O portal UOL Mídia Global publicou a matéria de hoje do “Der Spiegel” (em português, O Espelho), um semanário da cidade alemã de Hamburgo publicado desde 4 de janeiro de 1947. Trata-se de entrevista concedida pelo presidente Lula aos repórteres Jens Glüsing e Helene Zuber, traduzido para a UOL por George El Khouri Andolfato.
"NÓS QUEREMOS ENTRAR PARA A OPEP E DEIXAR O PETRÓLEO MAIS BARATO", diz Lula
O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, 62, fala à "Spiegel" sobre o motivo de o Brasil querer ingressar na Opep, sobre o programa de biocombustíveis de seu país e o medo na Europa do deslocamento da América Latina para a esquerda.
Spiegel: Sr. presidente, quando o senhor tomou posse há cinco anos, muitos temiam que o senhor, sendo um ex-líder sindical, pudesse conduzir o país em uma direção socialista. Em vez disso, o senhor adotou políticas econômicas liberais que levaram o país a um crescimento econômico espetacular. O senhor abandonou os princípios de seu passado?
Lula: Como presidente, eu preciso atender a todos. Essa é a força da democracia. Alguém que é eleito pelo povo prestará tanta atenção às necessidades de um banqueiro quanto às de uma criança de rua e de um trabalhador, ao buscar um equilíbrio entre seus interesses individuais. Em 2003, nós tivemos que fazer algumas mudanças muito difíceis nas finanças do governo para que os brasileiros pudessem agora desfrutar de maior estabilidade. Na época, eu usei a confiança que os eleitores depositaram em mim para colocar nosso orçamento nacional em ordem.
Spiegel: Seu país pagou suas dívidas com o Fundo Monetário Internacional e, desde então se tornou um lugar seguro no qual investir. Outros 20 milhões de cidadãos ingressaram na classe média. Todavia, ainda há uma enorme desigualdade entre ricos e pobres entre os 190 milhões de habitantes do Brasil. Como o senhor espera superá-la?
Lula: Ninguém pode eliminar as injustiças de séculos em apenas oito anos. Mas nós encontramos uma forma de superar a pobreza e que não é cara. Nós pagamos aos jovens um subsídio para que possam ir à escola e aprender uma profissão. Cerca de 400 mil jovens pobres que, no passado, nunca teriam uma chance de ter ensino superior, agora estão recebendo bolsas e mais de 40% deles são negros.
Spiegel: Uma guerra das drogas está transcorrendo em suas grandes cidades. Gangues armadas controlam grande parte das favelas no Rio de Janeiro. O governo perdeu o controle sobre as favelas?
Lula: Só a polícia não é suficiente para resolver o problema. O próprio governo deve fazer sua presença ser sentida e fornecer oportunidades, e então a violência diminuirá. Este é o motivo para estarmos limpando as maiores favelas de todo o país. Nós estamos fornecendo para elas água encanada, energia e sistemas de esgoto, escolas, hospitais e bibliotecas.
Enquanto nossa economia continuar crescendo a taxas entre 4% e 6% a longo prazo, nós poderemos continuar pagando por isso. Nós destinamos US$ 270 bilhões (R$ 449 bi) para a melhoria das favelas, assim como para a modernização da nossa infra-estrutura --nossos portos, estradas, ferrovias e aeroportos--, tudo sem realizar novos empréstimos.
Spiegel: E agora o Brasil também planeja se tornar uma potência produtora de petróleo?
Lula: Nós descobrimos reservas imensas de petróleo a 273 quilômetros da costa, a uma profundidade de 2.140 metros e sob uma camada de 5 mil metros de sal e rocha. Nós temos o know-how para explorar estas reservas. Nós esperamos começar a exploração-teste em março e começar a produzir petróleo em 2010. Então, o Brasil se tornará um grande exportador de petróleo. Nós queremos entrar para a Opep e tentar deixar o petróleo mais barato.
Spiegel: Até recentemente, o senhor estava elogiando os produtores de açúcar como os novos heróis nacionais. O Brasil depositou suas apostas no etanol, derivado de cana-de-açúcar, como o combustível do futuro. Mas, na Europa, o biocombustível agora é visto como ecologicamente suspeito.
Lula: O Brasil tem 33 anos de experiência com biocombustíveis. Os carros que são fabricados no nosso país vêm com motores que rodam com misturas de gasolina e álcool. Eles reduzem consideravelmente as emissões de CO2. As plantações de cana-de-açúcar são cortadas por cinco anos consecutivos.
Enquanto as plantas estão crescendo, elas capturam dióxido de carbono. A produção é tão barata que não tem concorrência.
Spiegel: Recentemente houve tumultos, do Haiti à Índia, devido ao aumento dos preços dos alimentos básicos. A plantação de biomassa para combustível ameaça a produção de grãos?
Lula: Eu posso entender que os europeus tenham essas dúvidas. Mas este argumento não se aplica à cana-de-açúcar brasileira ou ao nosso óleo de palma. A produção de combustível a partir de commodities alimentares básicos é, na verdade, injustificável. Mas são os Estados Unidos que usam milho como biocombustível, que então deixa de estar disponível como alimento, enquanto os europeus produzem energia a partir da beterraba, canola e trigo.
Eu sempre disse aos meus amigos europeus que não vale a pena reestruturar seus sistemas agrícolas bem organizados para produção de biocombustível. Nós, e os africanos, podemos fazer um trabalho bem melhor nesse sentido. A União Européia deve dar ao Terceiro Mundo a chance de produzir biocombustível. Além disso, nós não devemos esquecer que o custo mais alto do petróleo e dos fertilizantes também contribui para o preço mais alto dos alimentos. Isso é encoberto.
Spiegel: Mas a ampliação das terras agrícolas dedicadas à cana-de-açúcar tira espaço de plantações de milho e soja.
Lula: Nós temos abundância de terra --280 milhões de hectares de terra arável--, assim como temos abundância de sol e água. A cana-de-açúcar é cultivada em apenas 3% desta área. O Primeiro Mundo deve parar de subsidiar sua própria agricultura e suspender as altas tarifas protecionistas sobre as importações.
Spiegel: O governador do Estado do Mato Grosso, o maior produtor de soja do mundo, disse que mais floresta tropical precisa ser derrubada para atender à demanda por alimento, especialmente na China. O alto consumo de carne e soja nas economias emergentes leva à destruição do meio ambiente no Brasil?
Lula: Isso não é verdade. A região Amazônica não é adequada para pasto de gado. E o solo não é bom nem para cana-de-açúcar e nem para soja.
Spiegel: Mas o corte e queima ilegal continua.
Lula: Nós reforçamos nossos controles. O desmatamento caiu quase 60% no Brasil. Só que mais de 22 milhões de pessoas vivem na região amazônica. Elas também querem comer, dirigir carros e usar refrigeradores.
Spiegel: Governos de esquerda estão no poder em quase toda parte da América do Sul. Mas o continente está dividido em um movimento mais social-democrata, liderado por você, e um mais radical, moldado pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Ainda restam alguns pontos em comum dentro da esquerda latino-americana?
Lula: A esquerda na América do Sul ainda usa os mesmos slogans que a esquerda européia usava nos anos 20 e 30. Os políticos adotam uma posição mais radical nos lugares onde há fome e onde as pessoas não têm acesso ao ensino. Este continente foi agitado por golpes militares. Grupos guerrilheiros ainda estavam ativos em muitos países há apenas 20 anos.
Hoje todos nós concordamos --com a exceção das Farc na Colômbia-- que eleições são a única forma legítima de adquirir poder. As vitórias de Hugo Chávez, Evo Morales na Bolívia e outros, mais recentemente a de Fernando Lugo no Paraguai, significam progresso democrático. Já era hora de os presidentes eleitos serem realmente parte do povo.
Spiegel: Mas é precisamente Chávez, com seu conceito de socialismo para o século 21, que está interferindo nos assuntos internos de outros países, especialmente na região andina. Ele não está desestabilizando toda a região?
Lula: Ele talvez tenha problemas dentro de seu próprio país. Chávez é, sem dúvida, o melhor presidente da Venezuela nos últimos 100 anos. Todavia, ele tem bem menos influência do que as pessoas dizem. A Europa não tem necessidade de se preocupar com a esquerda na América Latina.
Spiegel: Uma guerra quase estourou recentemente entre a Colômbia e o Equador.
Lula: E foi onde Chávez provou ser um pacificador. Felizmente, a guerra na América Latina geralmente é travada apenas com palavras. A língua é nossa arma mais poderosa. Nós falamos demais!
Spiegel: Mas os "hot spots" na América do Sul não podem ser negados. Há uma ameaça de escalada na violência na Bolívia porque as províncias ricas estão buscando declarar sua autonomia. O senhor não pode exercer sua influência para prevenir maior derramamento de sangue?
Lula: O Brasil, juntamente com a Argentina e a Colômbia, formaram o Grupo de Amigos da Bolívia para ajudar o país. Quando o companheiro Evo estiver pronto para negociar, nós estaremos prontos para intermediar negociações.
Spiegel: O senhor adora Fidel Castro e o visitou em janeiro. Agora o irmão dele, Raúl, anunciou reformas econômicas. O Brasil pode ajudar o país a democratizar seu sistema?
Lula: Eu respeito o caminho que Cuba optou por seguir. Raúl está provando ser um sucessor capaz. Nós gostaríamos de ajudá-lo. Especialistas agrícolas brasileiros plantarão em Cuba 20 mil hectares de soja, que será a primeira plantação desse tipo na ilha. Nós também estamos construindo estradas e envolvidos na produção de produtos farmacêuticos. Os cubanos têm um alto nível de educação, e agora é hora de eles criarem a base para promover o próximo grande passo de desenvolvimento.
Spiegel: O senhor mantém uma amizade com os irmãos Castro e ainda assim tem um relacionamento excelente com o presidente americano George W. Bush. Como o senhor consegue este ato de equilibrismo?
Lula: Agora eu sei me mover entre campos políticos. Quando todos no mundo odiavam (o líder líbio Muammar) Gaddafi, eu fiz uma visita oficial a ele. Aquilo causou alvoroço --Lula está visitando o diabo!
Spiegel: É possível estar na esquerda latino-americana sem se rebelar contra os norte-americanos?
Lula: Há sempre um certo preço associado a ser uma grande potência, e isso também se aplica a nós, como gigante econômico da América do Sul. Os Estados Unidos sempre tentaram dominar a América Latina. Na Bolívia, o embaixador americano mobilizou as organizações internacionais de ajuda para difamar Evo Morales. Aqueles que agem dessa forma fazem inimigos. Eu aconselhei Bush a apoiar, em particular, a América Central e o Caribe com ajuda de desenvolvimento.
Spiegel: O Brasil e a China, duas potências econômicas em ascensão, entraram em uma aliança estratégica. Até o momento, isso levou os chineses a comprarem suas matérias-primas e inundarem o mercado com produtos baratos. O senhor não esperava mais deles?
Lula: Todos os países têm problemas com o poder econômico da China. Nós reconhecemos a China como uma economia de mercado, para que pudesse participar das negociações na Organização Mundial do Comércio. Agora, devemos assegurar que a China cumpra suas obrigações.
Spiegel: A Alemanha perdeu influência política e econômica no Brasil nos últimos anos. A França, Espanha e até mesmo a Holanda estão investindo mais. Como o senhor explica isso?
Lula: Eu entendo que os alemães se voltaram mais para o Leste após a queda do muro. Mas agora eles precisam voltar a prestar mais atenção ao Brasil e à América do Sul. Eles precisam pensar no potencial que esta região terá daqui a 10 ou 15 anos.
Nós planejamos construir três novas usinas hidrelétricas e duas usinas nucleares, assim como um trem de alta velocidade entre Rio e São Paulo. Os espanhóis já estão envolvidos.
Eu gostaria de mostrar à chanceler alemã Angela Merkel mais do que apenas a capital durante sua próxima visita (de 13 a 15 de maio) ao Brasil. Eu gostaria de levá-la à região amazônica, até aos brasileiros de ascendência alemã em Blumenau e a uma visita à Volkswagen.
Spiegel: Após cinco anos no cargo, o senhor continua muito popular. O senhor planeja concorrer novamente?
Lula: Dois mandatos bastam. Caso contrário, a democracia se transforma em ditadura. A mudança faz bem para o país.
Spiegel: Mas então o senhor não acompanhará a final entre Alemanha e Brasil, na Copa do Mundo de 2014, como o anfitrião no Estádio do Maracanã, no Rio!
Lula: Certamente não como presidente, mas estarei lá como torcedor de futebol, o que eu prefiro.
Spiegel: Sr. presidente, muito obrigado pela entrevista.”
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