"O truque retórico de que só a direita israelense garantiria o “nunca mais” contra os judeus do mundo converte-se a passos largos num isolamento delinquente. Desde o triste fim de dezembro de 2008 que o governo israelense decidiu dar as costas para o mundo, inclusive ao seu aliado de sempre, os EUA. E quando se pensa que o pior já chegou, Netanyahu prova que não, abusando do passado, ofendendo a memória e agredindo o mundo, em águas internacionais. A névoa de desinformação e delinquência que a direita israelense vem protagonizando é uma ameaça a Israel".
Editorial - Carta Maior
"Há mais de oito anos, a ex-ministra da educação e cultura do governo Yitzhak Rabin Shulamit Aloni denunciou os métodos eleitorais do partido de Benjamin Netanyahu. Era a segunda edição do Fórum Social Mundial, num encontro pela paz entre ativistas israelenses e palestinos. Aloni era convidada e na sua intervenção fez um histórico do movimento sionista, com o propósito de esclarecer as coisas e cessar os abusos.
O abuso do antissemitismo é algo que prolifera em cada episódio ofensivo do estado israelense contra os palestinos. Aloni disse, naquela ocasião, que parte do anti-semitismo das últimas décadas derivava de um grande mal entendido a respeito do sionismo. Um mal entendido cuja responsabilidade parcial ela atribuiu ao abuso cometido contra a memória de sofrimento e perseguição dos judeus europeus, sobretudo por parte do nazismo alemão.
As peças impressas das campanhas eleitorais dos candidatos do partido de Benjamin Netanyahu, o Likud, usavam imagens dos campos de concentração e pediam o voto para aqueles que garantiriam a certeza do “nunca mais”. Este tipo de abuso é menos conhecido e se constitui por meio de uma operação ao mesmo tempo sutil e racional – ao contrário da imbecilidade hedionda do anti-semitismo – de justificação de um projeto expansionista e autoritário.
A condição de vítima não funda a política e menos ainda a moral. Ambas, tanto a política como a moralidade, exigem como condição de possibilidade uma tomada de partido quanto à responsabilidade de um agente. A condição de vítima explica, mas não justifica. E por essa razão é trivial a expectativa de que abusados se tornem abusadores, embora também o seja a de que abusadores devam ser punidos, ontem, hoje e sempre.
Israel existe porque o movimento sionista implicou uma tomada de decisão, a responsabilização pela própria história do povo judeu e a vontade política de formação de um lar nacional. Não era, sobretudo até a consolidação do horror nazista, um movimento de traços estritamente religiosos e menos ainda intolerantes com outros povos e manifestações religiosas. Em 1955, sete anos após a fundação do estado de Israel, o filósofo liberal inglês Isaiah Berlin escreveu As Origens do Estado de Israel, texto em que diz o seguinte:
“Qualquer um que desejar compreender a estrutura política de Israel deve estudar a história das idéias liberais do século XIX na Europa, e depois a história dessas idéias tal como se refletem na mente dos liberais e socialistas russos...Há uma ligação direta entre os socialistas-revolucionários russos e os primeiros colonos judeus na Palestina, com sua crença à Rousseau no poder curativo do contato com o solo, e suas afinidades com os estudantes russos que desejam 'estar entre o povo' nas décadas de 1870 e 1880. Os dois grupos acreditavam na vida no campo, no contato com os camponeses, numa existência saudável...numa fuga a fatores moralmente destrutivos para pessoas deformadas e mutiladas pelo desenvolvimento particular da moderna sociedade que ambos – num caso os intelectuais, no outro, os judeus – experimentavam, a saber, uma situação anormal de isolamento da maioria bárbara e o risco de ser por ela perseguido”.
Houve muitas outras influências, sempre houve direita, mas não se falsifica em nada a história do estado de Israel como um projeto político, majoritariamente socialista, que a esquerda do mundo celebrou e reivindicou. A criação do estado de Israel é apontada pelo filósofo inglês como uma refutação do determinismo, do materialismo vulgar e do antimaterialismo místico. Fiquemos com a primeira das refutações, porque é dela que se faz a história e a Política.
É por isso que a névoa de desinformação e delinquência que a direita israelense vem protagonizando é uma ameaça a Israel. É verdade que desde 1967, quando territórios palestinos foram ocupados, contra a lei internacional e contra o Sistema ONU, a solidariedade internacional ao estado de Israel vem decrescendo. É verdade que o vergonhoso muro de anexação de parte da Cisjordânia, erguido ao custo da aniquilação de cidades, famílias e modos de vidas segue ofendendo e abusando da luta dos judeus humanistas e do sionismo. É verdade que a condição de parceiro da agenda estadunidense sobre o Oriente Médio tem sido usada para alimentar um racismo de ocasião e uma paranóia oportuna a todo tipo de defesa, sobretudo se implicar o uso das armas, da humilhação e da perseguição política, como expedientes “defensivos”. É verdade que a desinformação militarista reforça a imagem de que a democracia israelense é uma piada sórdida.
Fato é que o bloqueio a Faixa de Gaza estabelece um novo patamar de atrocidades. E que o truque retórico de que só a direita israelense garantiria o “nunca mais” contra os judeus do mundo converte-se a passos largos num isolamento delinquente. Desde o triste fim de dezembro de 2008 que o governo israelense decidiu dar as costas para o mundo, inclusive ao seu aliado de sempre, os EUA. E quando se pensa que o pior já chegou, Netanyahu prova que não, abusando do passado, ofendendo a memória e agredindo o mundo, em águas internacionais.
O truque retórico gosta de falar que “o Hamas controla Gaza”, embora na realidade o que se passa é que o Hamas foi eleito pela população de Gaza. E que Gaza é na verdade controlada por Israel, que decide o que as crianças de Gaza comerão, ou não, nas escolas – que, por sua vez, funcionarão, ou não, a depender de Israel. O passo seguinte é matar, perseguir, sequestrar quem quiser ajudar aos prisioneiros da maior prisão a céu aberto do mundo. A direita israelense está levando o movimento sionista às raias do delírio fascista, reiterando o abuso e perpetuando a vitimização ideológica, recusando-se a tomar a decisão de sair de “uma situação anormal de isolamento da maioria bárbara e o risco de ser por ela perseguido”, tranformando o "nunca mais", num "eternamente", sem história e sem Política, abraçados no antimaterialismo místico, no materialismo vulgar e no determinismo.”
FONTE: editorial do site “Carta Maior”.
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