"Não estamos diante apenas de golpes de estado tradicionais. Estamos diante de uma versão mais sofisticada deles, que vêm através de justificativas parlamentares e jurídicas que antecedem ou se sucedem aos acontecimentos propriamente ditos.
Flávio Aguiar
No Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, um dos temas debatidos foi a continuidade/sobrevivência dos governos progressistas na América Latina.
Estamos diante de uma ofensiva generalizada no continente por parte das várias direitas, que compõem uma verdadeira orquestra sinfônica com temas, práticas e argumentações que funcionam como um verdadeiro “maestro” de suas ações, ainda que elas possam diferir no estilo e na intensidade.
Do ponto de vista da linguagem que coroa/impulsiona essas ações, uma relativa novidade foi o uso, cada vez mais presente, da expressão “de facto” para caracterizar o governo golpista de Micheletti, em Honduras.
“De facto” é uma expressão jurídica que se opõe a “de jure”. Essa última quer dizer “de direito”. A primeira quer se refere a “algo implementado na prática, mas não necessariamente com amparo legal”.
A versão mais sofisticada, e ao mesmo tempo a mais grosseira, dessa nova “teoria do de facto”, foi apresentada por Alexandre Garcia em artigo comentado magistralmente por Argemiro Ferreira. Segundo essa teoria, em 1964 as Forças Armadas Brasileiras expulsaram o Presidente João Goulart, um perigoso comuno-cripto-sindicalista (o termo é meu) que ameaçava a ordem legal do país. O Congresso Nacional, diante dessa situação “de facto” criada, escolheram o Marechal Castello Branco como novo presidente.
Essa versão da teoria do “de facto” elide a história: nada conta para ela, senão a tela em frente. Esquece a campanha férrea e suja contra o governo, os desmandos, os arbítrios, as conspirações, as tramas, a violência, tudo. Cria, ao lado da nova situação “de facto”, uma “vacância da história”, que cria, por sua vez, uma “vacância jurídica”. Diante da tabula rasa feita a partir da destruição da ordem jurídica, é necessário criar outra do nada, como se nada houvesse antes.
Mais ou menos como se um disco voador marciano chegasse em Hiroshima no dia 7 de agosto de 1945 e diante dos patéticos escombros seus tripulantes dissessem: “nossa, que lixaria deixaram aqui, vamos varrer tudo isso e construir a nossa nova civilização, a nossa nova história”.
A “teoria do de facto” teve diferentes aplicações nas Américas, e não só na Latina. Uma delas foi a eleição por um voto de diferença (4 x 3) de George Bush, o filho, da Suprema Corte norte-americana, que julgava a fraude eleitoral perpetrada na Florida, que dava os votos necessários ao candidato republicano. A boa razão recomendava a anulação do pleito, da contagem, e a realização de novas eleições no Estado. Prevaleceu a teoria de que “o que está feito, feito está”. Amargo remédio.
Outra aplicação constante se deu no Haiti, em que os Estados Unidos tiraram, repuseram e tiraram de novo o presidente Jean Baptiste Aristide do poder, com diferentes alegações, criando sucessivas situações “de facto”.
Houve também a explicação do golpe contra o presidente Hugo Chavez, em 2002, na Venezuela. Unidades do Exército, diante do perigo de ruptura institucional, prenderam e exigiram a renúncia do presidente, que foi levado dali. Usou-se essa “renúncia” como argumento legal para justificar a “vacância” do cargo. Diante desse “vazio institucional”, chefes militares “convidaram” Pedro Carmona para ocupar o palácio Miraflores. A tudo a mídia comprometida deu cobertura, criando imagens manipuladas para justificar a violência, inclusive recusando-se a noticiar que a multidão ao redor do palácio exigia a volta do presidente deposto, e até que este já retornava para ele.
A quarta e mais recente foi a de Honduras.
Não estamos diante apenas de golpes de estado tradicionais. Estamos diante de uma versão mais sofisticada deles, que vêm através de justificativas parlamentares, legais e jurídicas que antecedem ou se sucedem aos acontecimentos propriamente ditos, elidindo a história e a legalidade anterior. Essa estratégia faz parte e é central entre as novas táticas da direita para assaltar o poder, seguindo a velha teoria de que uma democracia não se faz “apenas com eleições”. Esta se assenta na idéia de que entre os eleitores existem “aqueles que contam” e “aqueles que não deveriam contar”. Como se dizia no Brasil dos anos cinqüenta, depois que a “plebe” reconduziu Vargas ao poder, como pode o voto de um simples operário valer tanto quando o de um empresário, de um jurista, de um médico, etc.?
A “teoria do de facto”, da “vacância histórica” e da “vacância jurídica” se apóiam na teoria subjacente da “vacância do povo”. Essa noção “pós-moderna” (porque destituída de profundidade histórica) de democracia nos dá uma versão anacronicamente “ateniense” dela, em que a democracia vale apenas para os “mais cidadãos” do que os outros: metecos (estrangeiros), bárbaros e escravos, fora!
É provável que a “teoria do de facto” venha de novo a ser arquitetada pelo menos contra o presidente Lugo, do Paraguai, ameaçado de ser acusado de qualquer coisa no Parlamento para se votar o seu afastamento. Em outras circunstâncias é difícil se discernir o seu uso. Mas não esqueçamos que as direitas são unidas, eficazes e criativas. “Um outro de facto é possível”, sempre."
FONTE: escrito por Flávio Aguiar e publicado no site "Carta Maior". Reproduzido hoje (31/01) no portal "Vermelho". O autor é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim, Professor Doutor de Literatura Brasileira da USP. Romancista e crítico literário. Diretor do Centro Ángel Rama de Estudos Latino-Americanos. Obras: "Anita" (romance; São Paulo, Boitempo Editorial, 1999). "Com palmos medida" (São Paulo, Boitempo Editorial e Editora Fundação Perseu Abramo, 1999; antologia). "Antonio Candido - Pensamento e militância" (São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo e Editora Humanitas, 1999).
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