segunda-feira, 13 de maio de 2013

AS CONSEQUÊNCIAS ANTIDEMOCRÁTICAS DA CONCENTRAÇÃO DE RIQUEZA


Por Vicenç Navarro, do diário “PÚBLICO” (da Espanha). Versão em português do “Esquerda.net”, de Portugal
 
“Uma das características da situação dos dois lados do Atlântico Norte foi o enorme crescimento das desigualdades, com grande concentração dos rendimentos e da propriedade, unida à grande deterioração das instituições democráticas, causada por essa concentração. As instituições políticas dos países estão muito influenciadas por poderes financeiros e econômicos e pelos setores com maior riqueza, que induzem as intervenções públicas a favorecer os interesses desses poderes e setores à custa dos da maioria da população.

Isso está criando perda de legitimidade e de apoio popular às instituições chamadas representativas, junto com a diluição da confiança que a cidadania tinha no poder do Estado (dirigido pelas autoridades políticas) para garantir desenvolvimento econômico do país, de tal maneira que as gerações novas vivessem melhor que as anteriores. Essa esperança desapareceu. Na realidade, grandes setores da população, que nalguns países chegam à maioria, são conscientes de que “os filhos não viverão melhor do que os seus pais”. Esse sentimento ficou muito bem refletido nas declarações do candidato, mais tarde presidente de França, François Hollande, expressadas durante a campanha eleitoral naquele país. “Até há pouco – disse Hollande – todos tínhamos a convicção de que os nossos filhos teriam melhores vidas que nós. Já não é assim. Essa convicção, que responde a uma realidade, está desaparecendo”. Essa situação é paradoxal, pois a riqueza dos países (incluindo a França) continua a crescer, na medida em que cresce a sua economia, realidade que só se interrompeu recentemente com a Grande Recessão. Mas essa convicção (e realidade que a sustenta) já existia antes da recessão, ainda que se tenha acentuado mais com a crise atual.

Como é possível que a sociedade seja mais rica e que, em contrapartida, os filhos vivam pior que os seus pais?

A resposta a essa pergunta é que o crescimento econômico se distribui muito desigualmente, concentrando-se nos rendimentos superiores, como resultado das políticas públicas que se aplicaram na maioria dos países do Atlântico Norte. Essas políticas foram iniciadas pelo presidente Reagan nos EUA e pela Sra. Thatcher na Grã-Bretanha, na década de oitenta do passado século.

No seu artigo “The Rich get Richer. Neo-liberalism and Soaring Inequality in the United States” na revista de economia norte-americana “Challenge” (março-abril de 2013), o autor, Tim Koechlin, detalha a grande concentração dos rendimentos e da riqueza nos EUA como consequência da aplicação dessas políticas. Em 1979, os 1% da população com maiores rendimentos (os super-ricos) ganhavam 9% de todo o rendimento dos Estados Unidos. Em 2007, essa percentagem aumentou para 24%, a mais elevada registrada desde 1920, quando se iniciou a Grande Depressão nos EUA.

De onde procede essa concentração dos rendimentos e da riqueza? A resposta reside na má distribuição da riqueza criada pelo mundo do trabalho. Os dados mostram-no claramente. A produtividade do trabalhador durante o período 1973-2008 praticamente duplicou. Isto é, um trabalhador produzia por hora quase mais duas vezes em 2008 do que o que produzia em 1973. O seu salário, no entanto, cresceu só 10% durante o mesmo período. Mas os diretores das grandes empresas viram crescer os seus rendimentos desmesuradamente. Enquanto o CEO (Chief Executive Officer) de uma grande empresa recebia, em 1973, 22 vezes mais que o trabalhador médio da sua empresa, em 2008 essa relação subiu para 231 vezes (segundo Lawrence Mishel, “The State of Working America”. A “report of the Economic Policy Institute”. 2012, table 4.33).

Uma situação ainda mais acentuada ocorre quanto à distribuição dos elementos da propriedade que geram renda (tais como terras, ações, bônus etc.). Entre 1983 e 2010, os 5% da população com maior propriedade viram-na crescer 83%, enquanto os 80% de toda a população (a grande maioria da cidadania) viram descer a sua propriedade em 3,2%. Em consequência, os 1% da população com maior riqueza, que tinham 20% de toda a riqueza em 1971, passaram a ter 35% em 2007. Os 10% dos super-ricos em 2007 tinham 73% de toda a riqueza, enquanto os 40% das famílias (as classes populares) tinham só 4,2% de toda a propriedade. A concentração da riqueza atingia níveis ainda mais exuberantes em alguns tipos de propriedade. Assim, os 10% da população tinham 98,5% de todos os valores financeiros (ações e outros títulos de crédito), enquanto os 90% restantes tinham somente 1,5%.

A concentração de poder econômico e financeiro enfraquece enormemente a democracia, até o ponto de eliminá-la em muitos países.

Essa enorme concentração dos rendimentos e da riqueza dificulta e impede o desenvolvimento democrático de um país, pois os setores ricos e super-ricos da população exercem enorme influência, poderia dizer-se controle, sobre os aparelhos dos seus Estados e os seus ramos executivos, legislativos e judiciais. Mais, esses grupos e setores desenvolvem as suas próprias redes, associações e conferências (nas quais são incorporados dirigentes políticos de todas as sensibilidades políticas), promovendo as suas ideologias, que coesionam e defendem os seus interesses, apresentando-os como os únicos aceitáveis ou respeitáveis, e as suas políticas (que favorecem os seus interesses) como as únicas possíveis.

As alianças dessas elites desempenham papel chave nas realidades políticas. O casamento entre os super-ricos e ricos, por um lado, e os políticos conservadores e liberais (e de uma maneira crescente algumas personagens da social-democracia), pelo outro, é uma constante nos sistemas políticos, fonte de contínua corrupção. Há múltiplos exemplos disso. A influência da família que governa um sistema quase feudal, o Qatar, nas instituições políticas europeias não é menor. O presidente Nicolas Sarkozy deu amplas vantagens fiscais aos interesses dessa família, que lhe subvencionou as campanhas eleitorais e mais tarde as suas atividades pós-presidenciais. Tony Blair é um dos assessores melhor pagos do “J.P. Morgan” (e é frequentemente convidado por fundações e grupos de reflexão para dar lições sobre o futuro da social-democracia). E estou escrevendo estas linhas no mesmo dia em que o Sr. Giuliano Amato foi proposto como Presidente da Itália pelo Partido Democrático da Esquerda italiana, sendo esse político um assessor bem pago do “Deutsche Bank”. Na Espanha, a lista de Presidentes, Ministros e autoridades políticas dos partidos majoritários em grandes empresas e nas suas CEO (Endesa, Telefónica, Repsol etc.) é enorme. Não é casualidade que o preço da eletricidade e das chamadas telefônicas, bem como o do petróleo, sejam dos mais caros da UE. Essa cumplicidade entre os grupos financeiros e econômicos e a classe política dominante é a característica destes tempos. A imunidade da banca, com os seus conhecidos paraísos fiscais, baseia-se precisamente nessa cumplicidade.

Não é preciso dizer que há muitos políticos que não fazem parte dessa engrenagem de cumplicidades. Mas as elites dirigentes estão, sim, plenamente entrelaçadas com interesses fáticos que configuram em grande maneira as suas políticas públicas. Daí que a grande maioria desses super-ricos e ricos não pague impostos, ou pague muito menos em termos proporcionais que o cidadão normal e corrente, coisa que é feita até com a lei na sua mão, sem precisar de comportamentos ilegais (sem excluir, no entanto, essas práticas, que estão também generalizadas).

Esse sistema está em profunda crise. O casamento do poder financeiro-econômico com o poder político é o eixo do descrédito das instituições chamadas democráticas, que tem a sua origem (causa e consequência) nas enormes desigualdades. A excessiva proximidade entre a classe política dominante e as classes sociais dominantes (as elites financeiras e empresariais e os setores afins de rendimentos superiores) mostra-se com toda a clareza na distância existente entre as elites dirigentes e as suas políticas públicas, por um lado, e as classes populares, que constituem a maioria da população, pelo outro. Estas últimas desejam políticas diferentes e opostas às que as primeiras estão promovendo e implementando. Existem múltiplos exemplos disso. A grande maioria das populações do Atlântico Norte consideram que:


1) os rendimentos do capital deveriam ser taxados na mesma proporção que os rendimentos do trabalho, sem que isso tenha sido aceito pelos governos;
2) a fiscalidade deveria ser progressiva, de maneira que os super-ricos e ricos pagassem (na realidade, e não só nominalmente) em impostos tantas vezes mais do que o cidadão normal e corrente paga quanto seja a diferença de rendimentos e propriedade entre os super-ricos e ricos, e o cidadão normal e corrente;
3) dever-se-iam eliminar os paraísos fiscais;
4) dever-se-ia estabelecer um máximo de riqueza e de nível de rendimentos, como mecanismo de redução das desigualdades;
5) dever-se-iam reduzir as desigualdades que (os 78% de cidadãos como média da UE) consideram excessivas;
6) dever-se-ia eliminar a influência do dinheiro nas campanhas políticas e na solvência dos partidos políticos;
7) dever-se-ia romper o casamento entre instituições financeiras e empresariais e o mundo político;
8) um político não deveria poder trabalhar no setor que regulava ou vigiava na administração pública, nos primeiros cinco anos após deixar o cargo;
9) o Estado deveria intervir no setor financeiro para garantir a disponibilidade do crédito a famílias, indivíduos e médias e pequenas empresas;
10) deveria haver um salário mínimo que permitisse vida decente e que aumentasse de acordo com o aumento dos preços;
11) dever-se-iam garantir os serviços públicos do Estado de Bem-estar, evitando a sua privatização; e assim um longo etcétera.

Nenhuma dessas políticas está sendo levada a cabo nesses países. E, em nível macroeconômico, a maioria da cidadania deseja o fim das políticas de austeridade e quer políticas de expansão dirigidas a criar pleno emprego. O fato de que não se realize cada um desses pontos deve-se à excessiva influência que os grupos que concentram os rendimentos e a riqueza têm sobre o Estado. E aqui está o problema da democracia. Frente a essa realidade, limitar o debate à reforma política sobre se devem ou não haver listas abertas, parece-me muito, mas muito insuficiente.”

FONTE: artigo publicado por Vicenç Navarro na coluna “Domínio Público” do diário “PÚBLICO” (Espanha), em 9 de maio de 2013. Tradução de Luis Leiria para o site “Esquerda.net” de Portugal. Transcrito no site “Carta Maior”   (
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22030
). [Adaptações de forma para o português adotado no Brasil efetuadas por este blog ‘democracia&política’].

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