Juan Domingo Perón na Casa Rosada, o palácio do governo da Argentina
Panorama para entender o peronismo na Argentina
A crise de dezembro de 2001 durou praticamente até o começo de 2003, quando acontece a fuga de Fernando de La Rúa que, empenhado em salvar o poder executivo e a continuidade democrática, utiliza diferentes ferramentas constitucionais. Sete presidentes, todos peronistas de distintos setores, trocam o cargo em dias. Nenhum conseguia tirar o pé do lamaçal que o radicalismo havia provocado. Até que o poderoso governador da província de Buenos Aires e ex-vice-presidente de Menem, Eduardo Duhalde, assume o poder executivo para chamar as eleições no prazo de um ano. Tempo que utilizou todo o aparado político do peronismo em províncias e municípios e, com peronismo puro, consegue controlar em partes a economia e entregar, em maio de 2003, um Estado mais ou menos ordenado a outro peronista, Néstor Kirchner, que parecia muito debilitado, por assumir o poder com apenas 25% dos votos. O kirchnerismo, que entraria em cena tão discretamente, se converteria no fenômeno político mais extraordinário desde o surgimento do próprio Perón, em 1945.
Com um mandato de Néstor e dois de sua esposa, Cristina Fernández Kirchner, completaria um processo de 12 anos de conquistas que não serão extintas, e se Daniel Scioli triunfasse neste domingo (22), no segundo turno, poderia continuar por mais quatro anos.
Daniel Scioli e Maurício Macri, a disputa pela presidência chegou ao fim no domingo (22) [com a vitória de Macri, o candidato 'do mercado']
Seu oponente, Maurício Macri, um representante dos mercados e das multinacionais, que volta com uma nova roupagem com as propostas politicas liberais dos anos 90, com o trio Menem-Cavallo-De la Rúa como guia espiritual, baseando sua campanha em muita imagem, discursos, tipografias, cores e propostas de um pastor eletrônico. Conta ainda com um monstruoso escudo midiático e judicial que ofusca suas feridas abertas e seus faraônicos atos de corrupção própria, e de seus funcionários e amigos.
Apesar do tal escudo, se o peronismo marchasse unido, as possibilidades do candidato dos mercados seriam paupérrimas, e inclusive teria sido impossível haver chegado ao segundo turno, [quando foi derrotado].
O peronismo, outra vez desunido, fez naufragar o projeto tão trabalhado e desejado pelo general Perón e sua esposa Eva Perón. Projeto esse que se centrava na justiça social, na independência econômica e na soberania política.
Nas eleições de 2001, quando Cristina foi eleita pela segunda vez com 54% dos votos, não houve maiores fraturas e o peronismo, como movimento e partido, se resguardou atrás da candidata. Nestes últimos anos, a traição de Sergio Masa, que havia ocupado importantes cargos tanto na administração de Néstor, como de Cristina, golpeou o governo e levou quase 20% dos votos [que faltaram a Scioli] e que teriam feito o peronismo triunfar uma vez mais no primeiro turno, em outubro.
O peronismo tem uma condição natural para segmentar-se e para voltar a se unir, esta não é a primeira vez que acontece e certamente não será a última. Seus dirigentes, todavia, não conseguiram superar a perda de seu fundador em 1973.
Desde então, ao se tornar nominalmente um partido, mas não ter uma estrutura resistente e ordenada para canalizar as disputas internas, as fugas são tão constantes como os retornos. Qualquer dirigente médio se considera apto para saltar para cima sem respeitar ordens e hierarquias.
A sorte da presidenta, hoje uma figura incontornável na política interna do peronismo, pode perder a totalidade de seu poder apenas ao entregá-lo nas mãos [de Macri], próximo a ocupar o cargo em 10 de dezembro. Paradoxalmente, perderia mais poder se ganhasse o candidato peronista que o opositor. Outra condição natural do peronismo é imediatamente tentar se proteger junto ao vencedor, para em pouco tempo dar início novamente à cerimônia de rancor.
A lógica do peronismo é a de sugar seus chefes, depois de um determinado tempo, já que na realidade o único chefe segue sendo o general Juan Domingo Perón.
Por exemplo, a terceira esposa do general, Isabel Martínez de Perón, que foi presidenta depois da morte do líder e deposta em 1976, e até hoje vive em Madrí, porque não pôde voltar ao país desde que partiu para o exílio em 1981, depois de cinco anos de uma prisão muito cômoda em um dos lugares mais bonitos da Argentina, próximo a Bariloche.
Tanto Carlos Menem, como Eduardo Duhalde, que tiveram um poder absoluto, cada um em seu tempo e em seu lugar, hoje nenhum dirigente com ambições se permitiria ser visto em púbico com um deles.
Para o bem, Cristina se retira com uma imagem muito melhor que a de seus colegas, apesar de uma monumental campanha midiática que a tentou acusar até de traidora da pátria. Com infinitas conquistas para mostrar, poderia ser obrigada a passar uma boa temporada em quartéis de inverno, se ganhasse Scioli. Como Macri venceu, este cronista imagina que não demorará mais que o tempo de retocar a maquiagem para Cristina se converter na líder absoluta da oposição. Talvez nesse lugar seja possível unir mais os peronistas, já que, como disse Borges, são incorrigíveis."
FONTE: escrito por Guadi Calvo, escritor e jornalista argentino; especial para o portal "Vermelho" (http://www.vermelho.org.br/noticia/273116-7). [Título e pequenas alterações no texto acrescentados por este blog 'democracia&política', em face de o artigo ter sido escrito semana passada e, portanto, antes de a vitória do candidato Maurício Macri já ter sido definida ontem].
COMPLEMENTAÇÃO
MACRI PRESIDENTE: O QUE O BRASIL DEVE ESPERAR
"Enquanto simpatizantes de Mauricio Macri comemoravam a vitória na eleição presidencial de domingo ao som de música brasileira, o novo presidente argentino garantia que sua primeira visita de Estado será feita à presidente Dilma Rousseff, no Brasil. “Para o governo brasileiro será muito mais fácil trabalhar com a gente do que com a Cristina”, declarou a Guido Nejamkis, editor do "247" em espanhol, um dos principais formuladores da política externa de Macri. O novo presidente pretende estabelecer políticas em sintonia com os ministros pragmáticos do governo Dilma, que seriam Joaquim Levy, Armando Monteiro e Kátia Abreu; no entanto, deve haver mudanças em relação à Venezuela. Macri pedirá que o país de Nicolás Maduro seja expulso do Mercosul, caso não liberte os presos políticos.
Por Guido Nejamkis, editor do "247" em espanhol
A festa dos simpatizantes de Mauricio Macri na capital argentina foi com muita música brasileira.
O tom da celebração já antecipa um fato relevante: o Brasil será um dos centros da nova política externa da Argentina, que começará a andar no dia 10 de dezembro, data da posse do sucessor da Cristina Kirchner.
Com as pesquisas indicando já na semana passada uma vitoria eleitoral, auxiliares de política externa do presidente eleito da Argentina, Mauricio Macri, começaram as conversas com o governo brasileiro para cumprir uma promessa de campanha do candidato opositor: realizar sua primeira viagem como chefe de Estado argentino ao Brasil para encontrar aquela que será sua colega a partir do dia 10 de dezembro, a mandatária Dilma Rousseff – depois do Brasil, Macri deverá ir ao Chile.
Devido ao calendário de viagens da Dilma (COP21, Japão e Vietnã), é muito provável que a primeira reunião entre os dois seja ainda na condição de Macri como presidente eleito. Isso será definido nas próximas horas. Os dois deverão assistir juntos no dia 21 de dezembro em Assunção, no Paraguai, à Cúpula do Mercosul. Dilma deverá antes prestigiar em Buenos Aires a posse do Macri.
“Para o governo brasileiro será muito mais fácil trabalhar com a gente do que com a Cristina”, declarou a "247" um dos principais formuladores da política externa do PRO (Proposta Republicana), o pequeno partido do Macri, considerado por grande parte da mídia internacional como de centro-direita, mas que se descreve a ele próprio como desenvolvimentista e modernizante.
Para o diplomata, a vitória do Macri fortalecerá o que ele considera como a ala pragmática do governo Dilma: o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e os ministros de Agricultura e de Desenvolvimento, Kátia Abreu e Armando Monteiro.
Isso porque a aposta do Macri será pelo livre comércio (mesmo com a Argentina sofrendo em breve uma desvalorização do peso) e pela vinculação com os "blocos mais dinâmicos da economia mundial", entre eles a aliança TransPacífico.
No cardápio da nova equipe de política externa da Argentina, que tentará deixar de lado as práticas protecionistas derivadas do controle cambial – e da escassez de divisas – que afetaram o comércio com Brasil, vêm as seguintes propostas, a serem discutidas com o Brasil:
– Reformulação do Mercosul: dar flexibilidade a seus membros para negociar acordos comerciais com terceiros países ou blocos, o que hoje é proibido pelas regras da união alfandegária.
– Esforço imediato para tornar a América do Sul uma área de livre comercio.
– Trabalho conjunto para procurar um consenso sobre como ajudar a Venezuela a uma transição democrática.
A Venezuela será um ponto chave da agenda da política externa do novo presidente argentino. Macri pedirá a saída do país caribenho do Mercosul no caso de que o seu presidente, Nicolás Maduro, não libere os 80 presos políticos que mantém, entre eles Leopoldo López – amigo pessoal do Macri – e o prefeito Antonio Ledezma. A esposa do López, Lilian Tintori, comemorou a vitória do Macri em Buenos Aires.
A Venezuela será, também, o “case” de política externa do Macri, para mostrar ao mundo como e quão grande e profunda é a mudança de rumo na Argentina."
FONTE da complementação: escrito por Guido Nejamkis, editor do "247" em espanhol (http://www.brasil247.com/pt/247/mundo/206262/Macri-presidente-o-que-o-Brasil-deve-esperar.htm)
“Os peronistas não são nem bons, nem maus; são incorrigíveis”, Jorge Luis Borges. Certa vez, quando o general Perón estava no exílio, um jornalista lhe questionou sobre o cenário político e o caudilho respondeu: “Na Argentina uns 20% são conservadores, uns 20% liberais, uns 20% democratas cristãos, uns 20% esquerda, e uns 20% direita”. Surpreso o repórter indagou, “mas e os peronistas?”. A resposta de Perón foi contundente: “Ah! Peronistas todos são!”
Por Guadi Calvo, escritor e jornalista argentino; especial para o "Vermelho"
Talvez essa anedota possa explicar, pelo menos em parte, uma das perguntas mais complexas que se pode fazer um argentino: “O que é o peronismo?”.
Desde seu surgimento em 1945, o peronismo jamais deixou de ser o protagonista essencial no panorama político do país, sua presença sempre foi fundamental e determinante.
O peronismo, como construção política recém-chegada, consolidado sobre os setores mais marginalizados, foi combatido pela esquerda e pela direita. Sua gigantesca base popular, praticamente toda espontânea, diante da figura de um coronel desconhecido que havia desenvolvido uma inédita e monumental tarefa na Secretaria do Trabalho e Previdência, gerou para a esquerda clássica, como o Partido Comunista e o Socialismo e algumas outras pequenas organizações, um profundo ressentimento, já que sentiram que o peronismo os havia “deslocado” de seu mais apreciado objeto de desejo: “o proletariado”.
A esquerda em geral simplificou e fez a soma mais óbvia: um militar jovem (Perón) emergente dos setores nacionalistas do exército, com uma visão inovadora sobre a concepção de Estado, das forças armadas, os sindicatos e os industriais nacionais souberam, e em seguida sofreram, que o eixo da distribuição econômica mudaria drasticamente.
Rapidamente, foi rotulado como "populista". Sentiram que sua chegada iria disputar o poder absoluto de classe que desfrutavam desde a origem do país, um poder que só havia sido compartilhado com a coroa britânica, de quem se sentia parte. Ferrovias, portos, frigoríficos... os britânicos estruturavam a cadeia de exportação desde Londres e só ficavam no país os dividendos dos fazendeiros.
O peronismo mudou esse comportamento nacionalizando muitos dos capitais britânicos, e até colocando em prática um princípio de reforma agrária. Perón carregou os rótulos de "fascista" e "populista" até o último dia de sua vida e para muitos setores seguirá sendo para sempre.
Liberais, conservadores e marxistas foram ofuscados pelo poder absoluto do “tirano fugitivo” como o chamou a imprensa conservadora durante todo seu exílio.
Na Argentina, sempre que aconteceram eleições livres, tampouco foram tantas, o peronismo se impôs sem muito esforço; só em duas ocasiões perdeu eleições presidenciais, em 1983, quando triunfa Raúl Alfonsín da União Cívica Radical, um partido que representou historicamente a cara “civilizada" da direita. Em 1983, o país vinha de uma ditadura selvagem, que havia deixado 30 mil "desaparecidos" (entende-se por sequestrados, torturados e assassinados), uma monumental Dívida Externa e a guerra das Malvinas. Mas além dos erros próprios do Peronismo, a sociedade argentina não estava em condições para provar, outra vez, com um país que contestasse o establishment e o poder militar que, debilitado, seguia tendo suas ações repressivas bem aceitas. A sociedade argentina optou por um político clássico, desajeitado e inoperante, com infinitas limitações morais e técnicas: Alfonsín, que terminou afundando o país em uma crise econômica desconhecida no mundo, com índices de inflação que só aconteceram em Veimar, na Alemanha, e teve que abandonar o governo seis meses antes do final de seu mandato.
Maurício Macri à esquerda e Sérgio Massa, à direita, o candidato que traiu o kirchnerismo
Quem o sucedeu foi um peronista, Carlos Menem, um peronista ortodoxo, originário do interior profundo, que tampouco tardou em vincular-se aos grandes grupos de poder econômico do país e do exterior, para converter-se em um dos governos mais corruptos da história argentina. Menem adotaria todas as políticas neoliberais em voga nos anos 90 e só terminaria seu mandato depois de dez anos de governo, já que foi reeleito em 1995, com um desprestígio absoluto.
Depois de Menem, outra vez o peronismo volta a perder as eleições. Em 1999, dez anos de menemismo haviam sido demais para a sociedade, e esta vez triunfa uma aliança formada por setores do peronismo “mais puro”, os grupos de esquerda burguesa e o radicalismo, encabeçados por Fernando de la Rúa. Se é possível, era menos dotado que Alfonsín. Absolutamente cercado pelas políticas liberais, nomeia como Ministro da Economia, o imprudente Domingo Cavallo. Esse era o homem dos bancos estadunidenses, padrinho absoluto da economia dos anos de Menem, e quem termina afogando o governo junto com De la Rúa diante das eclosões sociais de dezembro de 2001 que deixaram 35 mortos pela repressão policial – cifra inédita desde a volta da democracia – e o país literalmente à beira de uma dissolução.
Voltar a Perón
Por Guadi Calvo, escritor e jornalista argentino; especial para o "Vermelho"
Talvez essa anedota possa explicar, pelo menos em parte, uma das perguntas mais complexas que se pode fazer um argentino: “O que é o peronismo?”.
Desde seu surgimento em 1945, o peronismo jamais deixou de ser o protagonista essencial no panorama político do país, sua presença sempre foi fundamental e determinante.
O peronismo, como construção política recém-chegada, consolidado sobre os setores mais marginalizados, foi combatido pela esquerda e pela direita. Sua gigantesca base popular, praticamente toda espontânea, diante da figura de um coronel desconhecido que havia desenvolvido uma inédita e monumental tarefa na Secretaria do Trabalho e Previdência, gerou para a esquerda clássica, como o Partido Comunista e o Socialismo e algumas outras pequenas organizações, um profundo ressentimento, já que sentiram que o peronismo os havia “deslocado” de seu mais apreciado objeto de desejo: “o proletariado”.
A esquerda em geral simplificou e fez a soma mais óbvia: um militar jovem (Perón) emergente dos setores nacionalistas do exército, com uma visão inovadora sobre a concepção de Estado, das forças armadas, os sindicatos e os industriais nacionais souberam, e em seguida sofreram, que o eixo da distribuição econômica mudaria drasticamente.
Rapidamente, foi rotulado como "populista". Sentiram que sua chegada iria disputar o poder absoluto de classe que desfrutavam desde a origem do país, um poder que só havia sido compartilhado com a coroa britânica, de quem se sentia parte. Ferrovias, portos, frigoríficos... os britânicos estruturavam a cadeia de exportação desde Londres e só ficavam no país os dividendos dos fazendeiros.
O peronismo mudou esse comportamento nacionalizando muitos dos capitais britânicos, e até colocando em prática um princípio de reforma agrária. Perón carregou os rótulos de "fascista" e "populista" até o último dia de sua vida e para muitos setores seguirá sendo para sempre.
Liberais, conservadores e marxistas foram ofuscados pelo poder absoluto do “tirano fugitivo” como o chamou a imprensa conservadora durante todo seu exílio.
Na Argentina, sempre que aconteceram eleições livres, tampouco foram tantas, o peronismo se impôs sem muito esforço; só em duas ocasiões perdeu eleições presidenciais, em 1983, quando triunfa Raúl Alfonsín da União Cívica Radical, um partido que representou historicamente a cara “civilizada" da direita. Em 1983, o país vinha de uma ditadura selvagem, que havia deixado 30 mil "desaparecidos" (entende-se por sequestrados, torturados e assassinados), uma monumental Dívida Externa e a guerra das Malvinas. Mas além dos erros próprios do Peronismo, a sociedade argentina não estava em condições para provar, outra vez, com um país que contestasse o establishment e o poder militar que, debilitado, seguia tendo suas ações repressivas bem aceitas. A sociedade argentina optou por um político clássico, desajeitado e inoperante, com infinitas limitações morais e técnicas: Alfonsín, que terminou afundando o país em uma crise econômica desconhecida no mundo, com índices de inflação que só aconteceram em Veimar, na Alemanha, e teve que abandonar o governo seis meses antes do final de seu mandato.
Maurício Macri à esquerda e Sérgio Massa, à direita, o candidato que traiu o kirchnerismo
Quem o sucedeu foi um peronista, Carlos Menem, um peronista ortodoxo, originário do interior profundo, que tampouco tardou em vincular-se aos grandes grupos de poder econômico do país e do exterior, para converter-se em um dos governos mais corruptos da história argentina. Menem adotaria todas as políticas neoliberais em voga nos anos 90 e só terminaria seu mandato depois de dez anos de governo, já que foi reeleito em 1995, com um desprestígio absoluto.
Depois de Menem, outra vez o peronismo volta a perder as eleições. Em 1999, dez anos de menemismo haviam sido demais para a sociedade, e esta vez triunfa uma aliança formada por setores do peronismo “mais puro”, os grupos de esquerda burguesa e o radicalismo, encabeçados por Fernando de la Rúa. Se é possível, era menos dotado que Alfonsín. Absolutamente cercado pelas políticas liberais, nomeia como Ministro da Economia, o imprudente Domingo Cavallo. Esse era o homem dos bancos estadunidenses, padrinho absoluto da economia dos anos de Menem, e quem termina afogando o governo junto com De la Rúa diante das eclosões sociais de dezembro de 2001 que deixaram 35 mortos pela repressão policial – cifra inédita desde a volta da democracia – e o país literalmente à beira de uma dissolução.
Voltar a Perón
A crise de dezembro de 2001 durou praticamente até o começo de 2003, quando acontece a fuga de Fernando de La Rúa que, empenhado em salvar o poder executivo e a continuidade democrática, utiliza diferentes ferramentas constitucionais. Sete presidentes, todos peronistas de distintos setores, trocam o cargo em dias. Nenhum conseguia tirar o pé do lamaçal que o radicalismo havia provocado. Até que o poderoso governador da província de Buenos Aires e ex-vice-presidente de Menem, Eduardo Duhalde, assume o poder executivo para chamar as eleições no prazo de um ano. Tempo que utilizou todo o aparado político do peronismo em províncias e municípios e, com peronismo puro, consegue controlar em partes a economia e entregar, em maio de 2003, um Estado mais ou menos ordenado a outro peronista, Néstor Kirchner, que parecia muito debilitado, por assumir o poder com apenas 25% dos votos. O kirchnerismo, que entraria em cena tão discretamente, se converteria no fenômeno político mais extraordinário desde o surgimento do próprio Perón, em 1945.
Com um mandato de Néstor e dois de sua esposa, Cristina Fernández Kirchner, completaria um processo de 12 anos de conquistas que não serão extintas, e se Daniel Scioli triunfasse neste domingo (22), no segundo turno, poderia continuar por mais quatro anos.
Daniel Scioli e Maurício Macri, a disputa pela presidência chegou ao fim no domingo (22) [com a vitória de Macri, o candidato 'do mercado']
Seu oponente, Maurício Macri, um representante dos mercados e das multinacionais, que volta com uma nova roupagem com as propostas politicas liberais dos anos 90, com o trio Menem-Cavallo-De la Rúa como guia espiritual, baseando sua campanha em muita imagem, discursos, tipografias, cores e propostas de um pastor eletrônico. Conta ainda com um monstruoso escudo midiático e judicial que ofusca suas feridas abertas e seus faraônicos atos de corrupção própria, e de seus funcionários e amigos.
Apesar do tal escudo, se o peronismo marchasse unido, as possibilidades do candidato dos mercados seriam paupérrimas, e inclusive teria sido impossível haver chegado ao segundo turno, [quando foi derrotado].
O peronismo, outra vez desunido, fez naufragar o projeto tão trabalhado e desejado pelo general Perón e sua esposa Eva Perón. Projeto esse que se centrava na justiça social, na independência econômica e na soberania política.
Nas eleições de 2001, quando Cristina foi eleita pela segunda vez com 54% dos votos, não houve maiores fraturas e o peronismo, como movimento e partido, se resguardou atrás da candidata. Nestes últimos anos, a traição de Sergio Masa, que havia ocupado importantes cargos tanto na administração de Néstor, como de Cristina, golpeou o governo e levou quase 20% dos votos [que faltaram a Scioli] e que teriam feito o peronismo triunfar uma vez mais no primeiro turno, em outubro.
O peronismo tem uma condição natural para segmentar-se e para voltar a se unir, esta não é a primeira vez que acontece e certamente não será a última. Seus dirigentes, todavia, não conseguiram superar a perda de seu fundador em 1973.
Desde então, ao se tornar nominalmente um partido, mas não ter uma estrutura resistente e ordenada para canalizar as disputas internas, as fugas são tão constantes como os retornos. Qualquer dirigente médio se considera apto para saltar para cima sem respeitar ordens e hierarquias.
A sorte da presidenta, hoje uma figura incontornável na política interna do peronismo, pode perder a totalidade de seu poder apenas ao entregá-lo nas mãos [de Macri], próximo a ocupar o cargo em 10 de dezembro. Paradoxalmente, perderia mais poder se ganhasse o candidato peronista que o opositor. Outra condição natural do peronismo é imediatamente tentar se proteger junto ao vencedor, para em pouco tempo dar início novamente à cerimônia de rancor.
A lógica do peronismo é a de sugar seus chefes, depois de um determinado tempo, já que na realidade o único chefe segue sendo o general Juan Domingo Perón.
Por exemplo, a terceira esposa do general, Isabel Martínez de Perón, que foi presidenta depois da morte do líder e deposta em 1976, e até hoje vive em Madrí, porque não pôde voltar ao país desde que partiu para o exílio em 1981, depois de cinco anos de uma prisão muito cômoda em um dos lugares mais bonitos da Argentina, próximo a Bariloche.
Tanto Carlos Menem, como Eduardo Duhalde, que tiveram um poder absoluto, cada um em seu tempo e em seu lugar, hoje nenhum dirigente com ambições se permitiria ser visto em púbico com um deles.
Para o bem, Cristina se retira com uma imagem muito melhor que a de seus colegas, apesar de uma monumental campanha midiática que a tentou acusar até de traidora da pátria. Com infinitas conquistas para mostrar, poderia ser obrigada a passar uma boa temporada em quartéis de inverno, se ganhasse Scioli. Como Macri venceu, este cronista imagina que não demorará mais que o tempo de retocar a maquiagem para Cristina se converter na líder absoluta da oposição. Talvez nesse lugar seja possível unir mais os peronistas, já que, como disse Borges, são incorrigíveis."
FONTE: escrito por Guadi Calvo, escritor e jornalista argentino; especial para o portal "Vermelho" (http://www.vermelho.org.br/noticia/273116-7). [Título e pequenas alterações no texto acrescentados por este blog 'democracia&política', em face de o artigo ter sido escrito semana passada e, portanto, antes de a vitória do candidato Maurício Macri já ter sido definida ontem].
COMPLEMENTAÇÃO
MACRI PRESIDENTE: O QUE O BRASIL DEVE ESPERAR
"Enquanto simpatizantes de Mauricio Macri comemoravam a vitória na eleição presidencial de domingo ao som de música brasileira, o novo presidente argentino garantia que sua primeira visita de Estado será feita à presidente Dilma Rousseff, no Brasil. “Para o governo brasileiro será muito mais fácil trabalhar com a gente do que com a Cristina”, declarou a Guido Nejamkis, editor do "247" em espanhol, um dos principais formuladores da política externa de Macri. O novo presidente pretende estabelecer políticas em sintonia com os ministros pragmáticos do governo Dilma, que seriam Joaquim Levy, Armando Monteiro e Kátia Abreu; no entanto, deve haver mudanças em relação à Venezuela. Macri pedirá que o país de Nicolás Maduro seja expulso do Mercosul, caso não liberte os presos políticos.
Por Guido Nejamkis, editor do "247" em espanhol
A festa dos simpatizantes de Mauricio Macri na capital argentina foi com muita música brasileira.
O tom da celebração já antecipa um fato relevante: o Brasil será um dos centros da nova política externa da Argentina, que começará a andar no dia 10 de dezembro, data da posse do sucessor da Cristina Kirchner.
Com as pesquisas indicando já na semana passada uma vitoria eleitoral, auxiliares de política externa do presidente eleito da Argentina, Mauricio Macri, começaram as conversas com o governo brasileiro para cumprir uma promessa de campanha do candidato opositor: realizar sua primeira viagem como chefe de Estado argentino ao Brasil para encontrar aquela que será sua colega a partir do dia 10 de dezembro, a mandatária Dilma Rousseff – depois do Brasil, Macri deverá ir ao Chile.
Devido ao calendário de viagens da Dilma (COP21, Japão e Vietnã), é muito provável que a primeira reunião entre os dois seja ainda na condição de Macri como presidente eleito. Isso será definido nas próximas horas. Os dois deverão assistir juntos no dia 21 de dezembro em Assunção, no Paraguai, à Cúpula do Mercosul. Dilma deverá antes prestigiar em Buenos Aires a posse do Macri.
“Para o governo brasileiro será muito mais fácil trabalhar com a gente do que com a Cristina”, declarou a "247" um dos principais formuladores da política externa do PRO (Proposta Republicana), o pequeno partido do Macri, considerado por grande parte da mídia internacional como de centro-direita, mas que se descreve a ele próprio como desenvolvimentista e modernizante.
Para o diplomata, a vitória do Macri fortalecerá o que ele considera como a ala pragmática do governo Dilma: o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e os ministros de Agricultura e de Desenvolvimento, Kátia Abreu e Armando Monteiro.
Isso porque a aposta do Macri será pelo livre comércio (mesmo com a Argentina sofrendo em breve uma desvalorização do peso) e pela vinculação com os "blocos mais dinâmicos da economia mundial", entre eles a aliança TransPacífico.
No cardápio da nova equipe de política externa da Argentina, que tentará deixar de lado as práticas protecionistas derivadas do controle cambial – e da escassez de divisas – que afetaram o comércio com Brasil, vêm as seguintes propostas, a serem discutidas com o Brasil:
– Reformulação do Mercosul: dar flexibilidade a seus membros para negociar acordos comerciais com terceiros países ou blocos, o que hoje é proibido pelas regras da união alfandegária.
– Esforço imediato para tornar a América do Sul uma área de livre comercio.
– Trabalho conjunto para procurar um consenso sobre como ajudar a Venezuela a uma transição democrática.
A Venezuela será um ponto chave da agenda da política externa do novo presidente argentino. Macri pedirá a saída do país caribenho do Mercosul no caso de que o seu presidente, Nicolás Maduro, não libere os 80 presos políticos que mantém, entre eles Leopoldo López – amigo pessoal do Macri – e o prefeito Antonio Ledezma. A esposa do López, Lilian Tintori, comemorou a vitória do Macri em Buenos Aires.
A Venezuela será, também, o “case” de política externa do Macri, para mostrar ao mundo como e quão grande e profunda é a mudança de rumo na Argentina."
FONTE da complementação: escrito por Guido Nejamkis, editor do "247" em espanhol (http://www.brasil247.com/pt/247/mundo/206262/Macri-presidente-o-que-o-Brasil-deve-esperar.htm)
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