EUA: Construir exércitos (e vê-los fracassar)
Por Andrew J. Bacevich, professor emérito de História e Relações Internacionais na Boston University-EUA. Publicado no "TomDispatch"
Por Andrew J. Bacevich, professor emérito de História e Relações Internacionais na Boston University-EUA. Publicado no "TomDispatch"
"Primeiro foi Fallujah, depois Mosul, e adiante, Ramadi no Iraque. Agora, aí está Kunduz, capital provincial no norte do Afeganistão. Em todos esses locais, viu-se encenada a mesma história: em cidades que a mídia-empresa gosta de chamar de “estrategicamente importantes”, forças de segurança treinadas e equipadas por militares norte-americanos a custo altíssimo, simplesmente fugiram, abandonando suas posições (e boa parte das armas que os EUA lhe forneceram), sem sequer oferecer resistência considerável. Convocados à luta, fugiram. Em cada caso, as forças de defesa cederam ante inimigo em muito menor número, o que torna o resultado ainda mais vergonhoso.
Somados, esses revezes são o veredito vivo dessa hoje praticamente já sem nome “Guerra Global ao Terrorismo” (GGT) [orig. Global War on Terrorism (GWOT)].
Guerras-relâmpago sucessivas comandadas pelo ISIL/ISIS/Daesch/Estado Islâmico e pelos Talibã, respectivamente, fizeram muito mais do que simplesmente penetrar defesas iraquianas e afegãs. Elas também abriram buracos na estratégia que os EUA abraçaram, na esperança de controlar a crescente erosão de sua posição do Oriente Médio Expandido.
Recordemos que, quanto os EUA lançaram sua "Guerra Global ao Terrorismo" logo depois do 11 de setembro 2001, o lançamento acompanhava uma agenda grandiosa. As forças norte-americanas imporiam dali em diante, a todos, um conjunto específico e exaltado de valores. Durante o primeiro mandato do presidente George W. Bush, sua “agenda liberdade” constituía o alicerce ou, no mínimo, a justificativa, da política norte-americana.
O tiroteio só pararia, Bush jurava, quando países como o Afeganistão tivessem aprendido a não dar abrigo a terroristas anti-EUA, e países como o Iraque tivessem parado de "encorajá-los". Alcançar esse objetivo significava que os habitantes desses países teriam de mudar. Afegãos e iraquianos, seguidos na devida ordem dos fatos por sírios, líbios, iranianos e incontáveis outros povos "abraçariam a democracia, todos os direitos humanos e o estado de direito", ou seriam dinamitados. Pela ação concertada do poder dos EUA, todos esses países seriam tornados outros – mais assemelhados aos EUA e mais inclinados a concordar conosco. Cada vez menos Meca e Medina, cada vez mais “nós defendemos essas verdades” e “do povo, pelo povo”.[ou melhor, "do mercado, para o mercado"...]
Nisso, Bush e outros do seu círculo mais íntimo juravam crer. No mínimo, alguns deles, provavelmente até o próprio Bush [todos compreendem suas limitações naturais], talvez realmente cressem.
A história, pelo menos os fragmentos e pedaços que os norte-americanos viram acontecer, parecia confirmar tais expectativas, com um mínimo de plausibilidade. Semelhante transferência de valores já não acontecera, sem tirar nem pôr, depois da 2ª Guerra Mundial, quando as derrotadas Potências do Eixo tão rapidamente se atiraram ao colo do lado vencedor? Já não acontecera também nos estertores da Guerra Fria, quando comunistas comprometidos sucumbiam à sedução do consumismo e da distribuição trimestral de lucros?
Se o mix apropriado de sedução e coerção lhes fosse servido, afegãos e iraquianos, eles também, com certeza, seguiriam o mesmo caminho que antes bons alemães e lépidos japoneses seguiram e que, depois, também tchecos cansados de repressão e chineses cansados de só desejar também seguiram. Uma vez libertados, afegãos e iraquianos gratos se alinhariam também a uma concepção de "modernidade" da qual os EUA haviam sido pioneiros e hoje exemplificam. Para que essa transformação acontecesse, contudo, os restos acumulados de convenções sociais e arranjos políticos que tanto haviam retardado o progresso teriam de ser varridos para bem longe. Esse era o objetivo que as invasões do Afeganistão (Operação Liberdade Duradoura!) e do Iraque (Operação Liberdade Iraquiana!) foram concebidas para atingir num só golpe, por militares como o mundo jamais antes vira (bastaria ouvir o que Washington dizia). "Power of War", POW, "Poder da Guerra"!
Eles se erguem, nós nos retiramos
Escondidas por trás da tal tão citada “liberdade” – a justificativa com 1001 utilidades para o deslocamento do poder bélico dos EUA – havia muitas nuances de significado. O termo, na verdade, tem de ser decodificado. Mesmo assim, dentro dos estratos superiores do aparelho de segurança nacional dos EUA, uma definição assume precedência sobre todas as demais. Em Washington, “liberdade” passou a ser eufemismo para “dominação”. Disseminar a "liberdade" significa "posicionar os EUA para comandar e decidir". Vistas nesse contexto, as vitórias esperadas no Afeganistão e no Iraque visavam a afirmar e expandir a predominância dos EUA, mediante a incorporação, ao poder imperial dos EUA, de vastas porções do mundo islâmico. Eles se beneficiariam, é claro. Mas muito mais nos beneficiaríamos nós.
Infortunadamente, libertar afegãos e iraquianos revelou-se empreitada muito mais complicada do que havia sido previsto pelos arquitetos da "agenda de libertação" (ou "de dominação"), de Bush. Antes de Barack Obama substituir Bush, em janeiro de 2009, poucos observadores – além de um punhado de ideólogos e militaristas – acreditavam no conto de fadas de um poder militar norte-americano que obrigaria o Oriente Médio, por mágica, a se alinhar. Brutalmente, mas eficientemente, a guerra educou os educáveis. Quanto aos não educáveis, continuaram a ouvir e a repetir tudo que lhes ensinavam a rede "Fox News" e "Weekly Standard" [revista fortemente conservadora, que hoje, por falar nela, já está empenhada de corpo e alma na candidatura de Hillary Clinton (NTs)]
Mas, se a estratégia de transformar mediante "invasão e construção da nação” falhara, havia outra posição que parecia ditada pela lógica dos acontecimentos. Juntos, Bush e Obama cuidariam de reduzir as expectativas de o quanto os EUA alcançariam, mesmo enquanto impunham novas demandas aos militares norte-americanos, o braço dos EUA para política exterior, para que continuassem a tentar cumprir a agenda posta.
Em vez de operar como parteiro de mudança política e cultural fundamental, o Pentágono recebeu ordens para escalar os esforços – já então desmesurados – para criar exércitos (e forças policiais) locais capazes de manter a ordem e a unidade nacionais. O presidente Bush criou formulação concisa da nova estratégia: “Enquanto os iraquianos se erguem, nós nos retiraremos”. Com Obama, depois de seu próprio golpe naquela “avançada/surge”, o dictum passou a se aplicar também ao Afeganistão. A "construção-da-nação" gorara. Construir exércitos e forças policiais capazes de manter a tampa bem firmemente fechada sobre tudo e todos passou a ser, então, a definição prevalente de “sucesso”.
Claro, os EUA já haviam tentado antes essa abordagem, com resultados infelizes. Foi no Vietnã. Ali, esforços para destruir as forças do Vietnã do Norte e do Viet Cong que lutavam para unificar o próprio país haviam exaurido os militares norte-americanos e a paciência do povo dos EUA. Respondendo à lógica dos eventos, os presidentes Lyndon Johnson e Richard Nixon já tinham plano previsto para essa eventualidade. Com as chances de as forças dos EUA conseguirem eliminar as ameaças à segurança do Vietnã do Sul, o treinamento, armamento e preparação dos sul-vietnameses para se autodefenderem viraram prioridade absoluta.
Apelidada de “Vietnamização”, essa empreitada acabou no mais abjeto fracasso, com a queda de Saigon, em 1975. Mas o fracasso levantou importantes questões às quais a elite da segurança nacional dos EUA deveria ter prestado atenção: Se o estado é fraco, com duvidosa legitimidade, que viabilidade há/haveria em esperar que gente de fora realmente investiria as forças locais com genuíno poder de luta? Como diferenças na cultura ou história ou religião afetam o futuro do tal ‘investimento’ exterior, em forças locais? Há capacitação e armas suficientes para suprir um déficit de vontade? Equipamento substitui coesão? Sobretudo: se forem encarregadas de dar nova chance a uma nova versão da Vietnamização, o que as forças dos EUA têm de fazer de modo muito diferente, para poder esperar resultado diferente?
Naquela época, com oficiais generais e oficiais civis mais inclinados a esquecer o Vietnã do que a analisar implicações do Vietnã, essas questões atraíram bem pouca atenção. Em vez de cuidar delas, os militares profissionais devotaram-se a se reequipar para a guerra seguinte, a qual, como então decidiram, seria diferente. Não mais Vietnãs – e, portanto, não mais Vietnamização.
Depois da Guerra do Golfo de 1991, apoiados no ostentável sucesso da "Operação Tempestade no Deserto", o corpo de oficiais se autoconvenceu de que havia definitivamente apagado as más lembranças induzidas pelo Vietnã. Como o comandante-em-chefe George H.W. Bush disse, em frase inolvidável, “Juro por Deus, chutamos de uma vez por todas a síndrome do Vietnã!”
Em resumo, o Pentágono decifrara a guerra. A vitória, agora, seria conclusão necessária. O que aconteceu foi que essa avaliação autocongratulatória esqueceu as tropas norte-americanas, que foram mal preparadas para as dificuldades que as esperavam depois do 11 de setembro, quando as intervenções no Afeganistão e no Iraque começaram pelo velho script, que determinava guerras rápidas por força sem igual, que alcançaria vitórias decisivas. Mas os soldados encontraram duas longas guerra, que até hoje não foram ‘decididas’. Era o Vietnã, tudo outra vez, em escala menor – mas multiplicado por dois.
Vietnamização 2.0
Para Bush no Iraque e Obama depois de rápido flerte pouco entusiasmado com uma contrainsurgência no Afeganistão, optar por uma variante da Vietnamização pareceu a coisa mais simples de fazer. E a opção oferecia uma sugestão de rota de fuga para bem longe de todas as complexidades. Bem verdade que o Plano A – "nós exportamos liberdade e democracia" – fracassara. Mas o Plano B – "eles (com nossa ajuda) restauram alguma coisa que passe por estabilidade" – pode permitir que Washington salve pelo menos algum sucesso parcial nos dois espaços. Com a barra das exigências assim já bem convenientemente rebaixada, uma versão de “Missão Cumprida” pode ainda ser alcançável.
Se o Plano A visara a conseguir que os militares norte-americanos dizimassem rapidamente os adversários, o Plano B focava-se em empurrar aliados sitiados para que assumissem os combates. A meta já não era vencer – dada a incapacidade dos militares norte-americanos para vencer qualquer guerra, essa meta era autoevidente, não era adivinhação. – A meta passava ser "manter o inimigo a uma distância segura".
Embora aliados dos EUA, só no sentido mais laxo da expressão, Iraque ou Afeganistão qualificam-se como nação-estado. Governos em Bagdá e Cabul só nominal e intermitentemente são imbuídos de autoridade que as respectivas populações conhecidas como ‘afegãos’ e ‘iraquianos’ respeitem. Mesmo assim, na Washington de George Bush e Barack Obama, algo como uma voluntária suspensão de qualquer racionalidade passou a ser ‘a base’ das políticas. Em terras distantes onde o conceito de nacionalidade mal existia, o Pentágono meteu-se a tentar construir um aparelho completo de segurança nacional capaz de defender aquela aspiração como se representasse a realidade. Desde o primeiro dia, foi grosseira subestimação da realidade, amparada na fé.
Como em todos os projetos que o Pentágono assume ‘para arrasar’, esse também consumiu recursos em escala gargantuesca – US$ 25 bilhões no Iraque e ainda mais estarrecedores US$ 65 bilhões no Afeganistão. “Erguer” por lá mesmo as necessárias forças envolveu transferência de vastas quantidades de equipamento e a criação de elaboradas missões norte-americanas para treinamento. Forças iraquianas e afegãs obtiveram toda a parafernália da guerra moderna – aviões ou helicópteros de ataque, artilharia e veículos blindados, equipamento para visão noturna e drones. Desnecessário dizer, logo apareceram longas filas de empresas fornecedoras da Defesa, interessadas em fazer dinheiro rápido.
A julgar pelo desempenho, as forças de segurança nas quais o Pentágono injetou anos de atenção permanecem visivelmente insuficientes para o serviço. Entrementes, os guerreiros do ISIL/ISIS/Daesch/Estado Islâmico, sem os benefícios da orientação de um caríssimo quadro de distantes mentores especiais, surgiu pleno de convicção, para lutar e morrer pela própria causa. Como os combatentes Talibã no Afeganistão. E os beneficiários da assistência técnica que os EUA distribuem? Nada bem. Considerados retornos parciais, mas em considerável quantidade, a "Vietnamização 2.0" parece estar seguindo uma trajetória fantasmagoricamente familiar em que todos, sem faltar um, reconhecerão a "Vietnamização 1.0". As perguntas que teriam de ter sido se não respondidas, no mínimo examinadas lá atrás, quando nossos aliados sul-vietnameses foram miseravelmente derrotados, voltaram como fantasma e vingança.
A mais importante daquelas questões desafia o pressuposto que deu forma à política dos EUA no Oriente Médio Expandido desde que a agenda ‘da liberdade’ viajou para o sul: que Washington tem alguma especial capacidade e extraordinária competência para organizar, treinar, equipar e motivar exércitos estrangeiros. Se se consideram as evidências que se empilham diante dos nossos olhos, aquele pressuposto é em grande parte, falso.
Falando desses resultados, o tenente-general aposentado Karl Eikenberry, ex-comandante militar e embaixador dos EUA no Afeganistão, já ofereceu sua avaliação de autoridade no assunto. “Nosso currículo no setor de construir forças [estrangeiras] de segurança ao longo dos últimos 15 anos é miserável” – disse ele recentemente ao "New York Times". Só isso.
Guerrear a guerra errada
Recordemos que, quanto os EUA lançaram sua "Guerra Global ao Terrorismo" logo depois do 11 de setembro 2001, o lançamento acompanhava uma agenda grandiosa. As forças norte-americanas imporiam dali em diante, a todos, um conjunto específico e exaltado de valores. Durante o primeiro mandato do presidente George W. Bush, sua “agenda liberdade” constituía o alicerce ou, no mínimo, a justificativa, da política norte-americana.
O tiroteio só pararia, Bush jurava, quando países como o Afeganistão tivessem aprendido a não dar abrigo a terroristas anti-EUA, e países como o Iraque tivessem parado de "encorajá-los". Alcançar esse objetivo significava que os habitantes desses países teriam de mudar. Afegãos e iraquianos, seguidos na devida ordem dos fatos por sírios, líbios, iranianos e incontáveis outros povos "abraçariam a democracia, todos os direitos humanos e o estado de direito", ou seriam dinamitados. Pela ação concertada do poder dos EUA, todos esses países seriam tornados outros – mais assemelhados aos EUA e mais inclinados a concordar conosco. Cada vez menos Meca e Medina, cada vez mais “nós defendemos essas verdades” e “do povo, pelo povo”.[ou melhor, "do mercado, para o mercado"...]
Nisso, Bush e outros do seu círculo mais íntimo juravam crer. No mínimo, alguns deles, provavelmente até o próprio Bush [todos compreendem suas limitações naturais], talvez realmente cressem.
A história, pelo menos os fragmentos e pedaços que os norte-americanos viram acontecer, parecia confirmar tais expectativas, com um mínimo de plausibilidade. Semelhante transferência de valores já não acontecera, sem tirar nem pôr, depois da 2ª Guerra Mundial, quando as derrotadas Potências do Eixo tão rapidamente se atiraram ao colo do lado vencedor? Já não acontecera também nos estertores da Guerra Fria, quando comunistas comprometidos sucumbiam à sedução do consumismo e da distribuição trimestral de lucros?
Se o mix apropriado de sedução e coerção lhes fosse servido, afegãos e iraquianos, eles também, com certeza, seguiriam o mesmo caminho que antes bons alemães e lépidos japoneses seguiram e que, depois, também tchecos cansados de repressão e chineses cansados de só desejar também seguiram. Uma vez libertados, afegãos e iraquianos gratos se alinhariam também a uma concepção de "modernidade" da qual os EUA haviam sido pioneiros e hoje exemplificam. Para que essa transformação acontecesse, contudo, os restos acumulados de convenções sociais e arranjos políticos que tanto haviam retardado o progresso teriam de ser varridos para bem longe. Esse era o objetivo que as invasões do Afeganistão (Operação Liberdade Duradoura!) e do Iraque (Operação Liberdade Iraquiana!) foram concebidas para atingir num só golpe, por militares como o mundo jamais antes vira (bastaria ouvir o que Washington dizia). "Power of War", POW, "Poder da Guerra"!
Eles se erguem, nós nos retiramos
Escondidas por trás da tal tão citada “liberdade” – a justificativa com 1001 utilidades para o deslocamento do poder bélico dos EUA – havia muitas nuances de significado. O termo, na verdade, tem de ser decodificado. Mesmo assim, dentro dos estratos superiores do aparelho de segurança nacional dos EUA, uma definição assume precedência sobre todas as demais. Em Washington, “liberdade” passou a ser eufemismo para “dominação”. Disseminar a "liberdade" significa "posicionar os EUA para comandar e decidir". Vistas nesse contexto, as vitórias esperadas no Afeganistão e no Iraque visavam a afirmar e expandir a predominância dos EUA, mediante a incorporação, ao poder imperial dos EUA, de vastas porções do mundo islâmico. Eles se beneficiariam, é claro. Mas muito mais nos beneficiaríamos nós.
Infortunadamente, libertar afegãos e iraquianos revelou-se empreitada muito mais complicada do que havia sido previsto pelos arquitetos da "agenda de libertação" (ou "de dominação"), de Bush. Antes de Barack Obama substituir Bush, em janeiro de 2009, poucos observadores – além de um punhado de ideólogos e militaristas – acreditavam no conto de fadas de um poder militar norte-americano que obrigaria o Oriente Médio, por mágica, a se alinhar. Brutalmente, mas eficientemente, a guerra educou os educáveis. Quanto aos não educáveis, continuaram a ouvir e a repetir tudo que lhes ensinavam a rede "Fox News" e "Weekly Standard" [revista fortemente conservadora, que hoje, por falar nela, já está empenhada de corpo e alma na candidatura de Hillary Clinton (NTs)]
Mas, se a estratégia de transformar mediante "invasão e construção da nação” falhara, havia outra posição que parecia ditada pela lógica dos acontecimentos. Juntos, Bush e Obama cuidariam de reduzir as expectativas de o quanto os EUA alcançariam, mesmo enquanto impunham novas demandas aos militares norte-americanos, o braço dos EUA para política exterior, para que continuassem a tentar cumprir a agenda posta.
Em vez de operar como parteiro de mudança política e cultural fundamental, o Pentágono recebeu ordens para escalar os esforços – já então desmesurados – para criar exércitos (e forças policiais) locais capazes de manter a ordem e a unidade nacionais. O presidente Bush criou formulação concisa da nova estratégia: “Enquanto os iraquianos se erguem, nós nos retiraremos”. Com Obama, depois de seu próprio golpe naquela “avançada/surge”, o dictum passou a se aplicar também ao Afeganistão. A "construção-da-nação" gorara. Construir exércitos e forças policiais capazes de manter a tampa bem firmemente fechada sobre tudo e todos passou a ser, então, a definição prevalente de “sucesso”.
Claro, os EUA já haviam tentado antes essa abordagem, com resultados infelizes. Foi no Vietnã. Ali, esforços para destruir as forças do Vietnã do Norte e do Viet Cong que lutavam para unificar o próprio país haviam exaurido os militares norte-americanos e a paciência do povo dos EUA. Respondendo à lógica dos eventos, os presidentes Lyndon Johnson e Richard Nixon já tinham plano previsto para essa eventualidade. Com as chances de as forças dos EUA conseguirem eliminar as ameaças à segurança do Vietnã do Sul, o treinamento, armamento e preparação dos sul-vietnameses para se autodefenderem viraram prioridade absoluta.
Apelidada de “Vietnamização”, essa empreitada acabou no mais abjeto fracasso, com a queda de Saigon, em 1975. Mas o fracasso levantou importantes questões às quais a elite da segurança nacional dos EUA deveria ter prestado atenção: Se o estado é fraco, com duvidosa legitimidade, que viabilidade há/haveria em esperar que gente de fora realmente investiria as forças locais com genuíno poder de luta? Como diferenças na cultura ou história ou religião afetam o futuro do tal ‘investimento’ exterior, em forças locais? Há capacitação e armas suficientes para suprir um déficit de vontade? Equipamento substitui coesão? Sobretudo: se forem encarregadas de dar nova chance a uma nova versão da Vietnamização, o que as forças dos EUA têm de fazer de modo muito diferente, para poder esperar resultado diferente?
Naquela época, com oficiais generais e oficiais civis mais inclinados a esquecer o Vietnã do que a analisar implicações do Vietnã, essas questões atraíram bem pouca atenção. Em vez de cuidar delas, os militares profissionais devotaram-se a se reequipar para a guerra seguinte, a qual, como então decidiram, seria diferente. Não mais Vietnãs – e, portanto, não mais Vietnamização.
Depois da Guerra do Golfo de 1991, apoiados no ostentável sucesso da "Operação Tempestade no Deserto", o corpo de oficiais se autoconvenceu de que havia definitivamente apagado as más lembranças induzidas pelo Vietnã. Como o comandante-em-chefe George H.W. Bush disse, em frase inolvidável, “Juro por Deus, chutamos de uma vez por todas a síndrome do Vietnã!”
Em resumo, o Pentágono decifrara a guerra. A vitória, agora, seria conclusão necessária. O que aconteceu foi que essa avaliação autocongratulatória esqueceu as tropas norte-americanas, que foram mal preparadas para as dificuldades que as esperavam depois do 11 de setembro, quando as intervenções no Afeganistão e no Iraque começaram pelo velho script, que determinava guerras rápidas por força sem igual, que alcançaria vitórias decisivas. Mas os soldados encontraram duas longas guerra, que até hoje não foram ‘decididas’. Era o Vietnã, tudo outra vez, em escala menor – mas multiplicado por dois.
Vietnamização 2.0
Para Bush no Iraque e Obama depois de rápido flerte pouco entusiasmado com uma contrainsurgência no Afeganistão, optar por uma variante da Vietnamização pareceu a coisa mais simples de fazer. E a opção oferecia uma sugestão de rota de fuga para bem longe de todas as complexidades. Bem verdade que o Plano A – "nós exportamos liberdade e democracia" – fracassara. Mas o Plano B – "eles (com nossa ajuda) restauram alguma coisa que passe por estabilidade" – pode permitir que Washington salve pelo menos algum sucesso parcial nos dois espaços. Com a barra das exigências assim já bem convenientemente rebaixada, uma versão de “Missão Cumprida” pode ainda ser alcançável.
Se o Plano A visara a conseguir que os militares norte-americanos dizimassem rapidamente os adversários, o Plano B focava-se em empurrar aliados sitiados para que assumissem os combates. A meta já não era vencer – dada a incapacidade dos militares norte-americanos para vencer qualquer guerra, essa meta era autoevidente, não era adivinhação. – A meta passava ser "manter o inimigo a uma distância segura".
Embora aliados dos EUA, só no sentido mais laxo da expressão, Iraque ou Afeganistão qualificam-se como nação-estado. Governos em Bagdá e Cabul só nominal e intermitentemente são imbuídos de autoridade que as respectivas populações conhecidas como ‘afegãos’ e ‘iraquianos’ respeitem. Mesmo assim, na Washington de George Bush e Barack Obama, algo como uma voluntária suspensão de qualquer racionalidade passou a ser ‘a base’ das políticas. Em terras distantes onde o conceito de nacionalidade mal existia, o Pentágono meteu-se a tentar construir um aparelho completo de segurança nacional capaz de defender aquela aspiração como se representasse a realidade. Desde o primeiro dia, foi grosseira subestimação da realidade, amparada na fé.
Como em todos os projetos que o Pentágono assume ‘para arrasar’, esse também consumiu recursos em escala gargantuesca – US$ 25 bilhões no Iraque e ainda mais estarrecedores US$ 65 bilhões no Afeganistão. “Erguer” por lá mesmo as necessárias forças envolveu transferência de vastas quantidades de equipamento e a criação de elaboradas missões norte-americanas para treinamento. Forças iraquianas e afegãs obtiveram toda a parafernália da guerra moderna – aviões ou helicópteros de ataque, artilharia e veículos blindados, equipamento para visão noturna e drones. Desnecessário dizer, logo apareceram longas filas de empresas fornecedoras da Defesa, interessadas em fazer dinheiro rápido.
A julgar pelo desempenho, as forças de segurança nas quais o Pentágono injetou anos de atenção permanecem visivelmente insuficientes para o serviço. Entrementes, os guerreiros do ISIL/ISIS/Daesch/Estado Islâmico, sem os benefícios da orientação de um caríssimo quadro de distantes mentores especiais, surgiu pleno de convicção, para lutar e morrer pela própria causa. Como os combatentes Talibã no Afeganistão. E os beneficiários da assistência técnica que os EUA distribuem? Nada bem. Considerados retornos parciais, mas em considerável quantidade, a "Vietnamização 2.0" parece estar seguindo uma trajetória fantasmagoricamente familiar em que todos, sem faltar um, reconhecerão a "Vietnamização 1.0". As perguntas que teriam de ter sido se não respondidas, no mínimo examinadas lá atrás, quando nossos aliados sul-vietnameses foram miseravelmente derrotados, voltaram como fantasma e vingança.
A mais importante daquelas questões desafia o pressuposto que deu forma à política dos EUA no Oriente Médio Expandido desde que a agenda ‘da liberdade’ viajou para o sul: que Washington tem alguma especial capacidade e extraordinária competência para organizar, treinar, equipar e motivar exércitos estrangeiros. Se se consideram as evidências que se empilham diante dos nossos olhos, aquele pressuposto é em grande parte, falso.
Falando desses resultados, o tenente-general aposentado Karl Eikenberry, ex-comandante militar e embaixador dos EUA no Afeganistão, já ofereceu sua avaliação de autoridade no assunto. “Nosso currículo no setor de construir forças [estrangeiras] de segurança ao longo dos últimos 15 anos é miserável” – disse ele recentemente ao "New York Times". Só isso.
Guerrear a guerra errada
Há de haver quem argumente que, se se tentar com mais empenho, investirem-se mais bilhões, enviar mais equipamento durante, digamos, mais 15 anos, os resultados aparecerão. Mas isso é o mesmo que acreditar que, no prazo longuíssimo, os frutos do capitalismo acabarão por gotejar pirâmide abaixo e beneficiarão até o último dos homens, ou que a marcha da tecnologia esconde o segredo da felicidade humana. Se você quiser, pode acreditar, mas é jogo perdido.
A verdade é que os EUA estariam mais bem atendidos se os políticos parassem de fingir que o Pentágono teria algum dom sobre-humano qualquer para “erguer” exércitos em terras distantes. A prudência aconselha, na verdade, que Washington assuma que, no que tenha a ver com organizar, treinar, equipar e motivas exércitos estrangeiros, os EUA estão absolutamente sem noção.
Pode haver exceções. Por exemplo, os esforços dos EUA podem provavelmente ter ajudado a ampliar o poder de combate da "Peshmerga" curda. Mas é exceção rara, que ajuda a confirmar a regra. Tenham em mente que, antes de os instrutores e equipamentos norte-americanos tivessem sequer surgido por lá, os curdos iraquianos já tinham os atributos essenciais para constituir uma nação. Diferentes dos afegãos e iraquianos, os curdos não precisam de mentores que lhes ensinem sobre a imperiosa necessidade de haver alguma autodefesa coletiva nacional.
Quais as implicações políticas de desistir da ilusão de que o Pentágono saberia o que fazer para construir exércitos estrangeiros? A maior delas é a seguinte: sublocar guerras deixa de aparecer entre as alternativas plausíveis a guerrear diretamente, porque assim se substituem soldados nossos, por soldados deles. Perdida a ilusão de que o Pentágono teria o tal ‘dom’, aconteceria que, em todos os casos em que, para defender interesses dos EUA, fosse preciso guerrear, nós teríamos de morrer nas próprias guerras.
Por extensão, em circunstâncias nas quais as forças dos EUA são demonstradamente incapazes de vencer guerra alguma, ou onde os norte-americanos se neguem a admitir qualquer gasto adicional de sangue norte-americano – hoje, no Oriente Médio Expandido, as duas condições acima se aplicam –, a conclusão será que nada temos de fazer lá (seja onde for).
Fingir que alguma outra coisa seria melhor solução é jogar dinheiro bom onde já se perdeu dinheiro ruim, como um famoso general norte-americano disse certa vez, para guerrear (ainda que indiretamente) “a guerra errada, no lugar errado, na hora errada e contra o inimigo errado.” É o que os EUA vimos fazendo já há várias décadas em grande parte do mundo islâmico.
Na política norte-americana, a nação espera por presidente ou candidato à presidência interessado em afirmar o óbvio e enfrentar suas implicações."
FONTE: escrito por Andrew J. Bacevich, colaborador regular de "TomDispatch" e professor emérito de História e Relações Internacionais na Boston University. É autor de "Breach of Trust: How Americans Failed Their Soldiers and Their Country", dentre outros livros. Em abril de 2016 chega às livrarias seu novo livro "America’s War for the Greater Middle East" (Random House). Artigo transcrito no site "Patria Latina" (http://www.patrialatina.com.br/eua-construir-exercitos-e-ve-los-fracassar/).[Título acrescentado por este blog 'democracia&política'].
A verdade é que os EUA estariam mais bem atendidos se os políticos parassem de fingir que o Pentágono teria algum dom sobre-humano qualquer para “erguer” exércitos em terras distantes. A prudência aconselha, na verdade, que Washington assuma que, no que tenha a ver com organizar, treinar, equipar e motivas exércitos estrangeiros, os EUA estão absolutamente sem noção.
Pode haver exceções. Por exemplo, os esforços dos EUA podem provavelmente ter ajudado a ampliar o poder de combate da "Peshmerga" curda. Mas é exceção rara, que ajuda a confirmar a regra. Tenham em mente que, antes de os instrutores e equipamentos norte-americanos tivessem sequer surgido por lá, os curdos iraquianos já tinham os atributos essenciais para constituir uma nação. Diferentes dos afegãos e iraquianos, os curdos não precisam de mentores que lhes ensinem sobre a imperiosa necessidade de haver alguma autodefesa coletiva nacional.
Quais as implicações políticas de desistir da ilusão de que o Pentágono saberia o que fazer para construir exércitos estrangeiros? A maior delas é a seguinte: sublocar guerras deixa de aparecer entre as alternativas plausíveis a guerrear diretamente, porque assim se substituem soldados nossos, por soldados deles. Perdida a ilusão de que o Pentágono teria o tal ‘dom’, aconteceria que, em todos os casos em que, para defender interesses dos EUA, fosse preciso guerrear, nós teríamos de morrer nas próprias guerras.
Por extensão, em circunstâncias nas quais as forças dos EUA são demonstradamente incapazes de vencer guerra alguma, ou onde os norte-americanos se neguem a admitir qualquer gasto adicional de sangue norte-americano – hoje, no Oriente Médio Expandido, as duas condições acima se aplicam –, a conclusão será que nada temos de fazer lá (seja onde for).
Fingir que alguma outra coisa seria melhor solução é jogar dinheiro bom onde já se perdeu dinheiro ruim, como um famoso general norte-americano disse certa vez, para guerrear (ainda que indiretamente) “a guerra errada, no lugar errado, na hora errada e contra o inimigo errado.” É o que os EUA vimos fazendo já há várias décadas em grande parte do mundo islâmico.
Na política norte-americana, a nação espera por presidente ou candidato à presidência interessado em afirmar o óbvio e enfrentar suas implicações."
FONTE: escrito por Andrew J. Bacevich, colaborador regular de "TomDispatch" e professor emérito de História e Relações Internacionais na Boston University. É autor de "Breach of Trust: How Americans Failed Their Soldiers and Their Country", dentre outros livros. Em abril de 2016 chega às livrarias seu novo livro "America’s War for the Greater Middle East" (Random House). Artigo transcrito no site "Patria Latina" (http://www.patrialatina.com.br/eua-construir-exercitos-e-ve-los-fracassar/).[Título acrescentado por este blog 'democracia&política'].
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