sábado, 14 de julho de 2012

Samuel Pinheiro Guimarães: OS OBJETIVOS DOS EUA NA AMÉRICA DO SUL

Samuel Pinheiro Guimarães 

 ESTADOS UNIDOS, VENEZUELA E PARAGUAI

“A política externa norte-americana na América do Sul sofreu as consequências totalmente inesperadas da pressa dos neogolpistas paraguaios em assumir o poder, com tamanha voracidade que não podiam aguardar até abril de 2013, quando serão realizadas as eleições, e agora articula todos os seus aliados para fazer reverter a decisão de ingresso da Venezuela. A questão do Paraguai é a questão da Venezuela, da disputa por influência econômica e política na América do Sul.


Não há como entender as peripécias da política sul-americana sem levar em conta a política dos Estados Unidos para a América do Sul. Os Estados Unidos ainda são o principal ator político na América do Sul e pela descrição de seus objetivos devemos começar.

2. Na América do Sul, o objetivo estratégico central dos Estados Unidos, que apesar do seu enfraquecimento continuam sendo a maior potência política, militar, econômica e cultural do mundo, é incorporar todos os países da região à sua economia. Essa incorporação econômica leva, necessariamente, a um alinhamento político dos países mais fracos com os Estados Unidos nas negociações e nas crises internacionais.

3. O instrumento tático norte-americano para atingir esse objetivo consiste em promover a adoção legal pelos países da América do Sul de normas de liberalização, a mais ampla, do comércio, das finanças e investimentos, dos serviços e de “proteção” à propriedade intelectual através da negociação de acordos em nível regional e bilateral.

4. Esse é um objetivo estratégico histórico e permanente. Uma de suas primeiras manifestações ocorreu em 1889 na “I Conferência Internacional Americana”, que se realizou em Washington, quando os EUA, já então a primeira potência industrial do mundo, propuseram a negociação de um acordo de livre comércio nas Américas e a adoção, por todos os países da região, de uma mesma moeda, o dólar.

5. Outros momentos dessa estratégia foram o “Acordo de livre comércio EUA-Canadá”; o NAFTA (Área de Livre Comércio da América do Norte, incluindo além do Canadá, o México); a proposta de criação de uma “Área de Livre Comércio das Américas” – ALCA e, finalmente, os acordos bilaterais com o Chile, Peru, Colômbia e com os países da América Central.

6. Nesse contexto hemisférico, o principal objetivo norte-americano é incorporar o Brasil e a Argentina, que são as duas principais economias industriais da América do Sul, a esse grande “conjunto” de áreas de livre comércio bilaterais, onde as regras relativas ao movimento de capitais, aos investimentos estrangeiros, aos serviços, às compras governamentais, à propriedade intelectual, à defesa comercial, às relações entre investidores estrangeiros e Estados seriam não somente as mesmas, como permitiriam a plena liberdade de ação para as megaempresas multinacionais e reduziria ao mínimo a capacidade dos Estados nacionais para promover o desenvolvimento, ainda que capitalista, de suas sociedades e de proteger e desenvolver suas empresas (e capitais nacionais) e sua força de trabalho.

7. A existência do MERCOSUL, cuja premissa é a preferência em seus mercados às empresas (nacionais ou estrangeiras) instaladas nos territórios da Argentina, do Brasil, do Paraguai e do Uruguai em relação às empresas que se encontram fora desse território e que procura se expandir na tentativa de construir uma área econômica comum é incompatível com objetivo norte-americano de liberalização geral do comércio de bens, de serviços, de capitais etc que beneficia as suas megaempresas, naturalmente muitíssimo mais poderosas do que as empresas sul-americanas.

8. De outro lado, um objetivo (político e econômico) vital para os Estados Unidos é assegurar o suprimento de energia para sua economia, pois importam 11 milhões de barris diários de petróleo sendo que 20% provêm do Golfo Pérsico, área de extraordinária instabilidade, turbulência e conflito.

9. As empresas americanas foram responsáveis pelo desenvolvimento do setor petrolífero na Venezuela a partir da década de 1920. De um lado, a Venezuela tradicionalmente fornecia petróleo aos Estados Unidos e, de outro lado, importava os equipamentos para a indústria de petróleo e os bens de consumo para sua população, inclusive alimentos.

10. Com a eleição de Hugo Chávez, em 1998, suas decisões de reorientar a política externa (econômica e política) da Venezuela em direção à América do Sul (i.e. principal, mas não exclusivamente ao Brasil), assim como de construir a infraestrutura e diversificar a economia agrícola e industrial do país viriam a romper a profunda dependência da Venezuela em relação aos Estados Unidos.

11. Essa decisão venezuelana, que atingiu frontalmente o objetivo estratégico da política exterior americana de garantir o acesso a fontes de energia, próximas e seguras, se tornou ainda mais importante no momento em que a Venezuela passou a ser o maior país do mundo em reservas de petróleo e em que a situação do Oriente Próximo é cada vez mais volátil.

12. Desde então, desencadeou-se campanha mundial e regional de mídia contra o Presidente Chávez e a Venezuela, procurando demonizá-lo e caracterizá-lo como ditador, autoritário, inimigo da liberdade de imprensa, populista, demagogo etc. A Venezuela, segundo a mídia, não seria uma democracia e para isso criaram uma “teoria” segundo a qual ainda que um presidente tenha sido eleito democraticamente, ele, ao não “governar democraticamente”, seria um ditador e, portanto, poderia ser derrubado. Aliás, o golpe já havia sido tentado em 2002 e os primeiros líderes a reconhecer o “governo” que emergiu desse golpe na Venezuela foram George Walker Bush e José María Aznar.

13. À medida que o Presidente Chávez começou a diversificar suas exportações de petróleo, notadamente para a China, substituiu a Rússia no suprimento energético de Cuba e passou a apoiar governos progressistas eleitos democraticamente, como os da Bolívia e do Equador, empenhados em enfrentar as oligarquias da riqueza e do poder, os ataques redobraram orquestrados em toda a mídia da região (e do mundo).

14. Isso apesar de não haver dúvida sobre a legitimidade democrática do Presidente Chávez que, desde 1998, disputou doze eleições, que foram todas consideradas livres e legítimas por observadores internacionais, inclusive o “Centro Carter”, a ONU e a OEA.

15. Em 2001, a Venezuela apresentou, pela primeira vez, sua candidatura ao MERCOSUL. Em 2006, após o término das negociações técnicas, o Protocolo de adesão da Venezuela foi assinado pelos Presidentes Chávez, Lula, Kirchner, Tabaré e Nicanor Duarte, do Paraguai, membro do Partido Colorado. Começou então o processo de aprovação do ingresso da Venezuela pelos Congressos dos quatro países, sob cerrada campanha da imprensa conservadora, agora preocupada com o “futuro” do MERCOSUL que, sob a influência de Chávez, poderia, segundo ela, “prejudicar” as negociações internacionais do bloco etc. Aquela mesma imprensa que rotineiramente criticava o MERCOSUL e que advogava a celebração de acordos de livre comércio com os Estados Unidos, com a União Européia etc, se possível até de forma bilateral, e que considerava a existência do MERCOSUL um entrave à plena inserção dos países do bloco na economia mundial, passou a se preocupar com a “sobrevivência” do bloco.

16. Aprovado pelos Congressos da Argentina, do Brasil, do Uruguai e da Venezuela, o ingresso da Venezuela passou a depender da aprovação do Senado paraguaio (dominado pelos partidos conservadores representantes das oligarquias rurais e do “comércio informal”), que passou a exercer poder de veto, influenciado em parte pela sua oposição permanente ao Presidente Fernando Lugo, contra quem tentou 23 processos de “impeachment” desde a sua posse em 2008.

17. O ingresso da Venezuela no MERCOSUL teria quatro consequências: dificultar a “remoção” do Presidente Chávez através de um golpe de Estado; impedir a eventual reincorporação da Venezuela e de seu enorme potencial econômico e energético à economia americana; fortalecer o MERCOSUL e torná-lo ainda mais atraente à adesão dos demais países da América do Sul; dificultar o projeto americano permanente de criação de uma área de livre comércio na América Latina, agora pela eventual “fusão” dos acordos bilaterais de comércio, de que o acordo da “Aliança do Pacifico” é um exemplo.

18. Assim, a recusa do Senado paraguaio em aprovar o ingresso da Venezuela no MERCOSUL tornou-se questão estratégica fundamental para a política norte-americana na América do Sul.

19. Os líderes políticos do Partido Colorado, que esteve no poder no Paraguai durante sessenta anos, até a eleição de Lugo, e os do Partido Liberal, que participava do governo Lugo, certamente avaliaram que as sanções contra o Paraguai em decorrência do impedimento de Lugo seriam principalmente políticas, e não econômicas, limitando-se a não poder o Paraguai participar de reuniões de Presidentes e de Ministros do bloco. 

Feita essa avaliação, desfecharam o golpe. Primeiro, o Partido Liberal deixou o governo e aliou-se aos Colorados e à “União Nacional dos Cidadãos Éticos” – UNACE e aprovaram, a toque de caixa, em uma sessão, uma resolução que consagrou um rito superssumário de “impeachment”. 

Assim, ignoraram o Artigo 17 da Constituição paraguaia que determina que “no processo penal, ou em qualquer outro do qual possa derivar pena ou sanção, toda pessoa tem direito a dispor das cópias, meios e prazos indispensáveis para apresentação de sua defesa, e a poder oferecer, praticar, controlar e impugnar provas”, e o artigo 16 que afirma que “o direito de defesa das pessoas é inviolável”.

20. Em 2003, o processo de impedimento contra o Presidente Macchi, que não foi aprovado, levou cerca de 3 meses, enquanto o processo contra Fernando Lugo foi iniciado e encerrado em cerca de 36 horas. O pedido de revisão de constitucionalidade apresentado pelo Presidente Lugo junto à Corte Suprema de Justiça do Paraguai sequer foi examinado, tendo sido rejeitado in limine.

21. O processo de impedimento do Presidente Fernando Lugo foi considerado golpe por todos os Estados da América do Sul e de acordo com o “Compromisso Democrático do MERCOSUL” o Paraguai foi suspenso da UNASUR e do MERCOSUL, sem que os neogolpistas manifestassem qualquer consideração pelas gestões dos Chanceleres da UNASUR, que receberam, aliás, com arrogância.

22. Em consequência da suspensão paraguaia, foi possível e legal para os governos da Argentina, do Brasil e do Uruguai aprovarem o ingresso da Venezuela no MERCOSUL a partir de 31 de julho próximo. Acontecimento que nem os neogolpistas nem seus admiradores mais fervorosos – EUA, Espanha, Vaticano, Alemanha, os primeiros a reconhecer o governo ilegal de Franco – parecem ter previsto.

23. Diante dessa evolução inesperada, toda a imprensa conservadora dos três países, e a do Paraguai, e os líderes e partidos conservadores da região, partiram em socorro dos neogolpistas com toda sorte de argumentos, proclamando a ilegalidade da suspensão do Paraguai (e, portanto, afirmando a legalidade do golpe) e a inclusão da Venezuela, já que a suspensão do Paraguai teria sido ilegal.

24. Agora, o Paraguai procura obter uma decisão do “Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL” sobre a legalidade de sua suspensão do MERCOSUL enquanto, no Brasil, o líder do PSDB anuncia que recorrerá à justiça brasileira sobre a legalidade da suspensão do Paraguai e do ingresso da Venezuela.

25. A política externa norte-americana na América do Sul sofreu as consequências totalmente inesperadas da pressa dos neogolpistas paraguaios em assumir o poder, com tamanha voracidade que não podiam aguardar até abril de 2013, quando serão realizadas as eleições, e agora articula todos os seus aliados para fazer reverter a decisão de ingresso da Venezuela.

26. Na realidade, a questão do Paraguai é a questão da Venezuela, da disputa por influência econômica e política na América do Sul e de seu futuro como região soberana e desenvolvida.”

FONTE: escrito pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães especialmente para a “Carta Maior(http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20570). [Imagem do Google adicionada por este blog ‘democracia&política’].

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