar a ‘Empresa Brasileira de Comunicação’, de promover a primeira ‘Conferência Nacional de Comunicação’ e de tentar criar uma agência reguladora foram fundamentais e necessárias, mas claramente insuficientes e tímidas.

Tudo somado, as políticas públicas de cunho transformador são, estruturalmente, limitadas não apenas pelo modelo de acumulação, mas pela própria lógica do sistema político.

Afinal, só chegam ao poder (Executivo e Legislativo) os partidos políticos que obtêm financiamento privado (legal e ilegal), uma vez que o altíssimo valor das campanhas eleitorais exclui, de saída, grande parte dos partidos que não jogam “as regras do jogo” (o fundo partidário, nem de longe, cobre o valor das milionárias campanhas). Mais ainda, para ganhar eleições são necessárias coalizões que implicam, anteriormente a elas, a soma de minutos no horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão – daí os acordos com partidos das mais diversas linhagens ideológicas, com compromissos igualmente diversos. Da mesma forma, para governar há a necessidade imperiosa de se negociar maiorias confortáveis nos respectivos Parlamentos (Câmara de Vereadores, Assembleias Legislativas e Congresso Nacional) com vistas à aprovação de medidas, ações e políticas públicas capitaneadas pela chefia do Executivo.

Como a esmagadora maioria dos grandes e médios partidos – candidatos ao Executivo e ao Legislativo – é financiada por grandes interesses (bancos, construtoras, entre outros setores empresariais sensíveis à ação estatal), governar implica, fundamentalmente, costurar acordos diversos e normalmente contraditórios. Mais ainda, a vida pública torna-se fortemente “privatizada”, na medida em que interesse privados, notadamente empresariais, se fazem presentes antes, durante e depois das eleições, colocando nossa democracia sob suspeição plutocrática.

Em outras palavras, seja para se eleger (papel do financiamento privado e da coligação para obtenção de tempo no rádio e na televisão), seja para governar (“dívida” para com os financiadores e necessidade de maioria parlamentar para governar), os partidos políticos necessitam, imperiosamente, negociar compromissos assumidos e o “programa” de governo. Isso significa a existência, tanto de políticas públicas tímidas, por não mexerem vigorosamente nos interesses constituídos, como contraditórias, uma vez que voltadas a “vários senhores”.

Qualquer movimento governamental considerado “radical”, em qualquer setor, tem como reprimenda, de um lado, a perda de maioria parlamentar e, de outro, a oposição feroz da grande mídia: eterna porta voz das classes médias superiores e do Capital. Isso tudo acarreta a perda de condições de governo e de governabilidade, abrindo caminho para a derrota eleitoral na próxima eleição. O governo da ex-prefeita Luiza Erundina na prefeitura de São Paulo é, nesse sentido, sintomático. Mesmo o apoio a demandas de movimentos sociais tidos como “radicais” é fortemente bombardeado pela mídia e pela lógica conservadora do sistema político, que ameaça imediatamente com a “retirada de apoio”.

Mas, se esse cenário é verdadeiro, como explicar os inequívocos avanços sociais vigentes desde o primeiro Governo Lula aos dias de hoje? Antes de tudo, pela entrada do Partido dos Trabalhadores no jogo político/institucional dos “partidos de poder”, isto é, sua aceitação das “regras do jogo”: financiamento privado de campanhas, coligações eleitorais e coalizões governamentais amplas e contraditórias, negociação do programa de governo e enfática mensagem, simbolizada pela “Carta ao Povo Brasileiro”, de partido da “ordem constituída”.

Tal reversão político/ideológica não impossibilitou os referidos avanços, sociais e institucionais, mas ao preço da redenção partidária às regras do jogo, como o dissemos, com todas as consequências amplamente conhecidas, assim como o compromisso de que as políticas públicas não seriam “radicais”. Isso permitiu fazer reformas “por dentro” do sistema político, não assustando as elites.

Nesse sentido, as políticas públicas, em qualquer governo de quaisquer partidos, no Brasil, necessariamente são contraditórias, por mais avanços que possam produzir, como vêm produzindo. Tais avanços, contudo, ou são aquém do que potencialmente poderiam ser (por exemplo, o gasto com políticas sociais, medido pelo PIB, é ainda proporcionalmente menor do que em países similares ao Brasil), ou convivem com outras políticas públicas claramente conservadoras: por exemplo, apoio desmesurado ao agronegócio, não enfrentamento do oligopólio da grande mídia, não revisão dos efeitos da dívida interna, entre inúmeros outros exemplos.

Do ponto de vista institucional, a não reforma das regras do jogo político denota, igualmente, a dificuldade que os partidos progressistas têm de intentar políticas públicas substantivas e simultaneamente alterar o modus operandi do sistema político. Este representa, portanto, uma trava àquelas.

As reformas progressistas ocorrem, portanto, pelas “bordas”, sem assustar as elites, caso da ampliação do crédito, do poder de compra real do salário mínimo e da cesta básica, dos programas de transferência de renda, da ativação da economia interna, entre outros, mas desde que não incidam nas grandes fortunas, nos lucros e no ambiente de negócios. Não deixa de ser impressionante o fato de que, apesar dos inúmeros avanços sociais verificados, o Brasil ainda ostenta índices alarmantes de desigualdade.

O sistema político brasileiro constrange a todos os partidos políticos, mas especialmente aos que historicamente lutaram pela mudança “radical” na desigualdade social. As políticas públicas são, dessa forma, moldadas também de acordo com essa estrutura quase que inabalada do sistema político, que fora montado pelo regime militar durante o Governo do General Figueiredo.

Para que as políticas públicas sejam mais inclusivas, expressivas e “radicais” – sempre no sentido de irem à raiz dos problemas –, será necessário enfrentar os interesses constituídos que sustentam o sistema político brasileiro e travam as políticas públicas profundas. Para tanto, a reforma política, por meio da mobilização social, é fundamental para que as políticas públicas possam ter mais coerência e, sobretudo, serem mais expansivas e profundas. Trata-se de tarefa urgente!”

FONTE: escrito por Francisco Fonseca. O autor é cientista político e historiador, professor de ciência política no curso de Administração Pública e Governo na FGV/SP. É autor de “O Consenso Forjado – a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil” (São Paulo, Editora Hucitec, 2005) e organizador, em coautoria, do livro “Controle Social da Administração Pública – cenário, avanços e dilemas no Brasil” (São Paulo, Editora Unesp, 2010), entre outros livros e artigos. Publicado no site “Carta Maior” (http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5985). [Imagem do Google adicionad por este blog ‘democracia&política’].

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