terça-feira, 20 de março de 2012

Robert Fisk: O MASSACRE NO AFEGANISTÃO NÃO FOI LOUCURA

corpos dos 16 civis afegãos (9 crianças) assassindos por soldado(s) norte-americanos 

“Começa a cansar-me essa história do "soldado louco". Era previsível, é claro. Nem bem o sargento de 38 anos - que massacrou no último domingo (11) 16 civis afegãos perto de Kandahar, incluindo nove crianças - retornou para sua base, os especialistas em Defesa e os meninos e meninas dos centros de pensamento já anunciavam que “ele havia enlouquecido”...

Por Robert Fisk (jornalista inglês), em “La Jornada” (do México)
Não era um "perverso terrorista" sem entranhas - como seria, é claro, se fosse afegão, em especial talibã -, mas apenas “um cara que foi à loucura”.

Essa mesma bobagem foi usada para descrever os soldados estadunidenses homicidas que realizaram uma orgia de sangue na cidade iraquiana de Haditha. Com a mesma palavra se descreveu o soldado israelense Baruch Goldstein, que massacrou 25 palestinos em Hebron, algo que fiz notar neste mesmo jornal, poucas horas antes que o sargento “enlouquecesse de repente”, na província de Kandahar.

Ao que parece, enlouqueceu, anunciaram jornalistas. Um homem "que provavelmente havia sofrido algum colapso (The Guardian)", um soldado perverso (Financial Times), cujo distúrbio (The New York Times) foi sem dúvidas (sic) perpetrado em um acesso de loucura (Le Figaro).

Sério? Supõe-se que acreditamos nisso? Claro, se estivesse completamente louco, nosso sargento teria matado 16 de seus colegas norte-americanos. Ele teria matado seus companheiros e, em seguida, atearia fogo aos corpos. Mas não, ele não matou estadunidenses; escolheu matar afegãos. Houve uma escolha. Por que, então, matou afegãos?

tropas dos EUA ensinando "democracia" e "liberdade" aos afegãos
Há uma pista interessante em tudo isso, que não tinha aparecido em reportagens da mídia. Na verdade, a narração dos fatos foi curiosamente lobotomizada-censurada, inclusive por aqueles que têm tentado explicar o terrível massacre em Kandahar. Lembraram a queima de exemplares do Alcorão - quando soldados norte-americanos em Bagram jogaram os livros sagrados em uma fogueira - e as mortes de seis soldados da OTAN, incluindo dois norte-americanos, que vieram depois.

Mas explodam-me em pedaços se não esqueceram - e isso se aplica a todas as matérias sobre o recente massacre - uma afirmação notável e extremamente significativa do comandante em chefe do Exército estadunidense no Afeganistão, o general John Allen, há exatamente 22 dias. Na verdade, foi uma declaração tão inusitada que eu recortei as palavras em meu jornal matutino e coloquei o recorte na minha pasta para referência futura.

General John Allen: "não é a hora da vingança pelas mortes de soldados norte-americanos [invasores]"

Allen disse aos seus homens: “esta não é a hora da vingança pelas mortes de soldados norte-americanos nos distúrbios de quinta-feira”. Alertou que “eles deveriam resistir a qualquer tentação de revidar”, depois que um soldado afegão matou dois norte-americanos. "Haverá momentos como este, em que vocês estarão procurando o significado dessas mortes", continuou. "Momentos como este, em que suas emoções serão governadas pela raiva e pelo desejo de vingança. Esta não é a hora da vingança; é a hora de olhar no fundo de sua alma, de recordar a sua missão, lembrar a sua disciplina, lembrar-se de quem vocês são."

Foi um chamado extraordinário, vindo do comandante em chefe dos EUA no Afeganistão. O general se viu forçado a dizer para o seu exército, supostamente bem disciplinado, profissional, de elite, que não cobrasse vingança aos afegãos aos quais, supostamente, está "ajudando/ protegendo/ educando/ adestrando" etc. Teve que dizer aos seus soldados que não cometessem assassinato.

Eu sei que os generais diziam essas coisas no Vietnã. Mas no Afeganistão? As coisas chegaram a esse extremo? Temo que sim. Porque, por mais que eu não goste de generais, tenho lidado com muitos deles pessoalmente, e geralmente têm ideia bastante acertada do que acontece em suas fileiras. E eu suspeito que o general John Allen já havia sido advertido por seus oficiais de que seus soldados estavam irritados com as mortes que se seguiram à queima de exemplares do Alcorão e, talvez, tivessem decidido empreender uma escalada de vingança. Por isso, tratou de um modo tão desesperado - em uma declaração tão impactante como reveladora - de prevenir um massacre exatamente como o que ocorreu no último domingo.

No entanto, essa mensagem foi completamente apagada da memória dos peritos quando eles analisaram essa matança. Não se permitiu em seus relatos nenhuma alusão às palavras do general Allen, nenhuma referência, porque, naturalmente, isso teria tirado o nosso sargento do grupo dos “enlouquecidos” e lhe teria dado um possível motivo para o massacre. Como de costume, os jornalistas tiveram que se meter na cama com os militares para procriar um louco e não um assassino. "Pobre rapaz: andava mal da cabeça". "Não sabia o que fazia". Não é de admirar que o tenham tirado do Afeganistão tão rápido.

Todos tivemos nossos massacres. Há “My Lai” (aldeia vietnamita onde, em 16 de março de 1968, centenas de civis, na maioria mulheres e crianças, foram executados por soldados do exército dos Estados Unidos), e nosso próprio “My Lai” britânico, em uma aldeia da Malásia chamada “Batang Kali”, onde os guardas escoceses - envolvidos em um conflito contra os insurgentes comunistas - assassinaram 24 indefesos trabalhadores da borracha, em 1948.

Claro, pode-se argumentar que os franceses na Argélia foram piores que os norte-americanos no Afeganistão - diz-se que uma unidade de artilharia francesa fez desaparecer 2 mil argelinos em seis meses -, mas isso é como dizer que somos melhor que Saddam Hussein. Certo, mas veja que parâmetro de moralidade.

É disso que se trata. Disciplina. Moralidade. Valor. O valor de não matar por vingança. Mas quando se está perdendo uma guerra que se finge estar ganhando - me refiro ao Afeganistão, é claro -, suponho que isso seja esperar demais. Parece que o general Allen perdeu seu tempo.”

FONTE: escrito pelo jornalista inglês Robert Fisk do "The Independent", e publicado no “La Jornada” (jornal online do México, Espanha, América Central e América do Sul); transcrito no portal “Vermelho” com tradução de Joana Rozowykwiat  (http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=178507&id_secao=9) [imagens do google adicionadas por este blog ‘democracia&política’].

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