O jornal francês Le Monde, em texto de Marie Jégo, Corine Lesnes e Anne Pélouas
escrito em Moscou, Washington e Montreal, publicou ontem (li no UOL, em tradução de Jean-Yves de Neufville):
“Nos últimos meses, o Ártico vem sendo o objeto de uma guerra fria de pequena dimensão, na qual as armas utilizadas, por enquanto, não são letais. Este oceano, cujo subsolo esconde supostamente tesouros em forma de hidrocarbonetos e de matérias-primas, atiça as cobiças dos Estados ribeirinhos - Estados Unidos, Canadá, Noruega, Dinamarca (Groenlândia) e Rússia.
As autoridades russas foram as primeiras a manifestarem seu interesse na região, o que elas fizeram de maneira espetacular durante o verão de 2007, conduzindo uma expedição científica cujo ponto alto consistiu em fincar a bandeira nacional no local geográfico exato do Pólo Norte, só que a 4.000 metros no fundo do mar. Uma outra expedição desse tipo está prevista para 2009.
Durante este intervalo, os russos vêm multiplicando as demonstrações marciais, promovendo incursões por meio dos seus bombardeios no espaço aéreo dos países ribeirinhos. Essas manobras ilustram a determinação da Rússia a estender sua soberania sobre 18% do Ártico. A meta que está em jogo é a obtenção dos direitos de exploração sobre os fundos marinhos.
Contudo, a batalha também está sendo travada no terreno científico-diplomático. Com efeito, a Convenção das Nações Unidas sobre o direito do mar (1982) permite que os países que possuem uma fachada marítima contígua ao Ártico possam estender seus direitos para a exploração dos recursos naturais além das 200 milhas marinhas que constituem o limite da sua soberania. Estes países podem pleitear tal direito com a condição de fornecerem a prova científica de que esta extensão constitui o prolongamento natural do planalto continental.
A Rússia deu entrada a um requerimento nesse sentido em 2001. Mas até hoje não apresentou as provas. "O único problema é que elas são difíceis de fornecer", lembra Irina Mikhina, uma jurista que atua na Associação Internacional do Direito Marítimo. Para a Rússia, "trata-se também de uma questão de segurança nacional", acrescenta a jurista. O Conselho de segurança russo, que se reuniu para esta ocasião na base de Nagourskaia, o posto fronteiriço mais próximo do Pólo Norte, se debruçou sobre esta questão durante a sua mais recente sessão, em 12 de setembro.
O Conselho russo se disse alarmado com o recrudescimento das atividades, "inclusive militares", de outros Estados (Estados Unidos, Canadá) nesta região do planeta. A idéia visando a reforçar a presença russa no Ártico recuperou todo o seu vigor com a guerra entre a Rússia e a Geórgia que ocorreu em agosto de 2008. "Nós precisamos estar presentes no Ártico, nem que seja para impedir que a Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] nele instale as suas bases", sublinham oficiais nos corredores dos ministérios em Moscou.
Além do mais, o processo de aquecimento do clima poderia facilitar a exploração da Rota Marítima do Norte, ou seja, o caminho mais curto entre os portos europeus e aqueles do Extremo Oriente e da Sibéria, que vinha sendo negligenciado desde o final dos anos 1990. Já chegou o tempo de fazer desta rota "a encruzilhada de um sistema único de transporte entre os continentes", segundo avalia Nikolai Patruchev, o chefe do Conselho de segurança russo.
Foi dando mostras de circunspeção que os Estados Unidos reagiram às mais recentes manobras russas. Em 2007, as autoridades de Washington haviam manifestado seu ceticismo por ocasião do fincar de bandeira russo, lembrando que iniciativas desta natureza não possuem nenhum valor jurídico. Em 18 de setembro, depois dos comentários do presidente Medvedev, que afirmou a intenção da Rússia de estender seu planalto continental para além da linha das 200 milhas náuticas a partir do seu litoral, o Departamento de Estado americano lembrou que a decisão em relação a esta questão é da alçada da comissão da ONU encarregada de definir a delimitação do planalto continental. Os americanos sublinham que, em maio de 2008, as cinco potências ribeirinhas do Ártico se mostraram unânimes em manifestarem seu respeito pelo quadro implantado pelo Tratado sobre o direito do mar, visando a delimitar os direitos de cada um deles.
Os Estados Unidos assinaram, porém não ratificaram o tratado. Um debate intenso foi realizado entre eleitos conservadores quando George W. Bush pediu ao Senado para ratificá-lo, em maio de 2007. Daqui para frente, o tratado deverá ser submetido à apreciação da Câmara dos Representantes pela próxima administração, uma ratificação que requer a aprovação dos dois terços dos representantes (66 votos).
Os adversários da ratificação temem que os interesses estratégicos americanos sejam ameaçados por uma eventual limitação das operações submarinas de inteligência. Outros se dizem preocupados com a imposição de barreiras em matéria de exploração do subsolo, mas, até mesmo a indústria petroleira e a marinha passaram a adotar uma posição favorável à ratificação.
Enquanto os seus dirigentes se mostram preocupados diante do retorno de pretensões hegemônicas por parte de Moscou, os Estados Unidos avaliam que uma crise pode ser evitada. Uma vez que eles não desejam aparecer na linha de frente desta disputa, eles incentivaram as outras nações ribeirinhas a apresentarem reivindicações perante a Comissão da ONU, de modo a fazer frente aos russos.
"A PONTA DO ICEBERG"
Por sua vez, o governo canadense se apresenta numa posição frágil frente às pretensões da Rússia e dos Estados Unidos. Vale lembrar que o primeiro-ministro Stephen Harper reagiu com vivacidade, em meados de setembro, ao anúncio do presidente Medvedev. "Nós estamos preocupados", disse Harper, "não apenas com as reivindicações dos russos, como também com as incursões que visam a testar o nosso espaço aéreo, e ainda diante de outras indicações que poderiam ser reveladoras de um desejo de tomar iniciativas fora do quadro internacional". Ele também acrescentou, sem fornecer maiores detalhes, que iria tomar "uma série de medidas, inclusive militares, próprias para consolidar a soberania do Canadá na região Norte".
O Canadá tem até o ano de 2013 para apresentar o seu próprio pedido de extensão da sua zona econômica, como já fizeram a Rússia e a Noruega. Para tanto, ele deu início, ainda que com atraso, a um fastidioso trabalho de levantamentos cartográficos do seu planalto continental.
A respeito da soberania do seu país no Ártico, Stephen Harper não se cansa de repetir que, "caso ela não for exercida, ela acabará sendo perdida". Ele reforçou as patrulhas militares, e ainda anunciou a construção de dois portos em águas profundas, além de um navio quebra-gelos polar. No final de agosto, ele anunciou um vasto plano "destinado a repertoriar e a reforçar a defesa dos recursos minerais e energéticos do Norte", uma vez que, segundo ele, as descobertas atuais não passam de "uma ponta do iceberg".
Um dos objetivos das autoridades de Ottawa é de reforçar o controle da navegação no Ártico, o que inclui a passagem pela Rota do Noroeste, de maneira a melhor "proteger da poluição os meios marinhos e costeiros". Um regulamento em fase de preparação obrigaria todos os navios a assinalarem a sua presença para as autoridades canadenses por ocasião da sua passagem dentro da sua zona de 200 milhas. No passado, muitos foram os navios e os submarinos estrangeiros, entre outros, americanos, que passaram por cima do atual regulamento ao transitarem sem autorização pela passagem do Noroeste. Os Estados Unidos a consideram como um estreito internacional, livre de controle, ao passo que o Canadá avalia que ela é parte integrante das suas águas territoriais. Pois é, este guerra fria específica também está sendo travada entre nações aliadas”.
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