Estados Unidos, condenados à repetição
Obama continua uma tradição de bombardear problemas que há décadas os faz crescerem
Por Antonio Luiz M. C. Costa
Treze anos de luta contra Bin Laden trouxeram um fundamentalismo ainda mais brutal
"Se forem somados os países que participaram das duas “Conferências Internacionais sobre Paz e Segurança no Iraque”, nos dias 11 (em Jeddah, Arábia Saudita) e 14 (em Paris), chega-se a 30, mas é prematuro considerá-los parte de uma nova “coalizão dos dispostos” à maneira de George W. Bush e Tony Blair. Os únicos governos dispostos a lutar com tropas terrestres contra o Estado Islâmico, os do Irã e da Síria, foram explicitamente desconvidados. Se os próprios Estados Unidos e Reino Unido pretendem se limitar a ataques aéreos, o papel dos demais é ainda mais nebuloso.
A única consequência até agora foi os EUA dispensarem o pretexto de proteger seu pessoal e instalações, invocado ao atacar as forças jihadistas perto de Erbil, no Curdistão, para bombardear os fundamentalistas perto de Bagdá. A coalizão de 2003 reuniu-se com alarde e entusiasmo para cometer um ato de banditismo internacional contra um governo falsamente acusado de terrorismo contra o Ocidente e de possuir “armas de destruição em massa”.
A atual é muito mais tímida contra uma ameaça real e explícita, marcada pelo massacre e execução cruel de milhares de sírios e iraquianos e agora também pela decapitação de reféns ocidentais. Para isso, no caso da vítima mais recente, o trabalhador humanitário britânico David Haines, contrariou a própria Al-Qaeda, que tentou persuadi-lo a suspender a execução.
A relutância de Washington explica-se pela resistência a admitir que, republicana ou democrata, sua política no Oriente Médio, da Líbia ao Afeganistão e também no Egito, Síria e Palestina, é um fracasso. Um acordo com Teerã e Damasco seria a resposta mais eficaz, mas a meia-volta equivaleria a confessar ter criado a atual situação com décadas de erros políticos e estratégicos que plantaram o caos na região e impuseram um enorme sofrimento em nome de ideais abstratos que, aos olhos dos povos muçulmanos, nunca foram mais que folhas de parreira para defender os interesses militares e petrolíferos do Ocidente e de Israel à sua custa.
A irrupção do Estado Islâmico foi um efeito colateral que os estrategistas ocidentais não previram e por isso subestimaram o quanto puderam, como quem se esforça por ignorar os sintomas cada vez mais alarmantes de uma doença grave, cujo tratamento exigiria uma mudança drástica de planos e hábitos. Só quando ameaçou as reservas curdas de petróleo começou a ser levado a sério. Ainda é possível ler analistas e políticos protestarem que o califado “não ameaça o Ocidente” e foi “superdimensionado” para insistirem em mais recursos a seus planos e apadrinhados para destituir Bashar al-Assad, pedir bombardeios ao Irã ou reforços ao sistema de vigilância da NSA, tão eficiente na espionagem de cidadãos e aliados quanto inútil contra o terrorismo real.
Daí a insistência em treinar e armar “rebeldes sírios moderados” que se sabe terem vendido ao califado armas, munições e pelo menos um dos reféns decapitados, aprisionado tropas da ONU perto do Golã e se transferido em bandos para a folha de pagamento de Al-Baghdadi à medida que este conquista mais vitórias e recursos e levam consigo armas, equipamentos e treinamento pagos pelo Ocidente.
Os EUA aproveitaram a "Primavera Árabe" para tentar um golpe estratégico e derrubar um aliado de Teerã e Moscou. Não importa se o impulso democrático nesse movimento tenha sido sufocado há muito, Washington vê como questão de credibilidade continuar a pintar Bashar al-Assad como a encarnação do Mal, embora na prática tenha recuado de uma intervenção direta ante as advertências de Vladimir Putin. Voltou a ouvi-las ao dar a entender que atacaria o Estado Islâmico na Síria sem consultar Damasco: isso será considerado “um ato de agressão”. É compreensível, depois de uma mera autorização da ONU para impor uma “zona de exclusão aérea” na Líbia ter sido usada por Barack Obama como carta-branca para intervir no país.
A própria obsessão com isolar e enfraquecer os aiatolás depois de décadas de normalização do regime e fim de seu impulso revolucionário é sintoma da dificuldade de ajustar o curso e o discurso a novas realidades, tanto quanto os mais de 50 anos do embargo a Cuba. Em nome da “credibilidade” e da satisfação de lobbies internamente importantes, Washington tem um longo histórico de persistir em políticas externas não só fracassadas, como cada vez mais disfuncionais.
Enquanto isso, a organização de Al-Baghdadi, que em 2013 era estimada em 5 mil combatentes, cresce para 31,5 mil segundo a CIA. Muitos são sírios e iraquianos sunitas, mas 15 mil vieram de outros países e esse número continua a crescer. Apesar do extremo conservadorismo islâmico, a organização atrai milhares de mulheres, algumas das quais recrutadas no próprio coração dos EUA, em Minneapolis-St. Paul, aponta investigação recente, e pessoal suficientemente culto e capacitado para permitir ao califado usar tecnologias avançadas, administrar um Estado do século XXI e promover nas redes sociais uma campanha de propaganda e recrutamento mais eficaz que aquela de qualquer outra organização islâmica. A peça mais recente, um vídeo com o título "Flames of War", com ameaças aos EUA e à Casa Branca, poderia ser um trailer hollywoodiano.
O antigo ISIS não apenas controla militarmente, mas governa de fato um território considerável, onde exerce poderes de polícia e mantém em funcionamento agricultura, mercados, padarias, infraestrutura e assistência social. Mesmo se os EUA conseguirem cortar o fluxo de doações de simpatizantes nas monarquias árabes e de resgates pagos por aliados europeus, a organização não depende mais desses recursos. Exporta de 1 milhão a 2 milhões de dólares diários em petróleo e arrecada impostos nos seus domínios.
Recebeu adesões e juramentos de lealdade de grupos fundamentalistas da Argélia, Afeganistão e Filipinas e do nigeriano Boko Haram, que se apoderou de uma parte do noroeste de seu país e o transformou em extensão do califado. Com o anúncio da coalizão pelos EUA, recebeu o apoio moral da rival Al-Qaeda (que controla territórios na Somália, Iêmen, Síria e Mali), e afirmou ante seus admiradores a imagem de principal adversário de um Império odiado e inimigo do Islã, o que atrai mais militantes, une seu pessoal e previne dissenções.
O preço da teimosia pode ser contrariar mais frontalmente a promessa com a qual Obama foi eleito, a da retirada definitiva do Iraque. Em depoimento ao Congresso na terça-feira 16, o general Martin Dempsey, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, explicou que, se a atual estratégia falhar e o Estado Islâmico se revelar uma ameaça aos EUA, recomendará o uso de forças terrestres ao presidente.
Sem uma mudança de postura, isso apontaria não o caminho da vitória, mas o de outro Vietnã, ou muitos, se os focos jihadistas continuarem a se multiplicar.
A relutância de Washington explica-se pela resistência a admitir que, republicana ou democrata, sua política no Oriente Médio, da Líbia ao Afeganistão e também no Egito, Síria e Palestina, é um fracasso. Um acordo com Teerã e Damasco seria a resposta mais eficaz, mas a meia-volta equivaleria a confessar ter criado a atual situação com décadas de erros políticos e estratégicos que plantaram o caos na região e impuseram um enorme sofrimento em nome de ideais abstratos que, aos olhos dos povos muçulmanos, nunca foram mais que folhas de parreira para defender os interesses militares e petrolíferos do Ocidente e de Israel à sua custa.
A irrupção do Estado Islâmico foi um efeito colateral que os estrategistas ocidentais não previram e por isso subestimaram o quanto puderam, como quem se esforça por ignorar os sintomas cada vez mais alarmantes de uma doença grave, cujo tratamento exigiria uma mudança drástica de planos e hábitos. Só quando ameaçou as reservas curdas de petróleo começou a ser levado a sério. Ainda é possível ler analistas e políticos protestarem que o califado “não ameaça o Ocidente” e foi “superdimensionado” para insistirem em mais recursos a seus planos e apadrinhados para destituir Bashar al-Assad, pedir bombardeios ao Irã ou reforços ao sistema de vigilância da NSA, tão eficiente na espionagem de cidadãos e aliados quanto inútil contra o terrorismo real.
Daí a insistência em treinar e armar “rebeldes sírios moderados” que se sabe terem vendido ao califado armas, munições e pelo menos um dos reféns decapitados, aprisionado tropas da ONU perto do Golã e se transferido em bandos para a folha de pagamento de Al-Baghdadi à medida que este conquista mais vitórias e recursos e levam consigo armas, equipamentos e treinamento pagos pelo Ocidente.
Os EUA aproveitaram a "Primavera Árabe" para tentar um golpe estratégico e derrubar um aliado de Teerã e Moscou. Não importa se o impulso democrático nesse movimento tenha sido sufocado há muito, Washington vê como questão de credibilidade continuar a pintar Bashar al-Assad como a encarnação do Mal, embora na prática tenha recuado de uma intervenção direta ante as advertências de Vladimir Putin. Voltou a ouvi-las ao dar a entender que atacaria o Estado Islâmico na Síria sem consultar Damasco: isso será considerado “um ato de agressão”. É compreensível, depois de uma mera autorização da ONU para impor uma “zona de exclusão aérea” na Líbia ter sido usada por Barack Obama como carta-branca para intervir no país.
A própria obsessão com isolar e enfraquecer os aiatolás depois de décadas de normalização do regime e fim de seu impulso revolucionário é sintoma da dificuldade de ajustar o curso e o discurso a novas realidades, tanto quanto os mais de 50 anos do embargo a Cuba. Em nome da “credibilidade” e da satisfação de lobbies internamente importantes, Washington tem um longo histórico de persistir em políticas externas não só fracassadas, como cada vez mais disfuncionais.
Enquanto isso, a organização de Al-Baghdadi, que em 2013 era estimada em 5 mil combatentes, cresce para 31,5 mil segundo a CIA. Muitos são sírios e iraquianos sunitas, mas 15 mil vieram de outros países e esse número continua a crescer. Apesar do extremo conservadorismo islâmico, a organização atrai milhares de mulheres, algumas das quais recrutadas no próprio coração dos EUA, em Minneapolis-St. Paul, aponta investigação recente, e pessoal suficientemente culto e capacitado para permitir ao califado usar tecnologias avançadas, administrar um Estado do século XXI e promover nas redes sociais uma campanha de propaganda e recrutamento mais eficaz que aquela de qualquer outra organização islâmica. A peça mais recente, um vídeo com o título "Flames of War", com ameaças aos EUA e à Casa Branca, poderia ser um trailer hollywoodiano.
O antigo ISIS não apenas controla militarmente, mas governa de fato um território considerável, onde exerce poderes de polícia e mantém em funcionamento agricultura, mercados, padarias, infraestrutura e assistência social. Mesmo se os EUA conseguirem cortar o fluxo de doações de simpatizantes nas monarquias árabes e de resgates pagos por aliados europeus, a organização não depende mais desses recursos. Exporta de 1 milhão a 2 milhões de dólares diários em petróleo e arrecada impostos nos seus domínios.
Recebeu adesões e juramentos de lealdade de grupos fundamentalistas da Argélia, Afeganistão e Filipinas e do nigeriano Boko Haram, que se apoderou de uma parte do noroeste de seu país e o transformou em extensão do califado. Com o anúncio da coalizão pelos EUA, recebeu o apoio moral da rival Al-Qaeda (que controla territórios na Somália, Iêmen, Síria e Mali), e afirmou ante seus admiradores a imagem de principal adversário de um Império odiado e inimigo do Islã, o que atrai mais militantes, une seu pessoal e previne dissenções.
O preço da teimosia pode ser contrariar mais frontalmente a promessa com a qual Obama foi eleito, a da retirada definitiva do Iraque. Em depoimento ao Congresso na terça-feira 16, o general Martin Dempsey, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, explicou que, se a atual estratégia falhar e o Estado Islâmico se revelar uma ameaça aos EUA, recomendará o uso de forças terrestres ao presidente.
Sem uma mudança de postura, isso apontaria não o caminho da vitória, mas o de outro Vietnã, ou muitos, se os focos jihadistas continuarem a se multiplicar.
Tanto quanto seus antecessores, o governo Obama age como se acreditasse que os povos muçulmanos abraçariam o liberalismo, se submeteriam aos EUA e às transnacionais e se tornariam felizes consumidores de produtos ocidentais se não fossem impedidos por um punhado de líderes malvados e anacrônicos.
A eliminação de Saddam, Kaddafi, Bin Laden e 13 anos de “guerra ao terror” que só aumentaram o ódio a Washington e tornaram o fundamentalismo cada vez mais popular e poderoso não bastaram para dissipar a ilusão. A cada inimigo caído, os EUA voltam a proclamar “missão cumprida” e a vitória definitiva, apenas para vê-lo ser sucedido por um grupo ainda mais impiedoso e intransigente. De nada adianta eliminar mensageiros. Se as massas tiverem motivos para dar ouvidos à mensagem, ela encontrará portadores".
FONTE: escrito por Antonio Luiz M. C. Costa. Reportagem publicada originalmente na edição 818 da revista "CartaCapital", com o título "Condenados à repetição" (http://www.cartacapital.com.br/revista/818/condenados-a-repeticao-6413.html).
FONTE: escrito por Antonio Luiz M. C. Costa. Reportagem publicada originalmente na edição 818 da revista "CartaCapital", com o título "Condenados à repetição" (http://www.cartacapital.com.br/revista/818/condenados-a-repeticao-6413.html).
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