quinta-feira, 23 de maio de 2013

ÍNTEGRA DA MAIS AMPLA E VALIOSA ENTREVISTA COM LULA SOBRE O SEU GOVERNO


Emir Sader e Lula


“O NECESSÁRIO, O POSSÍVEL E O IMPOSSÍVEL”

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva faz um balanço dos 10 anos de administração federal liderada pelo PT nesta entrevista concedida a Emir Sader e Pablo Gentili, disponibilizada aqui pela “Carta Maior” e que abre o livro “10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma” (Editora Boitempo, 2013).

Leia a íntegra:

Por Emir Sader e Pablo Gentili


"Um livro sobre os 10 anos dos governos que transformaram profundamente o Brasil não poderia deixar de dar a palavra a seu principal protagonista, aquele sem o qual esse processo não teria sido possível e, menos ainda, ter logrado tamanho êxito. Luiz Inácio Lula da Silva é um político prático, intuitivo, que busca a resolução concreta dos problemas. Foi em boa medida graças a essa capacidade que se desenvolveu no país um complexo processo de articulação política que tornou viável a prioridade do social e a promoção de políticas igualitárias, a soberania externa e a recuperação do papel ativo do Estado na construção dos direitos cidadãos.

Esses avanços são analisados neste livro e interpretados por Lula na presente entrevista, realizada na sede do “Instituto Lula”, em São Paulo, em 14 de fevereiro de 2013. Traz contribuições para compreender uma década fundamental na história brasileira. Ajuda-nos a interpretar, pela visão de quem foi e continuará sendo uma das figuras mais destacadas da política mundial no século XXI, conjuntura de excepcional riqueza na luta pela construção de uma nação mais democrática e justa.

Que dados terá a sua disposição um historiador que pretenda analisar o governo Lula no futuro, além dos publicados pela mídia tradicional?

Lula - Quando faltava um ano, um ano e pouco para acabar o meu mandato, decidi que iria registrar em cartório tudo que o meu governo fez. No dia 15 de dezembro [de 2010], a Miriam Belchior, que coordenou esse processo, registrou em cartório todas as atividades do Ministério do Planejamento, da Economia, da Pesca, tudo. Por quê? Porque, eu queria contar um pouco a história deste país. Eu aí falei aos ministros: “Vão ter que registrar em cartório, porque, se vocês mentirem, não será para mim. Vocês estarão cometendo falsidade ideológica”. São seis volumes. Estão em letrinhas peque- nas. Está tudo muito bem-feitinho, tem a assinatura de todo mundo. Se você quer saber o que nós fizemos para combater a corrupção, está aí; o que nós fizemos na área da Educação, está aí; o que nós fizemos na área do transporte, está aí [...]. Dia 15 de dezembro 2012, nós fizemos um ato público (para lançar o balanço de governo). Está tudo na internet. Antes, a gente não conseguia encontrar a agenda do Sarney, do Collor, do Fernando Henrique Cardoso, do Itamar. Não se sabia o que eles faziam. Nós passamos a registrar a agenda. Eu lembro que um dia uma CPI mandou um ofício para o Gilberto Carvalho perguntando se eu tinha me encontrado com o presidente de um banco tal. Aí eu disse ao Gilberto: “Fala para eles procurarem na internet. Está lá minha agenda”. A gente passou a tornar pública a atividade do governo. Por que tinha que ser segredo de Estado? E eu falei: “Então nós vamos registrar, para ficar na história”. Quando uma universidade quiser pesquisar, vai saber como foi tratado o assunto. Foi um trabalho de cão fazer isso: exigir que os ministros cumprissem, pois há sempre uns mais organizados que outros. A exigência de registrar em cartório era para eles serem verdadeiros com eles mesmos.

Qual o balanço que o senhor faz dos anos de governo do PT e aliados?

Esses anos, se não foram os melhores, fazem parte do melhor período que este país viveu em muitos e muitos anos. Se formos analisar as carências que ainda existem, as necessidades vitais de um povo na maioria das vezes esquecido pelos governantes, vamos perceber que ainda falta muito a fazer para garantir a esse povo a total conquista da cidadania. Mas, se analisarmos o que foi feito, vamos perceber que outros países não conseguiram, em trinta anos, fazer o que nós conseguimos fazer em dez anos. Quebramos tabus e conceitos preestabelecidos por alguns economistas, por alguns sociólogos, por alguns historiadores. Algumas verdades foram por água abaixo. Primeiro, provamos que era plenamente possível crescer distribuindo renda, que não era preciso esperar crescer para distribuir. Segundo, provamos que era possível aumentar salário sem inflação. Nos últimos 10 anos, os trabalhadores organizados tiveram aumento real: [...] o salário-mínimo aumentou quase 74% e a inflação esteve controlada. Terceiro, durante essa década, aumentamos o nosso comércio exterior e o nosso mercado interno sem que isso resultasse em conflito. Diziam, antes, que não era possível crescer concomitantemente mercado externo e mercado interno. Esses foram alguns tabus que nós quebramos. E, ao mesmo tempo, fizemos uma coisa que eu considero extremamente importante: provamos que pouco dinheiro na mão de muitos é distribuição de renda e que muito dinheiro na mão de poucos é concentração de renda.

A quebra desses tabus foi percebida pela sociedade?

Muita gente da classe média e rica acabou compreendendo. Aqueles que ironizavam o “Programa Bolsa Família”, [...] o aumento do crédito para a agricultura familiar, [...] o “programa Luz pra todos” e todas as outras políticas sociais, aqueles que ironizavam dizendo que era “esmola”, que era “assistencialismo”, perceberam que foram milhões de pessoas, cada uma com um pouquinho de dinheiro na mão, que começaram a dar estabilidade à economia brasileira, fazendo com que ela crescesse, gerasse mais emprego e renda. Essa é uma lógica que todo mundo deveria entender.

Existe algum lugar no mundo em que as pessoas vão produzir se não tiver consumo? Se isso acontecer, é porque a economia voltou-se para a exportação [e, nessa lógica,] o povo do país que se dane. Você pode fazer uma grande política de produção para exportação, mas nunca conseguirá, com isso, governar para mais de 35% da população, inclusive porque as fábricas sofisticadas geram menos empregos. Hoje, os postos de trabalho são gerados no setor de serviços e, mesmo assim, menos do que antes.

Precisamos ter em mente o seguinte: que país do mundo vai crescer se o seu povo não tiver poder de compra, se o povo não puder comprar aquilo que é produzido dentro do país? Do ponto de vista econômico, eu acho que marcamos uma nova trajetória na vida brasileira. A partir daí, foram dadas as condições para que as taxas de juros fossem colocadas em um patamar aceitável pela sociedade.

O senhor considera que cumpriu as promessas que fez ao povo brasileiro nas suas duas campanhas eleitorais?

No fim do primeiro mandato, pedi à Clara Ant para fazer um levantamento do programa de governo. Queria saber se o tínhamos cumprido. Nós mais do que cumprimos! E, no segundo mandato, nós mais do que cumprimos aquilo que já tínhamos cumprido no primeiro mandato.

Isso é importante: você faz um programa, estabelece metas e cumpre as metas. E as pessoas têm conhecimento disso. E qual o legado de tudo isso? É que o povo sentiu que participou do governo. As pessoas falavam: “Eu sou igual a esse cara” ou então “Esse cara está junto comigo”. E também pensam o mesmo de Dilma. [O brasileiro] começa a se sentir parte do projeto: ele sabe, ele contribui, ele dá a sua opinião, ele é contra, ele é a favor... As conferências nacionais foram a consagração disso. A gente não tinha orçamento participativo, não era possível fazer orçamento participativo na União. Então, nós resolvermos criar condições para o povo participar. Promovemos conferências municipais, estaduais e nacionais. Foi a forma mais fantástica de um presidente da República ouvir o que o povo tinha a dizer. Eu fui a 95% das convenções nacionais. Ficava duas ou três horas sentado no plenário ouvindo o povo falar mal, [...] contestar, [...] dizer que não estava bom ou estava bom e saía dali com um documento que servia de parâmetro para melhorar as coisas que estávamos fazendo.

Qual foi o grande legado dos 10 anos de seu governo?

Nesses dez anos, recuperamos o orgulho pessoal, o orgulho próprio, a autoestima. Conquistamos coisas que antes pareciam impossíveis. Passamos a ser mais respeitados no mundo: as pessoas não olham para o Brasil, hoje, e veem apenas criança de rua, Pelé e Carnaval. As pessoas sabem que este país tem governo, que este país tem política, que este país passou a ser tratado até às vezes como referência para muitas coisas que foram decididas no mundo.

Esse é um legado que vai marcar esses dez anos. E eu tenho convicção de que, com a continuidade da companheira Dilma no governo, isso vai ser definitivamente consagrado.

Parto do pressuposto de que chegaremos a 2016 como a quinta economia do mundo. Mas o mais importante é ter a clareza de que o objetivo maior não é o Brasil ser a quinta, ser a quarta economia do mundo. É importante que se melhore dia a dia a qualidade de vida do povo brasileiro, seja do ponto de vista dos salários, seja do ponto de vista da habitação, do ponto de vista do saneamento básico, do ponto de vista da qualidade de vida.

Esse foi o grande legado desses dez anos: nós nos descobrirmos para nós mesmos. Nós não somos mais tratados como cidadãos de segunda classe. Nós temos o direito hoje de andar de avião, de entrar num shopping e comprar coisas que todo mundo sempre quis comprar. E recuperamos o prazer, o gosto de ser brasileiro, o gosto de amar o nosso país.

Do que o senhor mais se orgulha no seu governo?

Eu sinto um orgulho – e nesse caso é um orgulho muito pessoal, até um pouco de vaidade –, que é o de passar para a história como o único presidente sem diploma universitário, mas o que criou mais universidades neste país. Esse número eu dou sempre, que é um número muito exitoso e que vai ser muito difícil alguém superar: 14 universidades federais novas, 126 extensões universitárias, 214 escolas técnicas. Eu não estou contando esses dois anos agora porque eu não sei quantas foram feitas agora.

Ontem, eu recebi uma carta de um cara, motorista de ônibus, que agradece não apenas a formação do filho dele, em Biomedicina, mas também sua formação em Direito. Os dois pelo PROUNI. Essas coisas aconteceram porque, na sua sabedoria, o povo conseguiu, depois de tanto medo, depois de tanto preconceito, testar um deles para governar este país.

Quando começou o governo, o senhor devia ter uma ideia do que ele seria. O que mudou daquela ideia inicial, o que se realizou e o que não se realizou, e por quê?

Tínhamos um programa e parecia que ele não estava andando. Eu lembro que o ministro Luiz Furlan, cada vez que tinha audiência, dizia: “Já estamos no governo há tantos dias, faltam só tantos dias para acabar e nós precisamos definir o que nós queremos que tenha acontecido no final do mandato. qual é a fotografia que nós queremos”. E eu falava: “Furlan, a fotografia está sendo tirada”. Não é possível ficar com pressa de obter resultados. Nós temos que provar, no final de um mandato, se nós fomos capazes de fazer aquilo que nos propusemos a fazer. Se a gente for trabalhar em função das manchetes dos jornais, a gente parece que faz tudo e termina não fazendo nada.

Então é o seguinte: eu plantei um pé de jabuticaba. Se esse pé nascer saudável, vai ter sempre alguém dizendo: “Mas, Lula, não está dando jabuticaba, está demorando”. Se for cortar o pé e plantar outra coisa, eu nunca vou ter jabuticaba. Então, eu tenho que acreditar que, se eu adubar corretamente, aquele pé vai dar jabuticaba de qualidade. E eu citava esses exemplos no governo... Soja tem que esperar 120 dias, o feijão tem que esperar 90 dias. Não adianta ficar repisando, “faz uma semana que eu plantei e não nasceu”. Tem que ter paciência. Eu acho que eu fui o presidente que mais pronunciei a palavra “paciência”, “paciência”... Senão você fica louco.

Tem gente na política que levanta de manhã, lê o jornal e quer dar resposta ao jornal. E daí não faz outra coisa. Eu não fui eleito para ficar o tempo todo dando resposta a jornal. Eu fui eleito para governar um país. E isso me deu tranquilidade suficiente para ver que o programa de governo iria ser cumprido.

Quando o senhor perdeu a paciência?

Obviamente que nós tivemos problemas no começo. Você acha que é simples um metalúrgico sentar naquela cadeira na qual sentaram tantas outras personalidades, que via pela televisão, que achava que era mais importante do que eu... E o mesmo em relação a dormir no quarto em que dormiu tanta gente importante ou que, pelo menos à voz da opinião pública, são “importantes”. E eu ficava pensando: “Será que é verdade que eu estou aqui?”. No começo, tinha muita ansiedade. “Será que nós vamos dar conta de fazer isso? Será que vai ser possível?”, eu me perguntava. Eu acho que nós fizemos. Com erro e com muita tensão, mas fizemos.

Até as coisas mais simples geravam tensão. Quando eu propus criar o “Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social”, qual foi a reação do Congresso? [A interpretação] era de que nós queríamos criar um instrumento [de decisão] por fora do Congresso. Era uma opinião, inclusive, de muitos dos nossos [parlamentares]. Existia um processo de desconfiança muito grande, mas eu sabia que, para que o governo desse certo, eu precisava conquistar a confiança dos trabalhadores, mas também conquistar a confiança dos outros segmentos da sociedade. E isso exigia muita conversa, muito diálogo. E foi isso que nós fizemos.

Tivemos tropeços, é lógico. Muitos tropeços. O ano de 2005 foi muito complicado. Quando saiu a denúncia, foi uma situação muito delicada. Se não tivéssemos cuidado, não iríamos discutir mais nada do futuro, só aquilo que a imprensa queria que a gente discutisse. Um dia, eu cheguei em casa e disse: “Marisa, a partir de hoje, se a gente quiser governar este país, a gente não vai ver televisão, a gente não vai ver revista, a gente não vai ler jornal”. Eu passei a ter meia hora de conversa por dia com a assessoria de imprensa, para ver qual era o noticiário [...], mas eu não aceitava levantar de manhã, ligar a televisão e já ficar contaminado. Então, eu acho que isso foi um dado muito importante.

Eu tinha uma equipe e criamos uma sala de situação, da qual participavam Dilma, Ciro [Gomes], Gilberto [Carvalho] e Márcio [Thomaz Bastos]. E era muito engraçado: eu chegava ao Palácio e eles estavam todos nervosos. E eu estava tranquilo e falava: “Vocês estão vendo? Vocês leem jornal... Vocês estão nervosos por quê?”.

Qual mandato foi mais difícil para o cumprimento das metas do governo, o primeiro ou o segundo?

O resultado foi auspicioso do ponto de vista da execução das coisas que nós queríamos fazer. Sabe, a imprensa queria que eu gerasse mais empregos em quatro anos do que os outros tinham gerado em 20 anos. Nós nunca falamos em criar 10 milhões de empregos. No nosso programa de governo, estava escrito o seguinte: “O Brasil precisa criar 10 milhões de empregos”. Nunca falei que era eu que iria criar. O Brasil precisava disso para resolver o problema do desemprego. Pois bem, nós criamos, até agora, em 10 anos, quase 18 milhões de empregos formais, com carteira assinada.

Nós tomamos medidas erradas no começo. Eu lembro que chegamos a anunciar, na campanha ainda, o programa do primeiro emprego. Era uma ideia de o governo pagar para o empresário dar emprego. Concluímos que essas coisas fictícias não funcionam. Pode ficar muito bom no discurso, mas o patrão só vai contratar um trabalhador se precisar dele. Nem o Estado contrata se não precisa, por que o patrão, um empresário privado, iria contratar? Aí nós fizemos a lei, aprovamos a lei, mas percebemos que não iria dar certo aquilo. Então, o que podia dar certo? A teoria original: “Dê um pouco de recurso às camadas mais pobres da população que as coisas começam a acontecer”.

Foi isso. E aí o nosso programa foi cumprido, e as coisas que pareciam difíceis ficaram fáceis. Deus queira que os outros repitam, mas sinceramente o que nós fizemos de 2007 a 2010, ou seja, do dia 1º de janeiro de 2007 ao dia 31 de dezembro de 2010, é muito difícil de repetir. Isso porque a gente vinha com o aprendizado do primeiro mandato, todo mundo estava afiado. A Dilma tinha tomado conta da Casa Civil com muita competência, e com o PAC as coisas começaram a acontecer. Era um PAC para a Educação, um PAC para Ciência e tecnologia... As coisas começaram a fluir com uma facilidade enorme. E ficou tudo mais fácil, embora os nossos companheiros da mídia ainda continuassem a nos tratar como inimigos.

Como o senhor avalia suas relações com a mídia?

Às vezes, fico triste. A impressão que eu tenho é que o ódio que [os donos da mídia] têm do PT e a raiva que eles têm de mim se devem às coisas boas que nós fazemos, não às coisas ruins.

Talvez eles tenham raiva porque, durante o meu mandato, eu não fui jantar com nenhum deles, não fui à casa deles, não visitei nenhuma redação. Não era esse o papel de um presidente. Não só não fui jantar com eles como não fui jantar com ninguém. Não fui a casamento, não fui a aniversário, não fui a batizado. Nem em aniversário de companheiros meus fui. Recebi dezenas de convites de casamentos e não fui a nenhum, porque eu falava o seguinte: “O presidente não vai se expor”. Hoje, com o celular, ninguém pede licença para mais nada – para fotografar, para gravar.

Existe uma hipocrisia muito forte em relação à política. A classe política tem de reagir para ganhar respeito. Todo mundo pode beber, o político não pode. Todo mundo pode contar piada, o político não pode. O político tem que ser o ser perfeito que não existe, o ser perfeito que nem o cara que critica é. E nós aceitamos isso. Eu tenho dito nos meus debates, sobretudo para a juventude: “Olha, o político perfeito que vocês querem não está dentro de mim. Está dentro de vocês. Então, levantem e vão fazer política. Vão ser candidatos, vão organizar um partido”.

Aquelas três promessas do meu discurso de posse – “primeiro, eu vou fazer o necessário, depois eu vou fazer o possível e, quando menos imaginar, estarei fazendo o impossível” – deram certo. E a coisa sagrada de tudo isso: não ter medo de conversar com o povo. Quando você tem 92% de aprovação nas pesquisas de opinião pública, não precisa conversar com o povo. Você tem que conversar com o povo quando a porca está entortando o rabo, quando está sendo acusado, achincalhado. Na hora que você conversa com o povo, e que você fala olhando no olho das pessoas, elas sabem distinguir o que é mentira e o que é a verdade e quem está com quem nessa história.

Por que seu governo provocou tanta reação da elite e da mídia? A reação das oposições aos governos do PT não é desproporcional, tendo em vista os resultados que foram apresentados?

Em 1979, eu era possivelmente a única unanimidade nacional no movimento sindical, quando surgiu a bandeira de luta pela liberdade de organização política. E eu lembro que, pela primeira vez num comício lá em São Bernardo do Campo, num comício com o PMDB, eu falei na criação do Partido dos Trabalhadores. Mas, para as pessoas que estavam em cima do palanque, a “liberdade política” não era para criar outros partidos. Era para consagrar o PMDB, o partido em que todos nós, um dia, estivemos juntos contra o regime militar. E quando nós nascemos, o que diziam de nós? “Não é possível ter um partido com as características do PT, um partido criado por trabalhadores, dirigido por trabalhadores. Isso não é real, isso não está escrito em nenhum lugar do mundo. Como é que vão agora esses metalúrgicos aqui do ABC, esses bancários, esses químicos, criar um partido?” E nós criamos o partido. Depois, eles achavam que nós não passaríamos de uma coisa pequenininha, bonita e radical. E nós não nascemos para sermos bonitos, nem radicais. Nós nascemos para ganhar o poder.

Mas vocês nasceram radicais...

O PT era muito rígido, e foi essa rigidez que lhe permitiu chegar aonde chegou. Só que, quando um partido cresce muito, entra gente de todas as espécies. Ou seja, quando você define que vai criar um partido democrático e de massa, pode entrar no partido um cordeiro e pode entrar uma onça, mas o partido chega ao poder.

Então, a nossa chegada ao poder foi vista por eles não como uma alternância de poder benéfica à democracia, não como uma coisa normal: houve uma disputa, ganhou quem ganhou, leva quem ganhou, governa quem ganhou e fim de papo. Não é isso? Eles não viram assim. Quer dizer, eu era um indesejado que cheguei lá. Sabe aquele cara que é convidado para uma festa, e o anfitrião nem tinha convidado direito. Fala assim: “Se você quiser, passa lá”. E você passa e o cara fala: “Esse cara acreditou?”. Então, nós passamos na festa, e o que é mais grave, acertamos.

E depois, tentaram usar o episódio do “mensalão” para acabar com o PT e, obviamente, acabar com o meu governo. Na época, tinha gente que dizia: “O PT morreu, o PT acabou”. Passaram-se seis anos e quem acabou foram eles. O DEM nem sei se existe mais. O PSDB está tentando ressuscitar o jovem Fernando Henrique Cardoso porque não criou lideranças, não promoveu lideranças. Isso deve aumentar a bronca que eles têm da gente – que, aliás, não é recíproca.

O senhor não tem raiva da oposição?

Eu não tenho raiva deles e não guardo mágoas. O que eu guardo é o seguinte: eles nunca ganharam tanto dinheiro na vida como ganharam no meu governo. Nem as emissoras de televisão, que estavam quase todas quebradas; os jornais, quase todos quebrados quando assumi o governo. As empresas e os bancos também nunca ganharam tanto, mas os trabalhadores também ganharam. Agora, obviamente que eu tenho clareza que o trabalhador só pode ganhar se a empresa for bem. Eu não conheço, na história da humanidade, um momento em que a empresa vai mal e que os trabalhadores conseguem conquistar alguma coisa a não ser o desemprego.

Por que isso não se traduz num relato favorável aos governos Lula e Dilma pela mídia?

Este país está dando certo, mas não se vê isso na imprensa brasileira. É inacreditável. Uma vez o Mário Soares veio ao Brasil fazer uma entrevista comigo. E ele chegou aqui com o “Le Monde”, com “Der Spiegel”, com o “Financial Times” e mais várias outras revistas e jornais internacionais e falou: “Lula, eu estou enlouquecido. Eu venho de um continente em que todas as matérias só falam bem do Brasil, enaltecem o Brasil. quando eu chego ao Brasil, eu leio a imprensa brasileira e ela diz que o Brasil acabou, nada dá certo neste país”. Até hoje é assim. Se você quiser se informar corretamente, você tem um ou outro colunista e um jornal de economia, que eu não vou citar o nome, que têm coisas razoáveis. Das revistas, sobra a “Carta Capital” para você ler alguma coisa interessante. E o restante é a apologia do fim do mundo.

Existe um projeto político por trás desse comportamento da mídia?

Olha, mesmo que nós não tivéssemos competência – e temos muita, e a Dilma tem bastante – este país só pode dar certo, porque é um país que tem 360 milhões de hectares de reserva florestal; um país que tem 12% da água doce do mundo; um país que tem oito mil quilômetros de costa marítima; um país que tem o pré-sal; um país que tem esse povo ávido por melhorar de vida, não tem por que dar errado. É só o governo estimular. É só o governo dar oportunidade para essa gente e essa gente cresce.

Como nunca fizeram isso antes, eles ficam muito nervosos, muito irritados, e aí eles fazem o papel do partido político, porque os partidos nos quais eles acreditavam estão quase exauridos. Pega uma pesquisa para você ver a diferença do PT e dos outros. Eu fico imaginando o ódio que ficaram de mim depois da apuração aqui de São Paulo, porque todos eles estavam preparados para dizer: “Lula derrotado”. E, quando o Haddad ganhou, eles não sabiam o que falar.

Uma parte da mídia passou a querer substituir os partidos políticos. Ou seja, o debate que deveria ser feito no Parlamento, entre os partidos, e pela sociedade, está sendo monopolizado pela mídia. Está sendo feito somente pelas redações e, dentro delas, por poucos colunistas, todos eles partidários que tentam fingir que não são políticos, que são imparciais. Isso é ruim, é muito ruim.

A negação da política pela imprensa é um ato político?

Tentar negar a política é um desastre, e esse é um erro que pode ser cometido tanto pela direita quanto pela esquerda. Tentar negar a política não deu certo em nenhum lugar do mundo. O que vem depois é pior. Feliz da nação que tem como interlocutores instituições fortes, sejam elas partidos, sindicatos, igrejas ou movimentos sociais. Quanto mais fortes as instituições e os movimentos sociais, mais tranquilidade de que a democracia estará garantida. E é isso que eles não compreendem.

Um governo do PT teria as mesmas características, se o senhor tivesse vencido as eleições anteriores?

Não! Quando eu agradeço a Deus por não ter ganhado em 1989 e ficar 12 anos na espera, não é porque eu gosto de perder. Nunca vi ninguém agradecer a Deus porque perde. É porque, possivelmente, esses 12 anos de espera tenham sido o tempo necessário para o aprendizado do PT, para que o partido exercesse a sua competência, adquirisse experiência na administração pública. Nós ganhamos prefeituras importantes e governos importantes. Quando cheguei ao governo, tinha uma base do PT mais calejada. Tinha aliados mais calejados.

Mas o senhor resistiu a se candidatar depois da segunda derrota...

De fato, eu relutava muito à terceira candidatura, em 1998, e à quarta candidatura, em 2002, se fosse para fazer a mesma coisa. Eu já tinha obtido três vezes 30% dos votos no primeiro turno, tinha ido três vezes ao segundo turno e todas às vezes eu fui o segundo colocado. Em todas as eleições presidenciais, de 1989, 1994 e 1998, eu fui candidato. Então, quando eu fui disputar a quarta eleição, eu falei: “não posso fazer a mesma coisa. nós temos que fazer alguma coisa. temos que dar um sinal diferente para a sociedade”.

Aí aconteceu uma coisa que foi o dedo de Deus, viu? Vocês não acreditam em Deus, mas eu acredito muito. Pois bem, tinha uma festa de cinquenta anos de vida empresarial do José Alencar em Minas Gerais. Eu tinha sido convidado e não queria ir. O José Dirceu era o presidente e eu era o presidente de honra do PT. Falei: “Eu não vou, o que eu vou fazer na festa do José Alencar? O que eu vou fazer lá? não tenho nada a ver com o José Alencar.” O José Dirceu, então, disse: “Vamos lá, porque ele é um parceirão, ele é senador, vamos lá”. Acabei concordando.

Cheguei lá e estavam presentes vários governadores, ministros, muitos senadores. Aí veio o assessor do José Alencar e pediu que eu falasse, mas eu não quis. “quem tem que falar é o José Dirceu, que é o presidente do partido. Eu não vou falar.” E fiquei lá. Aí discursou muita gente, e por último o Zé Alencar. Ele contou toda a história dele e, quando ele terminou de falar, eu falei: “Zé, acabei de encontrar o meu vice. É esse cara aqui”.

O senhor não o conhecia até então?

Eu não o conhecia, mas pensei: “é desse cara que eu preciso”. Daí, na semana seguinte, ele foi derrotado na disputa pela Presidência do Senado. Ele só teve um voto, o dele próprio. Então, fui a Brasília conversar com ele. Conversei com ele e acertamos que ele seria meu vice, e para isso teria que sair do PMDB. Ele topou sair do PMDB.

Quando fizemos a festa do lançamento da candidatura no Anhembi, um grupo de pessoas tentou vaiar o José Alencar. Ele tinha um discurso por escrito, mas ele deixou o discurso de lado e falou: “Com menos idade do que vocês que estão me vaiando, eu já dormia num banco de praça para ganhar meu pão de cada dia”. Aí ele calou o pessoal e passou a ganhar o PT. O Zé Alencar passou a ser chamado pelo PT para debater em tudo quanto é lugar.

Depois, nós fizemos a “Carta ao Povo Brasileiro”, que foi um documento muito necessário. Eu era contra. Aliás, eu era radicalmente contra a carta porque ela dizia coisas que eu não queria falar, mas hoje eu reconheço que ela foi extremamente importante. Então, era preciso tentar construir alianças. É importante lembrar que, no primeiro turno, nós não tivemos apoio do PMDB. Não tivemos apoio de quase nenhum partido no primeiro turno. Então, nós falamos sozinhos. Aquela eleição, a de 2002, eu jamais, em qualquer momento, achei que fosse perder. Eu estava seguro que a eleição era minha. Eu lembro que, quando eu cheguei para a apuração do primeiro turno, estava todo mundo nervoso: Duda Mendonça e Zé Dirceu na televisão, com o computador... ‘não conseguimos ganhar no primeiro turno’. Eu falei: “Gente, olha, a vitória apenas foi adiada por quarenta dias. Vamos ganhar essas eleições”. Eu tinha mesmo essa convicção.

Então, na campanha para o segundo turno, se estabeleceram as conversas com os outros partidos políticos. Nós, obviamente, tínhamos uma preocupação com a governabilidade. Por mais puros que quiséssemos ser, tínhamos a clareza de que, para aprovar alguma coisa no Congresso, tínhamos que ter, pelo menos, 50% mais um dos votos, tanto na Câmara como no Senado. Era preciso construir essa maioria, senão você não governa. O PMDB não ficou conosco no primeiro momento, ficou contra. Uma parte do PMDB esteve favorável à gente. Aí tivemos outros partidos intermediários que fizeram aliança conosco.

O senhor estruturou uma estratégia de alianças que tornou possível que setores que vinham de outra origem legitimassem políticas progressistas. Mas isso não foi necessariamente compreendido e não houve um discurso para justificar a política de alianças. Qual a lógica dessa estratégia?

É engraçado: quando a direita fazia articulação, estava tudo bem. Quando o ACM articulava para apoiar Fernando Henrique Cardoso, a imprensa o via como gênio, o gênio da política, o gênio que constrói. Quando éramos nós, a imprensa dizia: “Onde é que já se viu o PT conversar com essa gente?”. Mas nós conversamos. Nós tínhamos aprendido a fazer política e que, quando você faz uma política de coalizão, os aliados têm que participar do governo. É assim em qualquer democracia do mundo. E vai continuar a ser assim. Enquanto não tiver uma reforma política no Brasil, vai ser assim: quem ganhar, quem quiser governar, vai ter que conversar com o Congresso, vai ter que conversar com a Câmara, vai ter que conversar com o Senado, vai ter que conversar com o movimento sindical, vai ter que conversar com os empresários. É assim que se governa.

Aí nós tivemos um momento muito importante de diálogo com todos os setores sociais. Eu tive uma relação extraordinária, do catador de papel aos bancos, aos empresários. Eu mantive uma relação civilizada com todos os segmentos da sociedade. Nunca deixei de falar em nenhum discurso: “Eu governo para todos, mas o meu olhar preferencial é para a parte mais pobre da sociedade brasileira”. Portanto, todo mundo tem claro isso. Eu sei de onde eu vim e sei para onde eu vou depois de deixar a Presidência.

Isso permitiu que a gente tivesse uma relação, eu diria, sincera, com os partidos e os setores sociais. E que os partidos tivessem um papel importante no sucesso do governo. Não acho que devesse ser diferente. E é bom que a gente tenha problema para resolver, porque, quanto mais problema você tem, mais você exerce a democracia. E quanto mais você resolve, mais forte você fica.

A negociação é a pré-condição para a solidez do governo?

Tem político – essa é uma coisa que você, Emir, como cientista político, não pode esquecer –, tem político dentro do Congresso que pensa o seguinte: governo bom é aquele fraco, porque no governo fraco a gente manda, a gente impõe.

Uma vez, o ACM pediu uma conversa comigo, e eu tinha muita cisma dele. Eu falei: “Márcio [Thomaz Bastos], para conversar com ele, eu tenho que ter testemunha. Só se você estiver presente”. E o Márcio marcou uma reunião.

Eu fui conversar com o ACM e ele queria que o PT o apoiasse para a Presidência do Senado. Aí ele falava: “Lula, é o seguinte: eu mando. Tem muito senador que ajudei a arrumar dinheiro para campanha. Na mesa do Fernando Henrique Cardoso, quando eu dou um murro, ele fica com medo. Então, se você me apoiar, todo projeto que você quiser, eu faço passar no Congresso Nacional”. Aí eu respondi: “ACM, eu sempre achei que os presidentes das instituições devessem ser as pessoas mais fortes. Eu não tenho dúvida que você pode ser um bom presidente. Agora, eu não tenho como explicar, para minha consciência, o PT apoiando o Toninho Malvadeza”. Era esse o apelido dele. “Então, não me peça o impossível, o que eu não posso fazer”.

Então, o que muitos políticos desejam? Um governo fraco, um governo debilitado, porque aí a pressão aumenta, as exigências aumentam. Quando o governo está bem, fica muito mais fácil governar. Mas, mesmo assim, quando o governo está bem, não deve afrontar o Congresso Nacional. O governo tem que entender que o exercício da democracia é a convivência na diversidade. Eu dizia que democracia não é um pacto de silêncio. Democracia é uma sociedade em movimentação por várias coisas, e nós temos que saber lidar com isso.

Nós aprendemos a construir as alianças necessárias. Hoje, isso está nas cidades, nos estados. Se não for assim, a gente não governa. E muitas vezes, sozinho, você tem mais dificuldade. Você lembra o que aconteceu quando o Sarney foi presidente? Em 1986, o PMDB fez a maioria da Constituinte e teve 23 governos estaduais. Pergunta para o Sarney se ele teve facilidade em governar o país com a maioria no Congresso. Não teve. Esse jogo da democracia, de você ter que conversar com forças diferentes, de elas brigarem entre si, às vezes ajuda mais o governo do que se você tiver trezentos com a mesma bandeirola.

Qual é o meu medo? O meu medo é que se passe a menosprezar o exercício da democracia e se comece a aplicar a ditadura de um partido sobre os demais. Não gosto muito da palavra hegemonia, sabe. O exercício da hegemonia na política é muito ruim. Mesmo quando você tem, numericamente, a maioria, é importante que, humildemente, você exerça a democracia. É isso que consolida as instituições de um país e foi isso que eu exercitei durante o meu mandato, e que a Dilma está exercitando agora com muita competência.

Além das políticas econômicas e sociais, a política externa da última década fez com que o Brasil alcançasse reconhecimento mundial. Como o senhor avalia a política externa do governo, particularmente no que diz respeito ao processo de integração latino-americana que se intensificou de forma muito significativa?

Eu, às vezes, ficava imaginando quando é que a grande mídia brasileira iria reconhecer que nossa política externa foi um trabalho benéfico para o Brasil. Entretanto, quanto mais a gente trabalhava, mais eles ouviam embaixadores que eram contra a nossa política. Era inacreditável, porque eles poderiam convidar o ministro para falar, poderiam convidar o secretário do Itamaraty... não. Era sempre alguém contra a política externa que falava.

Sinceramente, eu acho que nós fizemos uma revolução na política externa brasileira. Houve uma combinação da capacidade, da competência de trabalho do Itamaraty, sobretudo do ministro Celso Amorim, com uma disposição política nossa de fazer as coisas acontecerem. Se política externa a gente pudesse fazer por fax e por e-mail, a Hillary Clinton não teria viajado tanto, o [Henry] Kissinger também não. Tem gente que acha que política externa se faz por telefone, mas a relação humana produz uma química entre as pessoas. Você tem que conversar, tem que pegar na mão da pessoa, tem que abraçar a pessoa. Tem que olhar no olho da pessoa. É isso que faz a coisa se diferenciar na relação humana.

Em janeiro de 2003, fui a Davos. Eu saí do “Fórum Social Mundial”, em Porto Alegre e fui a Davos.

Que fez dez anos agora...

Quando voltava de lá, eu falei para o Celso Amorim: “Celso, nós temos condições de mudar a geopolítica comercial e a política do mundo. não é possível que, no mundo, com tantos países, só se ouça falar de Europa – de Europa em termos, porque Europa era Alemanha, França e Inglaterra, não era Europa –, da China, da índia e dos Estados unidos. não é possível”.

Bem, aí nós estabelecemos uma política externa. Primeiro: mais agressividade comercial. Nós não temos que ficar esperando as pessoas virem comprar. Nós temos que sair para vender. Vocês estão lembrados que, na campanha, eu falava: “Eu vou querer um ministro das Relações Exteriores que seja um mascate, um cara que faça como um desses vendedores aqui em São Paulo, aquele que vai de casa em casa bater palma, com a sacolinha de pano. Se em uma não querem comprar, vai à outra casa”. Então, o Brasil tem que ser assim. Por isso é que eu viajei tanto.

Foram quantos países?

Eu viajei pra mais de noventa países. Eu viajei toda a América do Sul, toda a América Latina e o Caribe. Eu viajei para dezenas de países africanos e asiáticos, e também para outros países. Qual é o dado concreto? O dado concreto é que eu sentia que tinha espaço.

Eu fui convidado para a reunião do G8 em Evian, na França, em junho de 2003.

Estavam lá [George W.] Bush, [Jacques] Chirac, Tony Blair, [Junichiro] Koizumi, o príncipe da Arábia Saudita [Abdullah Bin Abdul Aziz Al-Saud], o Silvio Berlusconi, o [Gerhard] Schröder, o [Vicente] Fox e eu.

E me colocaram numa sala sem intérprete, só com aquele radinho de ouvido. E logo de cara me colocaram para falar. Quase que eu falo: “O que vou dizer aqui?”... E eu comecei a perceber... O que eu comecei a perceber? Que eu era o único diferente naquela sala, que eu era o único que tinha tido uma experiência que os outros não tinham tido. Eu era o único que já tinha morado em lugar que deu enchente, eu era o único que tinha perdido o emprego, eu era o único que tinha ficado 27 anos no chão de fábrica, eu era o único que tinha passado pelo movimento sindical. Aí eu pensei: “tenho é que falar da minha experiência para esses caras”.

E eu tive uma sorte... Todos eles me trataram dignamente. A relação do Bush comigo foi muito boa, a relação do Chirac comigo foi excelente, a relação com o Gordon Brown foi muito boa – do Tony Blair antes, depois do Gordon Brown –, a relação dos alemães comigo foi muito boa.

E eu tinha uma coisa na cabeça. Eu aprendi com a minha mãe que, se você quiser ser respeitado, você tem que se respeitar. Não espere que ninguém lhe trate com seriedade se você não for sério. Então, eu tinha essa coisa na cabeça: “Esses caras vão me respeitar”...

[Antes,] O Brasil também era visto como coisa folclórica no exterior. A gente estava numa situação em que os homens da equipe econômica iam todo ano ao “Fundo Monetário Internacional” pedir dinheiro para poder resolver o fundo de caixa. No tempo do nosso amigo Delfim... O Delfim até hoje ironiza... Assinava contrato e depois não cumpria. Eu não gostava das duas coisas. Primeiro: palavra é palavra. Segundo: eu não vou ficar pedindo dinheiro para fechar caixa.

Essas duas coisas que eu aprendi com uma mulher que era analfabeta – a lição de que ninguém respeita quem não se respeita e não fique devendo favor a ninguém –, é que me fizeram tomar algumas atitudes. Quando nós aumentamos o superávit primário para 4,25%, muita gente do PT queria me matar. Também na reforma da Previdência – surgiu até o PSOL de um racha do PT por conta disso e, depois, com as denúncias de corrupção.

E a relação com o Fundo Monetário Internacional?

Eu tinha uma obsessão. A mesma obsessão que eu tinha de não pagar aluguel: eu tinha de acabar com o FMI, de não ter dívida com o FMI. Quando eu casei, falei para a Marisa: “nós vamos morar um ano de aluguel, depois vamos comprar uma casa”. Deu um pouco mais, um ano e seis meses, comprei uma casinha. Comprei a casinha com vidros todos quebrados – a molecada da escola quebrava tudo –, o portão todo quebrado. Quando eu comprei a casa, no dia seguinte um cara a invadiu, levou a mulher para dentro, os filhos, não queria sair da minha casa. Deu muito trabalho para ele sair. Mas eu queria a minha casa. Então, quando eu casei a primeira vez, falei para a Lourdes: “Olha, nós vamos trabalhar um ano e vamos comprar nossa casinha”. Comprei uma casinha numa pirambeira, no Parque Bristol. Era uma pirambeira de barro que, quando chovia, para ir trabalhar, tinha que colocar galocha. Mas era a minha casa.

E eu não queria dever ao FMI. Então, eu tomei essas atitudes. E Horst Köhler, que era presidente do FMI, foi muito respeitoso comigo. Uma coisa que eu senti foi que, quando você age com seriedade, as pessoas passam a torcer para as coisas acontecerem. Eu dizia para todo mundo: “não peçam que a gente faça mais sacrifício do que esse povo já fez, não peçam”. Mas eu garantia que o acordo que saísse eu honraria e faria o que deveria ser feito no país. O ajuste fiscal que nós fizemos em 2004, pouca gente teria coragem de fazer e nós fizemos. O que aconteceu: um ano depois, eu estava de- volvendo o dinheiro do empréstimo para o FMI e um ano e meio depois nós já tínhamos quase 100 bilhões de dólares de reservas. Essa também era uma coisa que eu tinha obsessão: era preciso ter dinheiro em caixa para ganhar mais flexibilidade. Nós fizemos uma festa quando alcançamos 100 bilhões de dólares de exportação. Colocamos até um contêiner lá na frente do Ministério.

Os tabus foram quebrados à direita e à esquerda? Como se sentia com isso?

O caminho que nós tomamos estava dando certo: apertar aquilo que você tem que apertar e flexibilizar o que é importante. Nós criamos o “Programa Bolsa Família” em 2003, num ano em que a gente não tinha condição de fazer nada. Em 2004, eu não tive coragem de vir a São Paulo no 1º de maio. O [Luiz] Marinho estava num caminhão, na Avenida Paulista, e me ligou: “Lula, vem pra cá, nós vamos fazer uma festa pra você”. Eu disse: “não vou, Marinho, não vou, sabe por quê? Porque eu não estou bem comigo mesmo”. “Mas, por que você não vem?” “Marinho, eu não vou porque nós demos zero por cento de aumento para o salário-mínimo, porque nós não podemos aumentar o salário-mínimo.” Aí ele disse: “Mas aqui não vai ter problema”. “Marinho, não é por vocês, é por mim, eu não estou bem comigo, eu não vou participar do 1º de maio.” Eu estava arrasado. Eu cheguei a pensar: não vale a pena chegar a presidente e não poder dar aumento de salário-mínimo.

E possivelmente tenha sido essa atitude que tenha permitido a gente dar mais nos anos seguintes. Nós criamos a normatização, e as coisas começaram a funcionar. Tudo que foi plantado foi nascendo no tempo certo, na hora certa.

Tivemos problemas com os companheiros, e não foi fácil. É muito difícil tirar gente do governo. O momento mais difícil é quando você tem que chamar alguém e falar: “Companheiro, olha, lamentavelmente eu vou precisar do cargo e você vai ter que sair”. É uma experiência muito complicada. Numa empresa é fácil, porque o dono da empresa não conhece o empregado. é um cara de terceiro escalão que manda embora, que contrata. Um funcionário de um ministério, tudo bem, mas um ministro? É o presidente que chama, o presidente que tira.

Foram oito anos que permitiram que a gente, ao concluir, pudesse dar de presente ao Brasil a eleição da primeira mulher presidenta. Essa foi outra coisa muito difícil de fazer. Eu sei o que eu aguentei de amigos meus, amigos mesmo, não eram adversários, dizendo: “Lula, mas não dá. Ela não tem experiência, ela não é do ramo. Lula, pelo amor de Deus”. E eu: “Companheiros, é preciso surpreender a nação com uma novidade. Fazer a mesmice, todo mundo faz. Agora, vamos surpreender o Brasil com a novidade”.

O Brasil mudou nesses dez anos. E o senhor, também mudou?

Uma das coisas boas da velhice é você tirar proveito do que a vida lhe ensina, em vez de ficar lamentando que está velho. A vida me ensinou muito. Criar um partido nas condições que nós criamos foi muito difícil. Agora que o partido é grande, tudo fica fácil, mas eu viajava este país para fazer assembleia com três pessoas, com quatro pessoas, com cinco pessoas. Saía daqui de São Paulo para o Acre pra fazer reunião com dez pessoas, para convencer o Chico Mendes a entrar no PT, para convencer o João Maia – aquele que recebeu dinheiro para votar na eleição do Fernando Henrique Cardoso e era advogado da CONTAG – para entrar no PT. Era muito difícil fazer caravana, viajar ao nordeste, pegar ônibus, ficar uma semana andando, fazendo comício ao meio-dia, com um sol desgraçado, explicando o que era o PT para que as pessoas quisessem se filiar.

Eu mudei. Mudei porque eu aprendi muito, a vida me ensinou demais, mas eu continuo com os mesmos ideais. Só tem sentido governar se você conseguir fazer com que as pessoas mais necessitadas consigam evoluir de vida. As pessoas precisam somente de oportunidade. Tendo oportunidade, todo mundo pode ser igual. Pode ter um mais inteligente que o outro, mas não tem ninguém burro. As pessoas só precisam de uma chance. E nós começamos a fazer isso. Não é que o trabalho esteja terminado, não. Ou seja, você não muda gerações de equívocos em apenas uma geração. Precisa de um tempo para você fazer. O caminho está correto e está bem.

E o PT mudou?

Existem dois PT. Um é o PT congressual, parlamentar, o PT dos dirigentes. E outra coisa é o PT da base. Eu diria que 90% da base do PT continua igualzinha ao que era em 1980. Ela continua querendo um partido que não faça aliança política, mas ao mesmo tempo sabe que, para ganhar, tem que fazer acordos políticos. É uma base muito exigente, muito solidária e ainda desconhecida de parte da elite brasileira que conhece o PT superficialmente. O PT é muito forte no movimento social. O PT é muito forte no interior deste país. E nem sempre essa fortaleza se apresenta na quantidade de votos.

E tem o PT eleitoreiro. E, hoje, ou nós fazemos uma reforma política e mudamos a lógica da política, ou a política vai virar mais pervertida do que já foi em qualquer outro momento. É preciso que as pessoas compreendam que não só a gente deveria ter financiamento público de campanha, como deveria ser crime inafiançável ter dinheiro privado nas campanhas; que você precisa fazer o voto por lista, para que a briga se dê internamente no partido. Você pode fazer um modelo misto – um voto pode ser para a lista, o outro para o candidato. O que não dá é para continuar do jeito que está. Sinceramente, não dá para continuar do jeito que está.

Por quê?

A eleição está ficando uma coisa muito complicada para o Brasil. E no mundo inteiro. No Brasil, se o PT não reagir a isso, poucos partidos estarão dispostos a reagir. Então, o PT precisa reagir e tentar colocar em discussão a reforma política. Eu tentei, quando presidente, falar de uma Constituinte exclusiva, que é o caminho: eleger pessoas que só vão fazer a reforma política, que vão lá [para o Congresso], mudam o jogo e depois vão embora. E daí se convocam eleições para o Congresso. O que não dá é para continuar assim.

Às vezes, tenho a impressão que partido político é um negócio, quando, na verdade, deveria ser um item extremamente importante para a sociedade. A sociedade tem que acreditar no partido, tem que participar dos partidos.

O PT não mudou necessariamente para melhor?

O PT mudou porque aprendeu a convivência democrática da diversidade; mas, em muitos momentos, o PT cometeu os mesmos desvios que criticava como coisas totalmente equivocadas nos outros partidos políticos. E esse é o jogo eleitoral que está colocado: se o político não tiver dinheiro, não pode ser candidato, não tem como se eleger. Se não tiver dinheiro para pagar a televisão, ele não faz uma campanha.

Enquanto você é pequeno, ninguém questiona isso. Você começa a ser questionado quando vira alternativa de poder. Então, o PT precisa saber disso. O PT, quanto mais forte ele for, mais sério ele tem que ser. Eu não quero ter nenhum preconceito contra ninguém, mas eu acho que o PT precisa voltar a acreditar em valores que a gente acreditava e que foram banalizados por conta da disputa eleitoral. É o tipo de legado que a gente tem que deixar para nossos filhos, nossos netos. É provar que é possível fazer política com seriedade. Você pode fazer o jogo político, pode fazer aliança política, pode fazer coalizão política, mas não precisa estabelecer uma relação promíscua para fazer política. O PT precisa voltar urgentemente a ter isso como uma tarefa dele e como exercício prático da democracia. Não tem de voltar a ser sectário como era no começo.

Eu lembro que companheiros meus perderam seu emprego numa metalúrgica, montaram um bar, mas quiseram entrar no sindicato e não puderam. “Você não pode entrar porque é patrão”, diziam. O coitado do cara tinha só um bar! A coitada da minha sogra, a mãe do marido da Marisa, a mãe do primeiro marido da Marisa (eu sou o único cara que tive três sogras na vida e uma que não era minha sogra; era sogra da minha mulher, por conta do ex-marido dela, que eu adotei como sogra), a coitada tinha um fusquinha 1966 que era herança do marido. E ela ganhava acho que 600 [cruzeiros]– naquele tempo era como se fosse um salário-mínimo de hoje – de aposentadoria, mas gostava de andar bem-vestida. Ela chegava à reunião do PT e o pessoal falava: “Já veio a burguesa do Lula”.

Tinha um candidato a vereador que queria dinheiro para a campanha e eu falei: “Olha, eu não vou pedir dinheiro para a campanha. Se você quiser, eu lhe apresento algumas pessoas”. Daí ele disse: “não, mas eu não quero conversar com empresário”. Falei: “Então você quer que um favelado dê dinheiro para a tua campanha?”. Eu já fiz campanha de cofrinho. Eu já fiz campanha de macacão em palanque. Na campanha de 1982, a gente ia ao palanque, antes que eu falasse, fazia propaganda das camisas, dos bótons, de tudo que a gente vendia. E a gente vendia na hora e arrecadava o dinheiro para pagar as despesas daquele comício.

Acabou o sectarismo e acabou a campanha militante?

Sim, esse tempo acabou, não existe mais. Hoje, uma campanha na televisão custa muito caro, as pessoas não querem mais trabalhar por idealismo. As pessoas querem salário. Por quê? Porque cada vereador, cada deputado tem em seu gabinete cinco, seis, dez, quinze, vinte pessoas trabalhando. O cara do bairro fala: “Por que eu vou trabalhar de graça? Eu também quero o meu”. Então, vai ficando tudo cada vez mais difícil e eu diria até mais banal.

Meus três filhos mais velhos foram criados dormindo nas calçadas de Santo André, São Bernardo, São Paulo, São Caetano, Mauá, organizando esse partido. Era gente na rua fazendo um carrinho de som com uma corneta, convencendo as pessoas a assistirem ao PT, e a Marisa e outras mulheres vendendo camiseta. Elas faziam na hora as camisetas e vendiam. Era difícil, mas era uma coisa bonita. Era uma coisa muito bonita e muito honrosa de fazer. Isso diminuiu muito, sobretudo nos grandes centros urbanos. E o PT tem o compromisso de tentar restabelecer um pouco dessa coisa da política brasileira. E, diga-se de passagem, Rui Falcão tem feito um trabalho excepcional.

Qual o papel da burocracia na administração? Nesse sentido, tem a história da ponte da comunidade quilombola, que o senhor tentou resolver ainda no governo Mário Covas...

Eu fui visitar em 1993 uma comunidade quilombola [em São Paulo] e vi crianças indo de barco para a escola num rio muito caudaloso. O Mário Covas era o governador e eu fui até ele pedir que construísse uma ponte, uma pinguela, qualquer coisa, para que as crianças não tivessem mais que atravessar o rio para ir à escola. Em 2003, eu assumi a Presidência e a ponte ainda não existia. E aí eu falei: “Eu quero uma ponte”. Então, contratamos o exército para ficar mais barato, mas ainda assim essa ponte levou oito anos para ser construída. Agora, está pronta.

A burocracia é um problema. Primeiro, nós temos que levar em conta que a burocracia é competente na defesa dos seus interesses. Ela pode não ser competente na defesa dos interesses de quem está no governo, mas na defesa dos interesses da burocracia ela é competente.

Eu fiz uma analogia que é o seguinte: o governo é um trem. A burocracia é a estação. Então, de tempos em tempos, vem um trem, vem outro, o do PT buzinando mais, soltando mais fumaça, mas a estação está lá, sempre. Os burocratas estão lá. Tem o cara que vende bilhete, o cara que assina não sei o quê, o cara que fica olhando. Eles estão lá. O trem vai embora. Aí vem outro trem, buzina menos, faz menos barulho, gasta menos energia. A máquina está lá. Quer dizer, a máquina não muda. O trem muda. Toda hora passa uma máquina nova e a estação está lá.

O que faz um funcionário público? O governante toma algumas decisões e o que acontece com um funcionário burocrata que está lá há 25 anos? Principalmente agora, com todo esse sistema de denúncias? O funcionário fala: “Esse cara vem dizer que eu tenho que fazer isso? Esse cara só tem quatro anos no governo e eu já tenho 25. Se eu fizer uma coisa errada, vou ser processado, vou ter que contratar advogado e meus bens ficarão indisponíveis; e, quando eu for embora, ninguém nem vai se lembrar de mim. não vou fazer coisa nenhuma. Vou deixar aí. O tempo passa logo”.

Como vencer essa barreira?

No governo, criamos uma coisa chamada “toyotismo”. Era um gabinete em que colocávamos todo mundo envolvido num determinado assunto. Vamos supor, nós íamos discutir a ponte do rio Madeira; então, era chamado o ministro dos Transportes, o ministro do Meio Ambiente, o IPHAN, a FUNAI, o ministro da Fazenda, o ministro do Planejamento, a Advocacia Geral da união. Era chamado todo mundo que tinha alguma coisa a ver, direta ou indiretamente, com aquela obra, para que todo mundo dissesse, na sua área, como é que estava o andamento. Se eu chamasse só o ministro do Transporte e me colocasse de acordo com ele, quem tinha que conversar com a Fazenda era ele sozinho. E o ministro da Fazenda dava um chá de cadeira nele de três meses. Ele tinha que conversar com o Planejamento, ele tinha que conversar com o IPHAN, ou seja, ele tinha que fazer uma trajetória de conversar com um por um, quando todos poderiam estar numa mesa. E a gente dava prazo: “Em quinze dias queremos uma solução, em vinte dias queremos uma solução”. E, ainda assim, as coisas demoravam... Imagina se não fizesse isso.

Sem isso, seria uma tarefa quase impossível concluir obras?

Sim, pelo menos no mesmo mandato. Por exemplo, eu sou presidente e discuto e decido uma coisa com um ministro, que anunciamos para a imprensa. Aí o ministro sai do meu gabinete, vai ter que conversar com o Guido Mantega. Aí o Guido vai marcar audiência quando puder. Ele conversa com o Guido, acerta tudo, mas vai ter que passar pelo Planejamento. Aí vai ao Planejamento. “Olha, mas tem um problema no IPHAN.” Vai ter que ir ao IPHAN. Depois, surge um problema no Meio Ambiente. Ali está com um problema sério, não vai passar, tem que ir ao Ministério do Meio Ambiente. Aí o ministério fala: “não é comigo, é com o IBAMA”. Vai ao IBAMA. E quando tudo dá certo, vem a licitação, vai ao Ministério Público. Quando tudo dá certo, uma empresa perde e entra com uma ação contra a outra. E pronto. Passou o mandato e você não fez as coisas. É muito complicado. Hoje, nenhum governante faz um projeto grande, licita e conclui a obra num mandato de quatro anos. Não é possível.

Isso também coloca o desafio de formar o quadro da gestão governamental?

A máquina pública tem quadros excepcionais. Onde o Brasil estacionou? No
Planejamento. Não existia uma sala de planejamento de projetos estratégicos no país.

Isso acabou no governo Collor. Ele acabou com o GEIPOT, por exemplo, que tinha mais ou menos esse formato. Foi apenas no PAC que nós colocamos dinheiro pra fazer projeto. O Brasil tinha desmontado as empresas estatais que faziam planejamento. Fazia vinte anos que não se fazia projeto neste país.

Também é preciso mudar a lei de licitação. Se eu contar, parece piada. Pergunta para o então ministro da Saúde, [José Gomes] Temporão, quantos anos demorou para aprovar a compra de um kit dentário para crianças em leilão eletrônico. Um kit bucal! Como não se pode estabelecer num leilão referência de qualidade, aparece qualquer tipo de coisa e qualquer um que perde entra com processo, suspende, é um negócio maluco. E quantas canetas esferográficas que não funcionam são compradas num leilão? Quanta coisa é comprada? Quantas empresas ganham licitação e desistem da obra três, quatro meses depois, porque não têm fôlego para fazer? O critério não pode ser o menor preço. A gente aprende desde que nasceu: o barato sai caro. É preciso que se coloquem os cérebros para pensar. O Paulo Bernardo tentou fazer uma mudança, não sei se está no Congresso. Alguma coisa tem que ser feita para agilizar a administração pública deste país.

Então, fica mais fácil fazer concessão. A iniciativa privada faz o que bem entende, sem 90% dos empecilhos que tem o governo. Aí passa essa ideia que apenas na máquina pública tem corrupção. Vai fiscalizar a máquina da iniciativa privada para ver como é. Há equívocos que precisam ser esclarecidos.

O senhor se frustrou por não ter reformado o Estado?

Nós começamos o governo com uma coisa importante, que foi a Reforma da Previdência no setor público. Muita gente foi contra, muita gente boa até ficou contra, mas, convenhamos, mesmo na nossa casa a gente não consegue viver, se tiver que gastar o mesmo para um filho que está na ativa e para o outro que está inativo.

Na máquina pública, há situações em que você tem mais aposentados do que ativos. E, ao dar um aumento real para quem está na ativa, você é obrigado a dar o mesmo aumento real para o inativo, quando você deveria dar reposição salarial para os aposentados e aumento real para quem trabalha. Mas vai dizer isso...

Não é possível continuar assim. Nós mudamos a lei, mas não é fácil. Nós tentamos fazer a Reforma trabalhista. Criamos uma comissão de trabalho, onde estavam a CUT, a Força Sindical e os empresários. Eles sempre chegam quase próximos a um acordo, mas não se acertam. Eu dizia para eles: “Vocês tratem de se acertar, porque não é o governo que vai fazer, não. Ninguém precisa ganhar 100%, mas se coloquem de acordo e construam alguma coisa”.

Eu penso que é plenamente possível fazer mais coisas para reformar o Estado. Mas não é a reforma que a elite brasileira quer que se faça, o tal “Estado mínimo”. Quem quer melhorar a educação, precisa colocar mais professor, mais funcionário. Não tem como melhorar a educação sem contratar, a não ser que você queira melhorar apenas para uma pequena elite. Mas se você quiser levar a universidade para todo mundo, levar escola técnica para todo mundo, tem que contratar mais professores, mais funcionários. Se você quiser melhorar a saúde, tem que ter mais médicos. Onde você vai demitir para cortar gastos, como os chamados neoliberais querem? Se você quiser ter uma Polícia Federal mais eficiente, vai ter que contratar mais gente. Se você quiser ter a Receita Federal mais eficaz, vai ter que contratar. Existem postos na fronteira do Brasil que não têm gente. Eu falava com o Guido: “Está precisando colocar gente lá”. O Guido falava: “Mas não tem funcionário”. Então, a máquina será mais eficiente quanto mais gente eficiente e gente para ocupar todos os postos tivermos, senão ela não vai a lugar nenhum.

Mas faço uma ressalva: eu também me surpreendi com a qualidade das pessoas que estão na administração pública. Gente muito competente e que muitas vezes vai embora, porque ganha pouco. O salário é muito pequeno. Teve um aumento agora, mas não teve aumento para o pessoal mais qualificado. E sem eles, a máquina não funciona.

O que o senhor lamenta dessa última década?

Se tem um cidadão que não pode reclamar dos últimos dez anos, sou eu.”

FONTE: entrevista com o ex-presidente Luis Inácio da Silva conduzida por Emir Sader e Pablo Gentili. Publicada no livro “10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma” (Editora Boitempo, 2013). Transcrita no site “Carta Maior”  (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22071). [Título e imagem (do google) adicionados por este blog 'democracia&política'].

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