Por
Hidelgard Angel [*]
“Vocês
rapidamente perceberão que o texto abaixo, pelo brilhantismo e o “domínio do
fato”, não é meu. Pois, do direito, no muito, tenho um senso de justiça, sei
discernir o certo do errado, procuro andar em linha reta e não escrever por
elas tortas. Isso, só Deus.
O brilhante autor do texto entre aspas é um sábio inquestionável, uma águia do direito brasileiro.
Coletei
suas opiniões e pensamentos em livro adquirido em leilão, edição de 1917, sobre
a “Questão Minas Werneck”, por ele
defendida no Supremo Tribunal Federal, nas “Appelações de sentenças arbitraes”.
Em
seus belos escritos, encontrei inspiração e grandes semelhanças com os impasses
e mesmo as acaloradas discussões entre pares – os ministros - no julgamento dos recursos da AP
470, que acontece no
momento no STF.
Como
testemunhamos, na última sessão, quando o juiz Lewandowsky, pretendendo estudar um recurso e,
talvez, reconsiderar um voto, o juiz Barbosa interpôs-se a ele, por considerar
aquela causa decidida.
A
atitude do presidente da Corte inspirou a quem assistia serem, aquelas sessões
de recurso, meras formalidades, para confirmar as primeiras sentenças.
Vamos
ver o que diz o douto sábio dos sábios do Direito brasileiro. Vamos ver o que
pensaria sobre o embate o notável Ruy
Barbosa, a Águia de Haia!
Escutemos
o GRANDE RUY:
“Apanhar-se
em contradição, o sujeito que tem a coragem infame de variar de opinião, é o
prazer dos prazeres. Se os deuses houvessem reservado como privilégio divino
essa faculdade, cada consumidor brasileiro de papel seria um Prometeu absorto
em escalar as nuvens, não à procura do céu, mas em busca da prenda celeste de
escarafunchar divergências de ontem para o hoje nas opiniões alheias. Quando se
topa, nas letras remexidas, com um desses achados preciosos, é dia de festa,
ilumina-se a casa, leva à boca o megafone e se anuncia ao longe que o
adversário está esmagado.
Não há, entretanto, inutilidade mais inútil. Os homens de siso e consciência riem dessas malícias. Só a ignorância ou a imbecilidade não se contradizem; porque não são capazes de pensar.
Só a
vulgaridade e a esterilidade não variam; porque são a eterna repetição de si
mesmas. Só os sábios baratos e os néscios caros podem ter o curso das suas
ideias igual e uniforme como os livros de uma casa de comércio; porque nunca
escreveram nada seu, nem conceberam nada novo.
A
sinceridade, a razão, o trabalho, o saber não cessam de mudar: não há outra maneira humana de acertar e
produzir. Varia a fé; varia a ciência; varia a lei; varia a justiça; varia
a moral; varia a própria verdade; varia nos seus aspectos a criação mesma;
tudo, salvo a intuição de Deus e a noção dos seus divinos mandamentos, tudo
varia. Só não variam o obcecado, ou o fóssil, o ignorante ou o néscio, o
maníaco ou o presunçoso.
Pode
ser que no miolo de um compilador caiba inteiro o imenso universo jurídico,
petrificado, imutabilizado e catalogado nas suas regras, nas suas hipóteses e
nos seus resultados. Tirante, porém, essas cabeças privilegiadas, tudo no
direito é mudar constantemente; porque o direito resulta da evolução, e a
envolver consiste no variar.
Há os grandes princípios, que formam a estrutura permanente desse mundo; mas, na vasta atmosfera de ideias que o envolve, nas grandes correntes dos sistemas, que o sulcam, nos maravilhosos fenômenos criadores, que o animam, em todas as organizações que o povoam, em todos os resultados que o enriquecem, tudo se transmuta e renova e transforma dia a dia.
Há os grandes princípios, que formam a estrutura permanente desse mundo; mas, na vasta atmosfera de ideias que o envolve, nas grandes correntes dos sistemas, que o sulcam, nos maravilhosos fenômenos criadores, que o animam, em todas as organizações que o povoam, em todos os resultados que o enriquecem, tudo se transmuta e renova e transforma dia a dia.
De
dia em dia esses grandes princípios envolvem, progridem e cambiam, na
interpretação, aplicação e reprodução, que lhes constituem a vida real. Não há
decretos, que se não revoguem, nem decisões, que se não alterem, nem sentenças,
que se não reformem, nem arestos, que se não cancelem, ou doutrinas, que não
passem, lições, que não desmereçam, axiomas, que não caduquem.
Os
textos, os códigos, as constituições, guardado o mesmo rosto e a mesma
linguagem, na sua inteligência e ação continuamente se vão modificando:
significam hoje o contrário do que ontem significavam; amanhã exprimirão coisa
diversa da que hoje estão exprimindo; e, nesse contínuo acomodar-se às
exigências das gerações sucessivas, tomam, sucessivamente, a cor das épocas,
das escolas, dos homens, que os entendem, comentam ou executam.
De
sorte que, na tribuna do legislador, na cadeira do lente, na banca do
causídico, no pretório do juiz, a palavra, as mais das vezes, não faz senão
registrar as mutações e alternativas, em que direis consistir a essência mesma
de nosso pensamento e atividade.
Assim que, debaixo do céu, tudo obedece a essa eterna lei de transmutação incessante das coisas. Se nihil sole novum, também poderíamos dizer que nihil sub sole constans. Se todo o mundo se compõe de contradições, dessas contradições é que resulta a harmonia do mundo. Se das variações pode emanar o erro, sem as variações o erro não se corrige. A boa filosofia é a de Joubert, quando nos aconselha que, se por amor da verdade, houvermos de cair em contradições, não vacilemos em nos expor a elas de corpo e alma. Se “a razão nunca está em contradição consigo mesma, quando segue as suas leis”, como dizia o honesto Julio Simon, a única espécie de contradição, de que o espírito terá receio, é a de se empedernir no erro, quando enxerga a verdade.
O
homem não está em contradição consigo mesmo, senão quando o está com a sua
natureza moral, que o ensina a considerar-se desonrado, quando atina com a
verdade, e se obceca no erro. É assim que o nosso próprio organismo vive, mudando
toda a hora, sem mudar nunca; porque da sua identidade realmente não muda,
senão quando, quebradas as suas leis orgânicas pela doença ou pela morte, deixa
de eliminar o que deve eliminar, e absorver o que lhe convém absorver.
Mas,
se neste ir e vir contínuo e nesse incessante mudar giram todos os viventes,
como todas as coisas, não haverá, talvez, nenhum domínio da vida, em que tanto
suba de ponto a instabilidade, quanto nessas incomensuráveis regiões onde
impera o direito, nas circunstâncias que o realizam, nos elementos que o
definem, nas fórmulas que o regem, nas interpretações que o esclarecem, nas
soluções que o aplicam. Por isso, não muda somente a jurisprudência nacional,
com o variar dos tribunais, não muda só a de cada tribunal com a mudança de
seus membros, senão também a de cada juiz, muitas vezes, na mesma causa, de um
a outro julgamento, e não raras com toda a razão; pois justamente para isso é
que a lei nos assegura, não só as apelações, de uma a outra instância, mas os
embargos, decididos pelo mesmo magistrado, a cuja sentença as opomos.
Pois,
se a toga do magistrado não se deslustra, retratando-se dos seus despachos e
sentenças, antes se relustra, desdizendo-se do sentenciado ou resolvido, quando
se lhe antolha claro o engano, em que laborava, ou a injustiça, que cometeu,
não compreendemos que caiba no senso comum dar em rosto a um jurista, ou a um
advogado com o repúdio de uma opinião outrora abraçada.
E,
se, como no caso, essa opinião era, não uma tese consagrada, mas uma novidade
ainda imatura, se nem se sustentara com a tese do pleito, nem constituía
argumento essencial numa demonstração, mas apenas a auxiliava, e lhe era
acessória, óbvio parece que a ‘semrazão’ dobra e tresdobra em estranheza”.
Petrópolis,
fevereiro de 1917
RUY BARBOSA
RUY BARBOSA
Ainda
o RUY:
“O
bom senso humano, em todos os tempos, tem reconhecido não ser lícito abandonar
a sorte da lei comum e dos direitos por ela assegurados às contingências do
julgamento por um só tribunal. Daí a concepção das instâncias, dos recursos e,
especialmente, das apelações, destinadas a corrigirem, mediante segundo exame
do caso em cada lide, os vícios, omissões e nulidades do processo, os erros,
abusos e injustiças da sentença.
”Apellandi
usus quam sit frequens quamque necessarius,nemo est qui nesciat, quippe cúm
iniquitatem judicantium vel imperitiam recorrigat.”
(Fr. I D. de appellationibus, XLII I.)
(Fr. I D. de appellationibus, XLII I.)
Ninguém
há, que não saiba, diz o fragmento do texto de Ulpiano incorporado neste lance
das Pandecas, “ninguém há, que não saiba
quão frequente e quão necessário é o uso de apelar, remédio que se criou para
corrigir a iniquidade e reparar a perícia dos julgadores”.
Dessa noção de justiça rudimentar só discrepou a grande matriz do nosso direito civil e do nosso direito judiciário, a jurisprudência romana, em outras épocas tenebrosas como as de Calígula, que vedou as apelações, e Nero, que as impediu (…)”.
Petrópolis,
fevereiro de 1917
RUY BARBOSA
RUY BARBOSA
[*] A jornalista, para tornar a leitura
acessível a todos, atualizou alguns termos para a linguagem mais corrente,
como, por exemplo, trocar “empeceu” por “impediu”.
FONTE:
postado pela jornalista Hidelgard Angel em seu blog (http://www.hildegardangel.com.br/?p=26676). [Imagem do Google acrescentada por
este blog ‘democracia&política’].
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