segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

CRÍTICA DOS MILITARES DOS EUA À POLÍTICA DE OBAMA E SEUS "FALCÕES"


O Estado-Maior das FFAA americanas e a influência dos falcões liberais

O ESTADO MAIOR DAS FORÇAS ARMADAS AMERICANAS DENUNCIA A INFLUÊNCIA DOS FALCÕES LIBERAIS SOBRE A CASA BRANCA

Por Thierry Meyssan, no Réseau Voltaire. Tradução de Ricardo Cavalcanti-Schiel

"Podem os militares influenciar os políticos? Ou devem se limitar a obedecê-los, mesmo quando constatam seus erros? Esse foi o tema de um célebre artigo do coronel James H. Baker, atual estrategista do Pentágono. Esse é também o sentido do artigo de Seymour Hersh sobre o modo como o Estado-Maior buscou alertar constantemente a Casa Branca a respeito das operações da CIA na Síria, e na Ucrânia. Há vários meses, o complexo militar-industrial, o antigo diretor da DIA [Defense Intelligence Agency], o antigo Chefe do Estado-Maior e agora o ex-secretário de Defesa, multiplicam as críticas sobre a política do presidente Obama.

Desde a conferência de Genebra, em junho de 2012, os Estados Unidos acumulam contradições tanto no que respeita à Síria quanto no que respeita à Ucrânia. Enquanto isso, o Estado Maior optou por vazar informações sobre suas posições, de maneira a influenciar a Casa Branca.

Contradições e hesitações da Casa Branca


Durante os mandatos de George W. Bush, a Casa Branca queria derrocar a República Árabe Síria e criar uma zona de caos na Ucrânia, tal como tinha alcançado no Iraque. Tratava-se, de uma parte, de seguir adiante na “remodelagem do Oriente Médio Ampliado” [a expressão é do próprio George W. Bush] e, por outra, de cortar as linhas de comunicação terrestre entre o Ocidente, de um lado, e a Rússia e a China, de outro. Ao sucedê-lo, Barak Obama teve, ao mesmo tempo, como conselheiros o general Brent Scowcroft e seu próprio mentor em política, Zbigniew Brzezinski.

Os antigos conselheiros de segurança nacional de Jimmy Carter e de Bush pai desconfiavam da teoria straussiana do caos [de Leo Strauss, um dos filósofos fundadores do pensamento neocon; sobre os desdobramentos de suas ideias na política exterior norte-americana, veja-se outro artigo de Thierry Meyssan (em espanhol). Para os que leem francês, uma boa resenha sobre a influência de Leo Strauss está disponível aqui]. 

Para eles, o mundo deveria ser organizado segundo o modelo da Paz de Westfalia, quer dizer, em torno de Estados internacionalmente reconhecidos. Como Henry Kissinger, por exemplo, eles preconizavam, é verdade, o enfraquecimento dos Estados, de modo a não poderem se opor à hegemonia norte-americana, mas não a sua destruição; por conseguinte, lançavam mão de bom grado de grupos não-estatais para os seus golpes baixos, mas longe de lhes confiar a administração de territórios.

Quando os falcões liberais, reunidos em torno de Hillary Clinton, de Jeffrey Feltman e de David Petraeus ― um general de salão transferido para o mundo civil ―, sabotaram o acordo que a Casa Branca tinha acabado de negociar com o Kremlin, e relançaram a guerra na Síria, em julho de 2012, Barack Obama não reagiu. A campanha eleitoral para a presidência estava no auge, e ele não podia permitir que transparecesse à luz do dia a desordem que reinava no seio da sua equipe. Lançou, portanto, uma armadilha para o general Petraeus, a quem acabou por mandar prender, sob algemas, no dia seguinte à sua reeleição. Depois, agradeceu a Hillary Clinton e a substituiu por John Kerry. Caberia a este último, efetivamente, juntar os cacos da relação com o presidente al-Assad, com quem mantinha alguma cordialidade. Quanto a Jeffrey Feltman, esse já estava na ONU, e parecia delicado demais suspendê-lo de repente.

De qualquer modo, John Kerry deixou-se persuadir previamente de que já era demasiado tarde, e que a República Árabe Síria não iria durar muito. A única coisa que ele poderia fazer era evitar que o presidente al-Assad tivesse o fim trágico de Muamar Kadhafi, sodomizado a baioneta antes de ser morto. A Casa Branca e o Departamento de Estado já tinham sido cegados pelas mentiras da era Bush. Nessa época, todos os funcionários estavam mobilizados não para analisar e compreender o mundo, mas para justificar, de antemão, os crimes de Washington. Em 2006, o primeiro secretário da embaixada dos Estados Unidos em Damasco, William Roebuck, tinha redigido um relatório que foi tomado como última palavra: a Síria não era uma república baasista, mas uma ditadura alauita. A Arábia Saudita, o Catar e a Turquia poderiam legitimamente, portanto, apoiar a maioria sunita da população para implantar a “democracia de mercado[1].

O Presidente Obama permitiu, assim, que a CIA continuasse a sua operação de derrubada do regime sírio, sob a cobertura do apoio aos “rebeldes moderados”. Grandes redes de tráfico de armas foram montadas. Primeiro, a partir da Líbia pós-Kadhafi; depois, a partir da Bulgária de Rossen Plevneliev e Boiko Borissov [2]; e mais tarde a partir da Ucrânia pós-Yanukovich [3]. Simultaneamente, escritórios de recrutamento foram abertos em todo o mundo muçulmano para enviar combatentes para salvar os sunitas sírios “esmagados pela ditadura alauita”.

No fim das contas, há que se admitir que a República Árabe Síria resiste à mais gigantesca coalizão da história (114 Estados e 16 organizações internacionais reunidas no seio dos “Amigos da Síria”). E se ela o consegue é porque jamais foi uma ditadura alauita, mas sim um regime secular e socialista; onde o massacre dos sunitas pelo exército não é mais que uma grande mentira, mas que, bem pelo contrário, eles constituem a maioria dos soldados que defendem o país diante da agressão estrangeira.

Quando, em fevereiro de 2014, os neocons, reunidos em torno de Victoria Nuland, conseguiram derrubar o regime em Kiev a golpe de milhões de dólares, o presidente Obama viu nisso o resultado merecido de longos anos de esforços. Ele não notou de imediato as consequências dessa operação. Só que em seguida viu-se diante de um dilema: ou deixar o país sem governo, como um buraco aberto entre a União Europeia e a Rússia, ou colocar no poder os soldadinhos da CIA, os nazistas e uns quantos islamitas. Escolheu a segunda opção, acreditando que os seus serviços secretos encontrariam, entre esses mercenários, indivíduos capazes de conquistar alguma respeitabilidade. A sequência dos acontecimentos mostrou que não foi nada disso o que aconteceu. Definitivamente, se o regime deposto de Viktor Yanukovich era sem dúvida corrupto ― não mais, no entanto, que os da Moldávia, Bulgária ou Geórgia, para não mencionar outros ―, o poder em Kiev hoje encarna exatamente aquilo que Franklin D. Roosevelt combateu na Segunda Guerra.

O que querem os militares norte-americanos

No momento em que a Casa Branca e o Kremlin acabam de concluir um segundo acordo para a paz no Oriente Médio, o jornalista Seymour Hersh publica, na "London Review of Books", uma longa investigação sobre a forma como o Estado-Maior das Forças Armadas americanas, sob o comando do general Martin Dempsey, resistiu às ilusões de Barack Obama [4]. Segundo Hersh, os militares buscaram manter o contato com os seus homólogos russos, apesar da gestão política da crise ucraniana, e teriam passado informações cruciais a alguns de seus aliados, na esperança de que esses as repassassem aos sírios, abstendo-se de uma ajuda direta a Damasco. Hersh lamenta que hoje em dia as coisas sejam diferentes, a partir do momento em que o general Joseph Dunford assumiu o comando do Estado-Maior.

Nesse artigo, ele afirma que a política da Casa Branca manteve-se invariável com relação a quatro pontos, um mais absurdo que o outro, de acordo com os militares:

- a insistência na saída do presidente al-Assad;

- a impossibilidade de criar uma coligação anti-Daesh com a Rússia;

- a suposição de que a Turquia é um aliado estável na guerra contra o terrorismo;

- e a suposição que existiriam realmente forças de oposição moderada aptas a receber apoio por parte dos Estados Unidos.

Há que se lembrar que o secretário da Defesa, Chuck Hagel, foi destituído em fevereiro de 2014 por ter questionado essa política [5]. Ele foi substituído por Ashton Carter, um alto funcionário ― antigo colaborador de Condoleezza Rice ― conhecido pelo seu faro para arrebanhar negócios privados no manejo da gestão pública [6].

Em seguida, em outubro de 2014, a "Rand Corporation", principal “think tank” do complexo militar-industrial, tomou oficialmente posição em favor do presidente al-Assad. Ela enfatizou que a sua derrota seria irremediavelmente seguida de uma tomada do poder pelos jihadistas, enquanto a sua vitória permitiria, de outra parte, estabilizar a região [7].

Em agosto de 2015, foi a vez do general Michel T. Flynn, antigo diretor da "Defense Intelligence Agency" (DIA), revelar à Al-Jazeera os seus esforços para pôr a Casa Branca em alerta a respeito das operações planejadas pela CIA e por certos aliados de Washington, que lançavam mão dos jihadistas. E comentava um dos seus relatórios, por então recentemente desclassificados [8], em que anunciava a criação do "Daesh" (Estado Islâmico), por esses gestores [9].

Finalmente, em dezembro de 2015, o antigo secretario da Defesa, Chuck Hagel, declarou que a posição da Casa Branca sobre a Síria desacreditava o presidente Obama [10].

Como os militares tentaram ajudar a Síria

Segundo Hersh, em 2013 o Estado-Maior norte-americano teria dado a conhecer aos seus homólogos sírios as quatro exigências de Washington para mudar de política:

- a Síria deveria impedir o Hezbolla de atacar Israel;

- ela deveria retomar as negociações com Israel para resolver a questão das colinas de Golan;

- ela deveria aceitar a presença de conselheiros militares russos;

- e, finalmente, ela deveria se comprometer a realizar novas eleições ao final da guerra, autorizando a participação de um largo espectro da oposição nas mesmas.

O surpreendente da leitura dessas quatro condições é tanto a completa ausência de conhecimento da política do Oriente Médio por parte dos militares norte-americanos, quanto sua vontade de impor condições não factíveis, que não seriam, portanto, aceitas por Damasco passivamente... a não ser que se trate apenas de dar sugestões ao presidente al-Assad para que ele consiga fazer evoluir a posição do seu homólogo norte-americano.

- Em primeiro lugar, o Hezbolah é uma rede de resistência à ocupação israelense, criada no Líbano em resposta à invasão de 1982. Inicialmente, ele não seguia a doutrina dos "Guardiões da Revolução Iraniana", ainda que deva muito aos Bassidjis, mas a do Exército Árabe Sírio. Ele só se voltou para o Irã depois da retirada do exército sírio do Líbano, em 2005. Ainda assim, quando da guerra israelense-libanesa de 2006, o ministro da Defesa sírio esteve pessoalmente presente, em segredo, na linha frente, para supervisar a entrega de material. Atualmente, o Hezbolah xiita e o Exército Árabe Sírio, laico, lutam juntos, simultaneamente, no Líbano e na Síria, contra os jihadistas apoiados por Israel tanto em termos de cobertura aérea quanto em termos de assistência médica.

- De 1995 (Wye River) a 2000 (Genebra), o presidente norte-americano Bill Clinton patrocinou as negociações entre Israel e Síria. No fim das contas, tudo acabou negociado de forma equitativa, mesmo com a desonestidade da delegação israelense em espionar a conversação telefônica entre os presidentes dos Estados Unidos e da Síria [11]. A paz teria sido possível, e teria sido assinada, se não fosse unicamente pelo fato de o primeiro-ministro israelense Ehud Barack recuar no último momento, como o atestou o próprio presidente Clinton nas suas memórias [12]. Bashar al-Assad retomou, por conta própria, negociações indiretas, desta feita via Turquia, mas viu-se obrigado a interrompê-las no momento em que Israel violou grosseiramente o direito internacional, ao abordar, em águas internacionais, a Flotilha da Liberdade. A Síria sempre quis retomar e concluir essas negociações. É a parte israelense, e apenas ela, que as rechaça.

- No que respeita às relações militares entre Damasco e Moscou, elas remontam ao período soviético e só foram mais ou menos interrompidas na época de Boris Yeltsin. Em 2005, Bashar al-Assad dirigiu-se à Rússia para renegociar a dívida contraída com a URSS. Ele ofereceu então ao Kremlin 30 km de litoral para a ampliação do porto militar de Tartus, mas os Russos, cujas forças armadas estavam em plena reorganização, não se interessaram. Antes da Conferência de Genebra (junho de 2012), o conselheiro de segurança nacional Hassan Tourekmani propôs aos russos desembarcar em solo sírio uma força de intervenção de “chapkas azuis” para estabilizar o país. O Kremlin, observando a atuação da CIA e o afluxo de jihadistas de todo o mundo muçulmano, compreendeu logo em seguida que aquela guerra não era mais que um ensaio do que viria a ser lançado depois no Cáucaso. Vladimir Putin declara então o caso sírio como “assunto interno da Rússia”, e assume o compromisso de desembarcar aí as suas forças armadas. Se nada ocorreu em 2013 e 2014, não foi porque a Rússia tivesse mudado de posição, mas porque ela estava preparando as suas forças, sobretudo no que respeita à prontificação operacional das novas armas.

- Por fim, a República Árabe da Síria realizou, em maio de 2014, uma eleição presidencial qualificada como justa e democrática por todas as embaixadas sediadas em Damasco. Foram os Europeus que, violando a Convenção de Viena, impediram que centenas de milhares de refugiados participassem delas. E foram sempre eles que convenceram os vários grupos da oposição a não apresentar candidatos. Bashar al-Assad, que ganhou o escrutínio por larga margem, está pronto antecipadamente a colocar o seu mandato em jogo ao final da guerra. Por uma simples votação da Assembleia, a República poderá aceitar as candidaturas de sírios exilados, exceto aqueles que colaboraram com as Irmandade Muçulmana ou as suas organizações armadas (al-Qaida, Daesh etc.).

Os militares norte-americanos não querem ser presas dos neocons

Logo antes de deixar suas funções, o general Martin Dempsey havia conseguido nomear o coronel James H. Baker como diretor do "Office of Net Assessment", quer dizer, do gabinete encarregado da prospecção e da estratégia no Pentágono [13]. Ora, Baker tem a fama de ser ao mesmo tempo correto, racional e razoável, totalmente ao contrário dos straussianos. Ainda que Seymour Hersh não o cite no seu artigo, pode-se perceber sua marca na posição do Estado-Maior das Forças Armadas norte-americanas.

Seja como for, o artigo de Seymour Hersh atesta a vontade do Estado-Maior das FFAA dos Estados Unidos de se descolar tanto da Casa Branca quanto dos falcões liberais ― como o general David Petraeus e John Allen ―; uma maneira como qualquer outra de salientar que, no atual contexto, o presidente Obama não tem razão alguma para seguir adiante com as ambiguidades que se viu obrigado a manter nestes três últimos anos.

Notas:


[1] Influencing the SARG in the end of 2006”, William Roebuck, Cable from the State Department, Wikileaks.
[2] Mise à jour d’une nouvelle filière de trafic d’armes pour les jihadistes”, par Valentin Vasilescu, Traduction Avic, Réseau Voltaire, 24 de dezembro de 2015.
[3] Le Qatar et l’Ukraine viennent de fournir des Pechora-2D à Daesh”, “Comment le Qatar a préparé le bombardement d’un camp de l’Armée syrienne”, par Andrey Fomin, Oriental Review(Russie), Réseau Voltaire, 22 de novembro e 10 de dezembro de 2015.
[4] Military to Military. US intelligence sharing in the Syrian war”, Seymour M. Hersh, London Review of Books, Vol. 38, No. 1, 7 de janeiro de 2016.
[5] Obama a-t-il encore une politique militaire?”, par Thierry Meyssan, Réseau Voltaire, 01 de dezembro de 2014.
[6] Ash Carter s’entoure d’une équipe de SDB Advisors”, Réseau Voltaire, 26 de dezembro 2014.
[7] Alternative Futures for Syria. Regional Implications and Challenges for the United States, Andrew M. Liepman, Brian Nichiporuk, Jason Killmeyer, Rand Corporation, 22 de outubro de 2014.
[8] Relatório da Agência de Informação Militar aos diversos serviços da administração Obama sobre os jihadistas na Síria (documento desclassificado), 12 de agosto 2012.
[9] Le renseignement militaire états-unien et la Syrie”, W. Patrick Lang, Centre français de recherche sur le renseignement (CF2R), Réseau Voltaire, 21 de dezembro de 2015.
[10] Hagel: The White House tried to destroy me”, Dan de Luce, Foreign Policy, 18 de dezembro de 2015.
[11] Cursed Victory: A History of Israel and the Occupied Territories (A vitória maldita: história de Israel e dos territórios ocupados), Ahron Bregman, Penguin, 2014.
[12] My Life, Bill Clinton, Knopf Publishing Group, 2004.
[13] Ashton Carter nomme le nouveau stratège du Pentagone”, Réseau Voltaire, 17 de maio de 2015.


FONTE: escrito por Thierry Meyssan, no Réseau VoltaireTradução de Ricardo Cavalcanti-Schiel. Transcrito no "Jornal GGN"  (http://jornalggn.com.br/blog/ricardo-cavalcanti-schiel/o-estado-maior-das-ffaa-americanas-e-a-influencia-dos-falcoes-liberais).

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