domingo, 6 de junho de 2010

"ATAQUE A BARCO ESTIMULA O ANTISSEMITISMO"

Historiadora e psicanalista francesa diz que governo nacionalista de Israel tem sido catastrófico para os judeus

ENTREVISTA com Elisabeth Roudinesco

Catástrofe. Essa é a palavra que a historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco usa repetidamente para classificar a política de Israel, o ataque à flotilha que tentou furar o bloqueio à Faixa de Gaza e o crescimento do antissemitismo.

De volta ao Brasil para lançar o “Retorno à questão judaica”, pela Zahar, Elisabeth diz que há hoje diferentes níveis de se sentir judeu. A autora, diretora de pesquisas da Universidade de Paris VII e colaboradora do “Le Monde”, falou ao GLOBO ontem sobre seu livro — o último de mais de 20 obras, a maioria já lançada no Brasil. Nele, procura entender o que é antissemitismo e o que é ser judeu nos dias de hoje, dois conceitos, diz, diretamente afetados pelas ações políticas de Israel.

Sabrina Valle – O GLOBO

O GLOBO: Nesta semana, Israel atacou barcos com ajuda humanitária. Eventos como esse podem afastar os judeus do judaísmo?

ELISABETH ROUDINESCO:
Acho que todos os judeus do mundo se preocupam com Israel, mas o Estado é uma coisa, os judeus são outra. Não necessariamente somos solidários com esse Estado. Foi um erro político grave ter atacado esse barco. A política de Israel tem sido catastrófica, esse governo nacionalista é um desastre. Tudo isso é catastrófico para os judeus — pois estimula o crescimento do antissemitismo — e também para todo o mundo.

O que é ser judeu hoje com a atual política israelense?

ELISABETH:
Isso dá um livro inteiro. Em primeiro lugar, há uma identidade judaica. Mas nos sentimos judeus em níveis diferentes.

Eu me sinto mais francesa, mais universalista, mais europeia do que judia.
Preocupo-me com o Estado de Israel não como judia, mas porque acho que este é o grande conflito de hoje. Em segundo lugar, metade dos judeus está fora de Israel, e eles não são necessariamente todos iguais. Há 6 milhões em Israel, e 5 ou 6 milhões fora, sem contar os 6 milhões exterminados.

Os que estão fora se preocupam mais com Israel do que os outros? Acho que não.

A senhora é a favor de uma solução de dois Estados?

ELISABETH:
Sim, somos obrigados.

Sempre achei que a solução seria um Estado binacional. Arriscamos ter um (enfrentamento) face a face — e não entre os laicos palestinos e os laicos israelenses, o que é a única paz possível — mas entre os fanáticos do Hamas e os fanáticos nacionalistas e religiosos de Israel, essa era a pior coisa que poderia acontecer. Israel precisa fazer grandes concessões, sobretudo na área econômica. Em contrapartida, este Estado palestino deveria cessar com as agressões a Israel.

O presidente Lula quer ter um papel de mediação no conflito do Oriente Médio. Isso seria possível?

ELISABETH:
Acho que ele pode, sim, desempenhar esse papel.

Adoro o Lula. Mas ninguém no momento consegue desempenhar este papel, nem mesmo (Barack) Obama. Há também o sistema eleitoral de Israel que é uma catástrofe. Esse sistema faz com que não tenhamos um bipartidarismo claro, sempre há a necessidade de se fazer uma aliança com a extrema-direita, e isso é catastrófico.

A senhora defendeu a proibição do véu islâmico nas escolas. Agora há a discussão sobre a burca, qual sua opinião?

ELISABETH:
Acho que todos estão de acordo sobre o véu. A questão é complicada com a burca. Independentemente de a lei ser aplicada, a burca já é proibida dentro das instituições públicas.

Não temos direito de cobrir o rosto integralmente dentro delas. Na França chamamos duas coisas de espaço público: as instituições — correios, hospitais, escolas — e também a rua. A questão hoje é com a burca na rua, um espaço público e livre. Para proibir uma vestimenta na rua é preciso fundamento jurídico, e não há um.

O que está em jogo?

ELISABETH:
A dignidade da mulher e a questão pública. Se proíbem a burca, haverá quem queira proibir a minissaia, o cabelo vermelho… Os evangélicos, por exemplo. Há um risco muito grande. Prefiro a prudência em relação ao fundamento jurídico sobre a dignidade da mulher. Em segundo lugar, há a ordem pública.

É a lei que proíbe que andemos todos nus na rua, façamos gestos obscenos. Pode-se alegar que a burca pode ser usada para dissimular atos terroristas. É complicado, mas não sou a favor de uma lei específica que proíba a burca na rua.

E o lenço?

ELISABETH:
O lenço não esconde o rosto, não podemos proibi-lo em espaços abertos. Se não, precisaríamos proibir os chapéus, capacetes. Só é proibido em escolas, assim como todos os outros símbolos religiosos, incluindo o quipá. Se vocês tivessem essa proibição aqui no Brasil, seria necessário proibir também o carnaval do Rio. É preciso cuidado.”

FONTE: entrevista realizada com a historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco por Sabrina Valle, publicada no “O GLOBO” e postada no blog de Luis Favre.

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