segunda-feira, 30 de novembro de 2015

A IMAGEM DA VENEZUELA NA TV BAND




A imagem da Venezuela na Band

Por Roberto Bitencourt da Silva, doutor em História (UFF), professor da FAETERJ-Rio/FAETEC e da SME-Rio; no Jornal GGN:

"O 'Jornal da Band', desde terça-feira, tem veiculado uma série de reportagens sobre a Venezuela. Trata-se de produção da própria equipe de jornalismo da empresa da família Saad. Intitulada “Venezuela no fundo do poço”, a série resvala no grotesco, distante de qualquer prática que se possa chamar adequadamente de jornalismo.

O unilateralismo domina a cena. São entrevistados, única e exclusivamente, atores que manifestam clara oposição ao governo de Nicolás Maduro. Os enquadramentos noticiosos apoiam-se decididamente em imagens associadas ao caos, a descontentamentos e ao medo.

A respeito, a memória pode evocar com facilidade o perfil de abordagem que a mídia carioca, sobretudo as "Organizações Globo", privilegiava no noticiário sobre os governos de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro (1983-1986 e 1991-1994). Semelhanças claras e de triste lembrança, em virtude do uso de contornos interpretativos criminalizantes, que visa(va)m causar repulsa no telespectador.

A série salienta uma crise de abastecimento e distribuição, sem qualquer menção ao boicote deliberadamente promovido por setores empresariais, que têm estocado gêneros de primeira necessidade no coirmão sul-americano. De forma descontextualizada, a reportagem enfatiza a promoção da “fome” no país.

Ironiza o antiamericanismo do governo venezuelano, concebido como uma maquiavélica atribuição de responsabilidade externa às mazelas do país. O fato de o governo dos Estados Unidos terem abertamente apoiado a tentativa de golpe sobre o ex-presidente Hugo Chávez, no remoto e dramático abril de 2002, é flagrantemente desconsiderado.

A Venezuela ser tratada como uma “ameaça à segurança” norte-americana, segundo declaração do presidente Barack Obama, também não estimula a "Band" a ponderar sobre eventuais razões do antiamericanismo bolivariano.

O país possui um governo ditatorial. Essa é a versão assinada pela série. Curioso, pois importantes inovações constitucionais introduzidas após a ascensão do chavismo à Presidência foram escanteadas.

Refiro-me à dilatação de mecanismos de participação democrática, ampliando a capacidade de ingerência das classes populares nos processos decisórios do Estado, por meio de conselhos comunitários, assim como a adoção do “recall”, ou seja, a possibilidade democrática e constitucional de supressão dos mandatos eletivos, em meio aos seus exercícios.

A série, não gratuitamente, começou a ser exibida após ter sido noticiado, pelo mesmo "Jornal da Band", que o recém-eleito presidente argentino, Mauricio Macri, pretende requisitar aos países integrantes do Mercosul a expulsão da Venezuela do bloco. Uma discreta pressão noticiosa sobre a opinião pública e o governo brasileiros, que antecipou a natureza da série de reportagens.

Essas seguem longe de adotar parâmetros requisitados ao jornalismo, sobretudo quando realizado por um canal televisivo, que opera como concessão pública. A abertura de espaço a vozes e olhares diferentes não tiveram vez. Desprezaram o exercício básico da contextualização informativa, que pudesse permitir ao público-receptor dispor de recursos de compreensão e reflexão sobre os problemas noticiados.

A série "Venezuela no fundo do poço" em nada fica a dever às antigas peças de propaganda do "Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais" (IPES). Um círculo de estudiosos, jornalistas e publicistas conservadores, que se dedicou à preparação de uma “guerra psicológica” contra as esquerdas, de modo geral, e o governo de João Goulart, em especial.

A satanização do “inimigo”, que ameaçava a “democracia” (sob controle do mercado) e as “liberdades individuais” (do proprietário): eixos desqualificatórios utilizados, ontem, pelo IPES sobre o Brasil, como hoje, na reportagem da "Band" a respeito do país vizinho.

O IPES foi patrocinado pelo capital nacional e internacional, tendo favorecido à instalação da ditadura em 1964, conforme o clássico estudo do historiador René Dreifuss. Em relação às fontes de financiamento, a "Band" não fica atrás, como de resto os demais conglomerados brasileiros de comunicação. Quem paga tem o poder de incidir no retrato do mundo.

A convergência entre a série de reportagens da "Band" com a velha propaganda do IPES revela-se, também, no perfil do “mal” a ser exorcizado. Não encontrando corrente de esquerda similar no Brasil dos nossos dias, parece que o alvo se direciona a um “exemplo daninho” no continente. Uma experiência política, a bolivariana, a ser demonizada e expurgada de qualquer eventual inspiração em nosso país.

Uma esquerda que guarda não poucos traços de semelhança com as ideias e os valores defendidos pelas correntes trabalhista e comunista, do período em que atuou o IPES. Particularmente sintonizados, o intervencionismo estatal, a primazia dada à participação popular nos processos decisórios e o anti-imperialismo.

A Venezuela de hoje é um espelho que reflete experiências e cosmovisões políticas que já alcançaram significativa expressão no Brasil. Nesse sentido, não bastou o golpe civil-militar de 1964. Não bastou o entreguismo de PSDB/FHC, que deslocou os centros de poder decisório nacional para o exterior. Não basta o lastimável desaparecimento daquele perfil de esquerda no país. Busca-se, assim, um exemplar fora do Brasil, para o cotidiano “exorcismo” das ”assombrações" nacionalista, socialista e anti-imperialista.

FONTE: escrito por Roberto Bitencourt da Silva, doutor em História (UFF), professor da FAETERJ-Rio/FAETEC e da SME-Rio. Postado no "Blog do Miro"    (http://altamiroborges.blogspot.com.br/2015/11/a-imagem-da-venezuela-na-band.html#more)

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