terça-feira, 24 de julho de 2012

MOÇAMBIQUE: A MALDIÇÃO DA ABUNDÂNCIA?


“A ‘maldição da abundância’ é expressão usada para caracterizar os riscos que correm os países pobres onde se descobrem recursos naturais objeto de cobiça internacional. A promessa de abundância decorrente do imenso valor comercial dos recursos e dos investimentos necessários para o concretizar é tão convincente que passa a condicionar o padrão de desenvolvimento econômico, social, político e cultural.

Os riscos desse condicionamento são, entre outros: crescimento do PIB em vez de desenvolvimento social; corrupção generalizada da classe política que, para defender os seus interesses privados, se torna crescentemente autoritária para se poder manter no poder, agora visto como fonte de acumulação primitiva de capital; aumento em vez de redução da pobreza; polarização crescente entre uma pequena minoria super-rica e uma imensa maioria de indigentes; destruição ambiental e sacrifícios incontáveis às populações onde se encontram os recursos em nome de um “progresso” que essas nunca conhecerão; criação de uma cultura consumista que é praticada apenas por pequena minoria urbana, mas imposta como ideologia a toda a sociedade; supressão do pensamento e das práticas dissidentes da sociedade civil sob o pretexto de serem obstáculos ao desenvolvimento e profetas da desgraça. Em suma, os riscos são que, no final do ciclo da orgia dos recursos, o país esteja mais pobre econômica, social, política e culturalmente do que no seu início. Nisso consiste a “maldição da abundância”.

Depois das investigações que conduzi em Moçambique entre 1997 e 2003, visitei o país várias vezes. Da visita que acabo de fazer, colho dupla impressão que a minha solidariedade com o povo moçambicano transforma em dupla inquietação.

A primeira tem, precisamente, a ver com a orgia dos recursos naturais. As sucessivas descobertas (algumas antigas) de carvão (Moçambique é já o sexto maior produtor mundial de carvãol), gás natural, ferro, níquel, talvez petróleo anunciam um El Dorado de rendas extrativistas que podem ter impacto no país semelhante ao que teve a independência. Fala-se numa segunda independência. Estarão os moçambicanos preparados para fugir à “maldição da abundância”? Duvido.

As grandes multinacionais, algumas bem conhecidas dos latino-americanos, como a Rio Tinto e a brasileira Vale do Rio Doce (Vale Moçambique) exercem as suas atividades com muito pouca regulação estatal, celebram contratos que lhes permitem o saque das riquezas moçambicanas com mínimas contribuições para o orçamento de Estado (em 2010, a contribuição foi de 0,04%), violam impunemente os direitos humanos das populações onde existem recursos, procedendo ao seu reassentamento (por vezes mais de um num prazo de poucos anos) em condições indignas, com o desrespeito dos lugares sagrados, dos cemitérios, dos ecossistemas que têm organizado a sua vida desde há dezenas ou centenas de anos.

Sempre que as populações protestam, são brutalmente reprimidas pelas forças policiais e militares. A Vale é hoje alvo central das organizações ecológicas e de direitos humanos pela sua arrogância neocolonial e pelas cumplicidades que estabeleceu com o governo. Tais cumplicidades assentam, por vezes, em perigosos conflitos de interesses, entre os interesses do país governado pelo Presidente Guebuza e os interesses das empresas do empresário Guebuza, donde podem resultar graves violações dos direitos humanos como quando o ativista ambiental Jeremias Vunjane, que levava para consigo a Conferência da ONU, Rio+20, denúncias dos atropelos da Vale, foi arbitrariamente impedido de entrar no Brasil e deportado (e só regressou depois de muita pressão internacional), ou quando, às organizações sociais é pedida autorização do governo para visitar as populações reassentadas como se essas vivessem sob a alçada de um agente soberano estrangeiro. 

  Vista aérea de Maputo, capital de Moçambique

São muitos os indícios de que as promessas dos recursos começam a corromper a classe política de alto a baixo e os conflitos no seio dessa são entre os que “já comeram“ e os que “querem também comer”. Não é de esperar que, nessas condições, os moçambicanos, no seu conjunto, se beneficiem dos recursos. Pelo contrário, pode estar em curso a angolanização de Moçambique. Não será processo linear porque Moçambique é muito diferente de Angola: a liberdade de imprensa é incomparavelmente superior; a sociedade civil está mais organizada; os novos-ricos têm medo da ostentação porque ela ‘zurzida’ semanalmente na imprensa e também pelo medo dos sequestros; o sistema judicial, apesar de tudo, é mais independente para atuar; há massa crítica de acadêmicos moçambicanos credenciados internacionalmente capazes de fazer análises sérias que mostram que “o rei está nu”.

A segunda impressão/inquietação, relacionada com a anterior, consiste em verificar que o impulso para a transição democrática que observara em estadias anteriores parece estancado ou estagnado. A legitimidade revolucionária da Frelimo sobrepõe-se, cada vez mais, à sua legitimidade democrática (que tem diminuido em recentes atos eleitorais) com a agravante de estar, agora, sendo usada para fins bem pouco revolucionários; a partidarização do aparelho de Estado aumenta em vez de diminuir; a vigilância sobre a sociedade civil aperta-se sempre que nela se suspeita dissidência; a célula do partido continua a interferir com a liberdade acadêmica do ensino e investigação universitários; mesmo dentro da Frelimo, e, portanto, num contexto controlado, a discussão política é vista como distração ou obstáculo ante os benefícios indiscutidos e indiscutíveis do “desenvolvimento”. Um autoritarismo insidioso disfarçado de empreendorismo e de aversão à política (“não te metas em problemas”) germina na sociedade como erva daninha.

Ao partir de Moçambique, uma frase do grande escritor moçambicano Eduardo White cravou-se em mim e em mim ficou: “nós que não mudamos de medo por termos medo de o mudar” (Savana, 20-7-2012). Uma frase talvez tão válida para a sociedade moçambicana como para a sociedade portuguesa e para tantas outras acorrentadas às regras de um capitalismo global sem regras.”

FONTE: escrito por Boaventura de Sousa Santos, sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal). Artigo transcrito no site “Carta Maior” (http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5699) [Imagens do Google adicionadas por este blog ‘democracia&política’].

2 comentários:

Probus disse...

Oi Maria Tereza, se não leu, leia, para quem não leu eu recomendo: Uma aula com o Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, "o Grande".

Samuel Pinheiro Guimarães: Os EUA no cenário latino-americano

"Para compreender essa situação é preciso compreender a política dos EUA para região e para o mundo".

Por Vinícius Mansur, em Carta Maior

Segundo o embaixador, o objetivo estratégico permanente dos EUA é integrar todos os países da região numa única área econômica e uma de suas primeiras manifestações neste sentido aconteceu em 1889 na I Conferência Internacional Americana, em Washington, quando propuseram um acordo de livre comércio nas Américas e a adoção do dólar por todos os países. “Um projeto perfeito: de um lado a maior potência industrial do mundo, do outro um grupo de países agrícolas, mineradores, muito pobres, com grandes concentrações de renda”, ironizou.

ÍNTEGRA no link abaixo:

http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=189296&id_secao=7

Unknown disse...

Probus,
Ótimo artigo. Vou postá-lo hoje.
Obrigada
Maria Tereza