quarta-feira, 25 de novembro de 2015

ESTADO ISLÂMICO: A CONEXÃO WASHINGTON


Sob influência de Dick Cheney, Washington propôs criação de um “principado salafista” no Oriente Médio. Foi o início do apoio da Arábia Saudita e de outras monarquias do Golfo aos jihadistas


Estado Islâmico: a Conexão Washington

"Para crescerem no Oriente Médio e ameaçarem capitais do Ocidente, jihadistas contaram com um apoio essencial: o dos Estados Unidos e seus aliados no mundo árabe.

Por Talmiz Ahmad, e
x-embaixador da Índia na Arábia Saudita, Omã e Emirados Árabes Unidos

Na noite de sexta-feira, 13 de novembro, três bandos, com oito pessoas no total, atacaram sete alvos em Paris. Mataram cerca de 130 pessoas e feriram centenas mais. A maioria dos mortos assistia a um concerto musical, uma noite de convívio alegre interrompida por um fim abrupto e terrível. O "Estado Islâmico do Iraque e Grande Síria" ("Estado Islâmico") assumiu rapidamente a responsabilidade. O presidente François Hollande descreveu o ataque como um “ato de guerra” e declarou estado de emergência, pela primeira vez desde a 2ª Guerra Mundial. A sombra do conflito fratricida que já dura cinco anos na Síria atingiu agora o coração da cultura ocidental.

Desde que o Estado Islâmico atraiu a atenção mundial, após a dramática tomada de Mosul em junho do ano passado, seguida pela ocupação de outros territórios ao longo da fronteira entre Iraque e Síria e pela declaração do “Califado” naquelas terras da histórica Mesopotâmia, os conflitos na região tiveram desdobramentos novos, e cada vez mais brutais, praticamente todos os dias. Centenas de soldados sírios, yazidi, curdos e outros civis iraquianos – além de alguns reféns ocidentais – foram sumariamente executados por decapitações, com frequência filmadas e divulgadas amplamente nas mídias sociais em todo o mundo.

Embora atacado pelas forças dos Estados Unidos e pelas monarquias do Golfo Pérsico aliadas a Washington, o Estado Islâmico não sofreu nenhum grande revés militar. Ao contrário: consolidou-se gradualmente, a ponto de converter-se em um proto-Estado, com muitos dos atributos da ordem estatal – exército permanente, recursos financeiros substanciais, um conselho de ministros, governadores provinciais, um sistema judicial em funcionamento, uma força de segurança inflexível e prestação de serviços municipais e de bem-estar. Aparentemente, não tem dificuldades para atrair recrutas que correm para se juntar a suas fileiras e levar a cabo atentados e missões suicidas. O respeitado especialista em assuntos árabes Abdel Bari Atwan estimou recentemente que o Estado Islâmico tinha um quadro de cerca de 100 mil combatentes. Estão principalmente do mundo árabe, mas também de outros países da Ásia e até mesmo – alguns milhares – na Europa.

Nos últimos meses, o Estado Islâmico fez sentir sua presença fora da Mesopotâmia – na Líbia, a oeste, e no Afeganistão, a leste. Também expandiu sua base de apoio, com um número crescente de corpos jihadistas (ou seus grupos dissidentes) que declaram filiação ao Califado, preferindo-o à Al-Qaeda.

Nos últimos meses, à medida em que o Estado Islâmico levava adiante suas ações devastadoras, a guerra na Síria entrou num impasse. As forças salafistas apoiadas pelas monarquias do Golfo são incapazes de derrotar as forças nacionais ainda leais ao presidente Bashar al-Assad. A situação mudou dramaticamente quando, a partir de 30 de setembro, a Rússia envolveu-se no conflito, ao lado do governo Assad, instalando na Síria aviões, tanques e instalações de vigilância. Moscou realizou bombardeios letais contra todas as forças hostis a Assad, não se importando em distinguir entre o Estado Islâmico e as outros grupos terroristas, embora o primeiro tenha sofrido pelo menos um quinto dos ataques. Em 10 de novembro, as forças sírias apoiadas pela Rússia tomaram do Estado Islâmico a parte oriental da cidade de Aleppo e a base aérea de Kweiras, ameaçando as conexões logísticas do grupo com Raqqa e seus territórios no Iraque. A consolidação das forças curdas da Síria, junto à fronteira turca, já bloqueou o fluxo de armas e recrutas que abasteciam o Califado Islâmico a partir da Turquia.

O Estado Islâmico tem respondido a esses ataques com duras represálias a seus inimigos. Em 10 de outubro, realizou um duplo atentado em Ancara, na Turquia, no qual 128 pessoas, principalmente manifestantes pró-curdos, foram mortas. Em 31 de outubro, reivindicou responsabilidade pela queda do avião de passageiros russo que voava de Sharm el Sheikh para São Petersburgo, no qual mais de 200 pessoas perderam a vida. Em 6 e 12 de novembro, realizou dois bombardeios no Líbano matando mais de 40 pessoas e regozijando-se de ter atacado com sucesso xiitas “apóstatas”. O comentarista libanês Khalil Harb pressagiou, já então: “Muito mais derramamento de sangue está a caminho”.

No dia em que ocorreram os ataques em Paris, os EUA anunciaram que seus drones haviam matado Mohammed Emwazi, também conhecido com “John Jihadi”, membro do Estado Islâmico nascido no Reino Unido que comandou vários assassinatos filmados e assistidos no mundo todo. Comentando essas notícias, o primeiro-ministro britânico David Cameron disse que havia sido um ataque “ao coração da organização terrorista”. Por sua parte, os norte-americanos também anunciaram que haviam matado o líder do Estado Islâmico na Líbia, Abu Nabil, de nacionalidade iraquiana.

Os ataques a Paris são, portanto, parte dos ataques olho-por-olho que vêm ocorrendo nos últimos meses e são diretamente ligados ao conflito na Síria. A reação a esses ataques, pelos protagonistas em conflito na Síria, reflete sua divisão profunda e sectária. Ambos – Hezbolá e 49 grupos de milicianos anti-Assad – condenaram fortemente os ataques. Mas enquanto o Hezbolá vê o Estado Islâmico como um produto do apoio a terroristas dado pelas monarquias do Golfo e pela Turquia, as milícias declararam que Assad encontra-se no coração da atividade terrorista na Síria.

Os ataques a Paris marcam a primeira ocasião que o Estado Islâmico saiu da Asia Ocidental para organizar atentados no “inimigo distante” no Ocidente, indicando assim que assumiu a agenda de jihad global da Al-Qaeda. Novamente, embora ainda não se saiba se os ataques a Paris foram realizados por membros locais do Estado Islâmico, criados no país, ou se houve alguma participação de especialistas da liderança central, é claro que o Estado Islâmico tem resiliência considerável e construiu, num curto período, redes que o habilitam a penetrar o cordão de segurança nas nações “desenvolvidas”.

Cumplicidade ampliada

As monarquias do Golfo Pérsico lideradas pela Arábia Saudita, a Turquia e os EUA emergem desse imbroglio com pouco crédito. Os sauditas continuam focados na mudança de regime na Síria. Isso permitira transformar a guerra civil que se trava lá num grande confronto sectário, no qual Riad apoiara grupos jihadistas, incluindo o "Jabhat al-Nusra" (um grupo ligado à Al-Qaeda) em sua guerra por procuração contra o Irã. O presidente turco Recep Tayyip Erdogan, nas etapas iniciais do conflito sírio, estava igualmente obcecado com derrubar Assad, visto como um defensor dos curdos sírios contra a Turquia. Erdogan permitiu o livre fluxo de jihadistas através da fronteira turca com a Síria, o que reforçou as fileiras do Estado Islâmico.

A atitude dos EUA tem sido a mais débil e sem princípios: enquanto inicialmente rejeitava o envolvimento militar direto na Síria, Washington deu apoio aos sauditas, em troca do apoio das monarquias do Golfo ao acordo nuclear com EUA-Irã. Por isso, os jihadistas dominaram a oposição ao governo sírio. Muitos dos grupos anti-Assad negociavam suas armas com o Estado Islâmico ou simplesmente juntavam-se a suas fileiras. Mais tarde, os EUA viram a entrada da Rússia na Síria como uma ameaça à sua hegemonia global, e trabalharam com as monarquias do Golfo para enfraquecer o esforço militar russo, fornecendo aos terroristas mísseis TOW mais eficazes contra tanques russos.

Contudo, recentes relatórios dos EUA sugerem uma culpa ainda mais grave por parte dos norte-americanos. O tenente-general Michael Flynn relatou, em agosto deste ano, que, após o fracasso militar dos EUA no Iraque, em 2006, o grupo de falcões norte-americanos conhecido como “neoconservadores” (neocons) persuadiu o vice-presidente Dick Cheney a apoiar iniciativas para derrubar o regime de Assad criando “uma cunha entre a Síria e o Hezbolá”. Isso seria feito apoiando a criação de um “principado salafista” no leste da Síria. Segundo os relatórios, foi o início do apoio da Arábia Saudita e de outras monarquias do Golfo aos jihadistas sunitas no Iraque – que depois metamorfosearam-se em Estado Islâmico. O "Conflicts Forum", que publicou o relatório, conclui: “A jihadização do conflito sírio foi uma decisão política ‘intencional’ [do governo dos EUA]”.

Em comentários públicos feitos em outubro de 2014, o vice-pesidente Joe Biden colocou o dedo na ferida. Ele reconheceu: “(…) na Síria, nosso maior problema foram nossos aliados na região. Estavam tão determinados a derrubar Assad e promover uma guerra entre sunitas e xiitas (…) [que] ofereceram centenas de milhões de dólares e dezenas, milhares de toneladas de armamentos a qualquer um que lutasse contra Assad. Não importava se esses grupos eram parte da Al-Nusra e Al-Qaeda, ou jihadistas vindos de outras partes do mundo”.

O caminho que o Estado Islâmico fez, da Síria a Paris, tem origem em Washington."

FONTE: escrito por 
Talmiz Ahmad, ex-embaixador da Índia na Arábia Saudita, Omã e Emirados Árabes Unidos. Piblicado no site "Outras Palavras". com tradução de Inês Castilho. Transcrito no portal "Vermelho"  (http://www.vermelho.org.br/noticia/273229-9).

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