terça-feira, 21 de maio de 2013

O DEBATE INTERNACIONAL QUE A IMPRENSA ARGENTINA OMITIU

[No Brasil, também omitiram o debate, como é usual. A nossa situação hoje é semelhante à da Argentina antes da Lei dos Meios]

“Um apaixonante debate na Universidade de Columbia [EUA] sobre a concentração dos meios de comunicação, o acesso à informação e a liberdade de expressão, e seu reflexo distorcido nos maiores jornais argentinos, contou, inclusive com a participação de seus diretores no debate. Stiglitz defendeu uma regulação estatal forte dos meios televisivos, por meio dos quais o cidadão médio se informa, para assegurar a diversidade, essencial para a democracia.

Por Horacio Verbitsky, no jornal argentino “Página/12”

Sob o título “Stiglitz preocupado com as estatísticas”, no “Clarín”, e “Stiglitz advertiu sobre os riscos de não ter estatísticas adequadas”, em “La Nación”, ambos os diários publicaram, na semana passada, um diálogo com jornalistas argentinos realizado em Nova York após a apresentação do Premio Nobel de Economia na conferência sobre a liberdade de imprensa na Faculdade de Jornalismo da Universidade de Columbia.

Joseph Eugene Stiglitz

Joseph Eugene Stiglitz disse a esses jornalistas que “não se pode manejar a economia sem estatísticas corretas”. Em troca, os dois jornais [argentinos] ignoraram o painel que Stiglitz compartilhou com o funcionário do Banco Mundial, Sergio Jellinek, durante o qual manteve interessante diálogo com o secretário de redação do “Clarín” e diretor jornalístico de seu Mestrado de Jornalismo, o filósofo Miguel Wiñazki.

“Clarín” omitiu toda a menção à conferência de Stiglitz, e “La Nación” disse que “defendeu a competição no mercado de meios de comunicação e o acesso à informação, dois elementos cruciais em uma democracia”. A conferência de Stiglitz foi de grande interesse. [Porém] “Clarín” e “La Nación” limitaram suas crônicas às exposições de intenso conteúdo político de seus próprios diretores, Ricardo Kirschbaum e Héctor D’Amico, que não mostraram conhecimento sobre a lei audiovisual.

CONSEQUÊNCIAS DA CONCENTRAÇÃO

Segundo Stiglitz, o papel da imprensa é chamar a atenção sobre os abusos do mercado financeiro contra os cidadãos e acerca da corrupção no setor público, [corrupção] que é igual ou pior no setor privado. Disse que o fornecimento de informação era um bem público, que, quando está disponível, beneficia a todos. Por isso, em países como Noruega e Suécia se considera que, por oferecer um serviço público, os meios devem ter apoio estatal. Pela mesma razão, acrescentou, as consequências da concentração são piores na imprensa que em outros setores, já que afeta “o mercado das ideias, que é fundamental para a democracia”.

Os critérios antimonopólios [no mercado das idéias] devem ser mais estritos, do mesmo modo que ocorre na área financeira. Como a televisão é o principal modo de acesso à informação dos cidadãos que não leem jornais, aí “a concentração pode ser mais perniciosa que em outras áreas”. [Stiglitz ] mencionou o mau exemplo da Itália, onde a concentração televisiva chegou a colocar em dúvida seu caráter democrático. “Para que a imprensa cumpra com seu papel, devem existir regulações competitivas muito fortes”, disse. Para Stiglitz, os Estados Unidos são a mais desigual das sociedades desenvolvidas. Essa desigualdade econômica é tão grande “que não é estranho que se traduza também em desigualdade política, o que se reforça se os meios de comunicação têm alto grau de concentração”.

Representação do monopólio dos meios de comunicação, no caso brasileiro 
Além disso, Stiglitz sustentou que, em muitos países latino-americanos, são especialmente grandes o nível de concentração dos meios e as conexões entre a desigualdade política e econômica, “com o que a imprensa é também um modo de sustentar a desigualdade. A América Latina é a região do mundo com maior nível de desigualdade e a concentração da imprensa desempenha papel importante nesse processo”. Tanto os governos como as empresas tentam limitar o acesso à informação que a imprensa necessita para cumprir com seu papel.

Stiglitz enumerou distintas formas de restrição: os governos que “em todos os países” usam seu controle da informação para negociar a cobertura; as leis antiterroristas; o que ocorreu na Islândia com a crise bancária; as leis de difamação, que podem ser usadas para suprimir a liberdade de expressão e a autocensura, que é a mais difícil de tratar. Exemplificou com a afirmação, que logo se revelou falsa, de que o Iraque possuía armas de destruição em massa, o que foi usado para justificar a guerra. “Era difícil encontrar uma cobertura justa nos Estados Unidos. Era preciso ler a imprensa estrangeira que não recebia as influências oficiais que modelaram a cobertura do ‘The New York Times’”, disse.

DIVERSIDADE E PROPRIEDADE

Jellinek contou que, há algum tempo, o dono do principal diário da República Dominicana, que também possui estações de rádio e televisão, disse que outros meios não faziam falta já que “nós temos programas muito diversos, para mulheres, crianças, de gastronomia”.

A diversidade deve abarcar, também, a propriedade dos meios? – perguntou Jellinek.

- Sim. O risco com a imprensa é que, ainda que se separe a página editorial da de notícias, é fácil que as duas se superponham. Para a democracia, é fundamental a diversidade de perspectivas – respondeu Stiglitz.

Do público, Miguel Wiñazki pediu a palavra e perguntou:

- “Dado seu contato com o governo argentino e com a presidenta, qual é sua opinião sobre o conflito com a imprensa argentina e seus efeitos sobre a economia?

- Não tenho relação formal, mas viajo de tempos em tempos para a Argentina. É sempre um país interessante, com uma sociedade civil muito ativa, gente que discute muito e o governo que sempre impulsiona novas iniciativas. Não conheço os detalhes do debate, mas pelo que li, o tema é a concentração da propriedade dos meios de comunicação, segundo as linhas que descrevi em minha exposição – respondeu sorridente.

Carlos Winograd também fez uma pergunta. Ele já havia participado do painel anterior, sobre a Argentina, junto com o diretor jornalístico do “Clarín”, Ricardo Kirschbauem, e o secretário geral de redação do “La Nación”, Héctor D’Amico, e com o diretor do “CELS”, Damián Loreti. O moderador desse painel, o jornalista John Dinges, professor de Columbia, apresentou Winograd como pesquisador independente da Faculdade de Economia de Paris e como ex-secretário de “defesa da competição” (ele ocupou esse cargo no último governo radical, do presidente Fernando de la Rúa). O que não disse, porque ninguém o informou, é que, em 2009, Winograd foi contratado por “Cablevisión” para argumentar que essa empresa do “Grupo Clarín” havia cumprido com folgas as metas de investimentos e obras fixadas pela “Comissão Nacional de Defesa da Competição” como condição para autorizar que se fundisse com “Multicanal”, segundo informou o “La Nación” em 14 de dezembro de 2009.

Esse dado essencial tampouco foi mencionado nas crônicas da conferência que publicaram os dois diários representados. “Clarín” mencionou Winograd como membro da “Paris School of Economics” e o “La Nación” como ex-secretário de Defesa da Competição. Consultado para esta nota, Dinges disse que agregaram Winograd ao painel no último momento e sem informá-lo do contato [de Winograd] com o “grupo Clarín”. Ou seja, atuaram nos Estados Unidos tal como fazem na Argentina.

CRIAR A COMPETIÇÃO

O conteúdo da intervenção de Winogard, antes de formular sua pergunta a Stiglitz, coincide com os argumentos do “grupo Clarín” para se opor à regulação estabelecida na lei audiovisual. No painel anterior, ele disse que o “Grupo Clarín” era o menor participante em uma competição global de empresas multimídia, como “Time Warner”, “Disney”, “Telefonica”, “News Corporation”, “O Globo” e “Televisa” e que a regulação prevista pela lei argentina era anacrônica porque não contemplava as inovações tecnológicas; era irracional, já que as concessões de TV a cabo não são necessárias porque não ocupam espectro; excessiva, porque sua regulação se superpõe a da lei de defesa da competição; e inconsistente no aspecto econômico, ao limitar a penetração a 35% da audiência, índice que julgou inspirado nos 30% dos Estados Unidos. “Não inventamos a toda, mas tampouco devemos copiar o que é equivocado, mesmo que venha do Norte”, afirmou.

A seu juízo, a regulação tem que ser consistente com o avanço da tecnologia e prover mais bens a menor custo para o consumidor. Em sua pergunta a Stiglitz, Winograd voltou a mencionar as economias de escala, o tamanho dos países, a propriedade cruzada e o impacto positivo da sinergia entre meios e expressou o temor de que as regras gerais não pudessem se aplicar a todos os casos. Para assegurar a competição no mercado das ideias, os meios de comunicação menores precisarão de apoio público, mas os países menos desenvolvidos, com instituições débeis, tenderão à captura política do apoio público e, ao invés de promover a diversidade, pode ocorrer o contrário, com mais vozes, mas parecidas, disse.

Stiglitz respondeu que os benefícios da diversidade superavam os seus custos e que isso deveria ser incentivado na televisão. “Para o funcionamento da democracia, a diversidade de perspectivas é essencial, não me preocupam pequenos aumentos de custos. A resposta à sua preocupação pela dificuldade de manejar programas de apoio em países subdesenvolvidos com instituições débeis, é fortalecer as instituições”. Stiglitz também disse que os mercados podem não ser livres por outras restrições, que não estatais, é que é preciso governo para que os mercados sejam realmente livres. “Há países onde os mercados são chamados de ‘livres’, mas não agem como tal em distintas áreas, em especial nos meios de comunicação. Por isso, defendo que é preciso uma forte intervenção estatal, tanto regulatória como na outorga de licenças, inclusive criando competição de forma proativa onde ela não existe”.

Para Stiglitz, regulações como as dos Estados Unidos são justificadas. “Prefiro que o governo tome uma posição forte, ainda que os meios não gostem. O melhor é que o proprietário de um jornal poderoso não possa obter uma licença de televisão, não por favoritismo nem discriminação, mas sim porque essas são as regras para assegurar a diversidade. Isso ocorre em muitos países. Onde os governos não têm uma posição forte, os meios podem perder credibilidade por não cumprir seu papel crítico para conseguir uma concessão de televisão”.

O PRESENTE AUSENTE

Em sua apresentação da mesa, Dinges lamentou os ataques oficiais aos meios e disse que, para defender-se, praticam um jornalismo de trincheira, que não é o melhor para a convivência democrática. Esclareceu que a situação atual era “incomparável com a vivida durante a ditadura militar, quando o controle de imprensa era feito pela via da ameaça e a realidade era a do cárcere e da morte. Agora, há um sistema constitucional”. Também explicou que organizações de defesa da liberdade de expressão destacaram como um passo positivo a descriminalização dos delitos de calúnias e injúrias, promulgada em 2009. O atual conflito, disse ainda, gira em torno da regulação dos meios audiovisuais e precisou que as críticas não se dirigem somente à cobertura de jornalistas e aos conteúdos, mas sim aos proprietários e acionistas dos meios privados.

“Clarín“e “La Nación” também foram econômicos [nas suas notícias] com a intervenção do único dos quatro painelistas sem vínculos de nenhum tipo com o “grupo Clarín”: Damián Loreti, doutor em Ciências da Informação da Universidade Complutense de Madri e um dos redatores da nova lei do audiovisual, como integrante da “Coalizão por uma Radiodifusão Democrática”. Ao “Clarín” só disse que “saiu em defesa da lei de meios afirmando que, no dia de sua aprovação, havia 40 mil pessoas na frente do Senado apoiando a nova lei dizendo que queriam mais liberdade de expressão, mais meios”. Mas [“Clarín“e “La Nación”] dedicaram mais espaço à resposta de Kirschbaum, que desqualificou a intenção política do governo e também as pessoas que apoiaram a lei, porque queriam “punir os meios afetados por ela”. “La Nación” assinalou apenas que, em uma exposição de cunho técnico, Loreti disse que “Repórteres sem Fronteiras” apoiou a nova lei, que ela foi aprovada com apoio de vários partidos e não só pelo governo, e que ela segue princípios recomendados pela UNESCO”.

Foi [dito] muito mais do que isso. Obrigado a dividir seu tempo para responder aos três painelistas que defenderam a posição do “Grupo Clarín”, Loreti começou por precisar que não é correto falar de lei de meios, já que ela não contempla as publicações gráficas. Kirschbaum exaltou, em sua intervenção, as manifestações opositoras na ruas, onde segundo ele se defendeu a liberdade de expressão. Wiñazki se queixou da coação que o governo estaria exercendo sobre os jornalistas. Loreti lembrou que foi durante essas marchas opositoras que houve jornalistas atingidos e maltratados nas ruas e que seis jornalistas foram denunciados ante a justiça penal por suas informações e opiniões, o que o “Grupo Clarín” qualificou como ‘instigação a cometer delitos’ e ‘coação agravada’. Reconheceu que a lei audiovisual não prevê uma perspectiva tecnológica de integração e convergência, mas lembrou que o projeto original a contemplava e foi suprimida pelo amplo rechaço de forças políticas e organizações setoriais.

Segundo Loreti, a superposição de regulações é maior nos EUA. Sobre o pluralismo e a diversidade, [disse]que eles não podem ser medidos só em termos de competição, como afirmou o “Relatório de Liberdade de Expressão” da “Comissão Interamericana de Direitos Humanos”, em seu informe de 2004: o Estado tem a obrigação de garantir por meio de lei a pluralidade na propriedade dos meios, para evitar que monopólios e oligopólios conspirem contra a democracia ao restringir a pluralidade e a diversidade que asseguram o pleno exercício do direito da liberdade de informação dos cidadãos”. Para isso, diz o relatório, “o direito de competição em muitas ocasiões pode resultar insuficiente, particularmente quanto à definição das frequências radioelétricas. Não se impede, então, a existência de um marco regulatório antimonopólio que inclua normas que garantam a pluralidade atendendo a especial natureza da liberdade de expressão”.

Também a UNESCO, em seus “Indicadores de pluralismo e diversidade”, de 2008, diz que a questão dos monopólios e oligopólios que afetam a democracia não se reduz à defesa da competição. Se a liberdade de expressão se vê comprometida, diz o documento, “os Estados devem seguir quatro regras: rechaçar pedidos de licença de quem já tem outras; rechaçar pedidos de fusão de quem tem mais de uma licença; adotar regras de desinvestimento (a palavra “desinvestimento” não está na lei argentina, mas sim nos indicadores da UNESCO); e punir em caso de descumprimento”, lembrou Loreti.

D’Amico fez uma comparação irônica entre o “Futebol para Todos” (transmitido pela TV pública argentina) e o “Superbowl” do futebol norte-americano, e disse que “os meios têm a obrigação de ganhar dinheiro. A única maneira de ser independente é ganhar dinheiro”. Em troca, Loreti destacou o processo de desconcentração de conteúdos de interesse relevante disposto na lei argentina. “[Antes], para ver a principal partida de futebol do domingo, era precisa pagar três vezes: a assinatura do cabo, o serviço do decodificador e o pacote premium”.

FONTE: escrito por Horacio Verbitsky, jornalista, no jornal argentino “Página/12”. Transcrito no
portal “Vermelho” com tradução de Marco Aurélio Weissheimer  (http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=213573&id_secao=6). [Imagens do Google e trechos entre colchetes adicionados por este blog ‘democracia&política’].

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