sábado, 31 de agosto de 2013

CHAUÍ FALA SOBRE MANIFESTAÇÕES

Em entrevista à revista “Cult”, a filósofa Marilena Chauí dá sua opinião sobre as “jornadas de junho”, as grandes manifestações que tomaram conta do Brasil no período.

Da Revista CULT n˚ 182

A LUCIDEZ DE MARILENA CHAUI

Por Juvenal Savian Filho

"Não seria possível não ouvir Marilena Chauí a respeito das manifestações de 2013. Pensadora de importância inestimável na história da cultura brasileira, Marilena chamou a atenção nos últimos anos por ter rompido com a mídia. Depois do tratamento imprudente que a maior parte do jornalismo brasileiro deu a questões políticas graves, Marilena decidiu “não falar mais”. Seu silêncio tornou-se insuportável para os grandes veículos de comunicação.


Frequentemente, cronistas dizem: “o que Marilena Chaui pensaria sobre isso?”. É óbvia a ironia da pergunta, usada para dar a entender que o silêncio de Marilena se deve ao fato de ela não ter o que dizer diante dos erros do PT e do governo federal, tão defendidos por ela nos últimos 10 anos.

À CULT, porém, Marilena nunca fechou as portas. Muito pelo contrário. E no último domingo de junho, em plena fase das manifestações por todo o Brasil, ela nos acolheu em sua casa, no fim da tarde, para uma conversa franca na qual ela, não apenas comenta o sentido das manifestações, com também fala com sinceridade de suas críticas ao PT e ao governo do PT. Não o faz, todavia, com amargura ou ressentimento, mas com a força e a coragem de uma mulher lúcida e clara, engajada numa luta que não se perde nem em posições ligeiras nem em novidades fáceis. Com a generosidade que a caracteriza, ela sabe triar o que é bom e o que deve ser questionado, mas sendo sempre movida pelo bem, pela responsabilidade intelectual e pela lucidez de quem tem experiência. Como dizia Maurice Merleau-Ponty, o intelectual é aquele que “levanta e fala”. Mas, muitas vezes, o levantar e o falar têm sido acompanhados de inconsequências que vão desde a incapacidade de análise até ao autoritarismo da arrogância em nome da racionalidade (ou em nome de nada…). Definitivamente, esse não é o caso de Marilena Chauí.

CULT: Qual foi sua primeira reação ao ver tanta gente nas ruas durante as manifestações de 2013?

Marilena Chauí: Um susto! Acompanhei as tentativas de manifestação do “Passe Livre” na USP e vi que o movimento não conseguia mais do que três gatos pingados para escutar. Nem digo participar da manifestação, mas escutar. Imaginei que iriam para a rua com cinquenta, cem pessoas. Então, levei um susto, pois não tinha entendido a relação entre o que eles estavam fazendo, ou seja, a fórmula clássica da mobilização, e o uso das redes sociais. Se eu soubesse que eles iriam usar as redes sociais, não teria me assustado, pois associaria com outros eventos que já vi no mundo.

CULT: E como se deu sua compreensão das manifestações?

MC:
No primeiro dia, pelo menos em São Paulo, as palavras de ordem eram referentes ao transporte. Depois da primeira manifestação, participei do “Conselho da Cidade” convocado pelo prefeito Fernando Haddad. Os representantes do “Passe Livre” foram e falaram. Eles eram cinco e cada um falou 15 minutos. Depois, os conselheiros falaram. Todos os conselheiros pediram a revogação do aumento das tarifas. O secretário municipal de Transportes, Jilmar Tatto, mostrou as planilhas e depois falou o prefeito. Eu imediatamente pensei: se o prefeito revogar, os meninos vão à rua comemorar. Se ele não revogar, vai haver uma passeata não só como a primeira, mas sobretudo com incorporação das palavras de ordem das outras cidades. E não deu outra. Algumas pessoas ficaram perplexas; eu não. Diziam: “Como pode haver manifestação? A inflação está sob controle; o desemprego diminuiu; os programas sociais funcionam; há estabilidade econômica e política!” Ou seja, os temas que sempre caracterizaram as manifestações no Brasil estavam ausentes. Eu não fiquei perplexa no que se refere a São Paulo, porque tenho dito há um bom tempo que a cidade está se tornando um inferno urbano. Está impossível viver nela, seja pelo trânsito, pela indecência do transporte coletivo, seja pela explosão demográfica com os condomínios e shopping centers. Achei compreensível, e, num primeiro momento, pensei que as manifestações iriam girar em torno dos temas urbanos. Mas quando se viraram contra a política, contra a mediação institucional, aí, sim, fiquei com medo, porque já vi esse filme em 1964 e 1969. A gente sabe o que aconteceu nos anos 1920, na Itália, e nos anos 1930, na Alemanha, sobre a recusa da política.

C: Mas se falou muito que Haddad foi ambíguo. Ele disse que não revogava o aumento das tarifas, mas depois revogou…

MC:
Não, ele não foi ambíguo. Ele disse o seguinte: “Se eu revogar, significa que tenho de aumentar o subsídio. Para aumentar o subsídio, vou ter de cortar recursos dos programas sociais. Então, tenho de ver isso com meu secretariado; tenho de analisar onde eu vou mexer para subsidiar e para fazer o corte”. Na verdade, ele pediu um tempo para as pessoas. Não disse que não iria revogar. E foi nessa hora que alguns conselheiros (como os do movimento “Afroeducação”) e os membros do “Passe Livre” disseram que não queriam saber de planilha, que queriam a revogação imediata. Então, não houve ambiguidade. Faltou intuição política, pois Haddad poderia ter dito: “Vou revogar, mas convido imediatamente o ‘Movimento Passe Livre’ para uma reunião comigo e com o secretariado para fazermos um estudo de onde eu vou tirar o subsídio”. Com isso, ele incorporaria o movimento à discussão de outros problemas da cidade e teria sido mais politizador. Haddad deu uma resposta técnica em um momento que pedia uma resposta política.

C: Algumas pessoas dizem que as manifestações tiveram uma deriva à direita. Um dado curioso é que há políticos da oposição, seja de “esquerda”, como os do PSTU e do PSOL, seja de “centro-direita”, como os do PSDB, que se têm servido das manifestações para alimentar um discurso anti-PT e anti-Dilma…Você vê uma deriva à direita ou uma deriva antigoverno?

MC:
Não vejo nem uma coisa nem outra neste momento. Não posso dizer que amanhã não vá ser isso. O que vejo neste momento é que, como o PSOL e o PSTU não têm representatividade social, pois são minúsculos, o crescimento da manifestação de rua fez com que eles julgassem que poderiam se apropriar dela. Não houve liderança de esquerda, mas uma tentativa, desses partidos, de se apropriar de um movimento de massa que seriam incapazes de realizar. A mesma coisa ocorre com a direita, que não tem força de mobilização, operando sempre por lobby e por meio da repressão (basta ver como opera o lobby dos ruralistas contra o MST e os índios). A chamada oposição de centro-direita está caindo pelas tabelas (basta lembrar o que aconteceu com o movimento do PSDB, o “Cansei”), e por isso, depois de investir contra os movimentos de rua por meio da repressão policial, tenta se apropriar deles porque julga que podem desestabilizar o governo Dilma. Afinal, a primeira atitude do Geraldo Alckmin foi chamar a polícia. Na USP, quando há manifestações, a primeira atitude do reitor é chamar a polícia. Não há nenhum vínculo real entre os partidos chamados de oposição, particularmente o PSDB, e os movimentos de massa. Então, o que temos é: o movimento correndo pelo meio e duas tentativas extremas de apropriação.

C: Isso favorece a apropriação pela direita?

MC:
Essa é a minha preocupação. Há elementos que favorecem a apropriação e a manipulação pela direita.

O primeiro é o fato de os manifestantes confundirem o que significa ter uma direção e o que significa ter uma liderança. Como eles se organizam em termos de autogestão e horizontalidade, sem dirigentes e dirigidos, eles identificam ter um rumo com ter um líder. Não percebem que não é a mesma coisa. As manifestações, por enquanto, estão sem rumo; têm palavras de ordem as mais variadas, mas não um rumo, o que as torna fragéis e apropriáveis pela mídia e pela direita.

O segundo elemento é o que eu chamo de “pensamento mágico”: os manifestantes usaram as redes sociais, ou seja, um instrumento do qual são apenas usuários e de que não têm conhecimento técnico aprofundado, nem qualquer controle econômico. As redes estão inseridas numa gigantesca estrutura técnico-científica, econômica e com vigilância e controle geopolíticos [pelos EUA] (o caso que acaba de ser revelado da espionagem norte-americana sobre todo o planeta não pode ser minimizado), de maneira que, sob a aparência de ser uma alternativa libertária, ela também insere os usuários no mundo do controle e da vigilância. Penso que o caso do Egito é um alerta, embora, evidentemente, é um caso que não se compara ao nosso, pois lá a luta está mergulhada nos problemas postos pelas ditaduras e pelo fundamentalismo religioso, e, aqui, se dão numa democracia como luta por direitos. Mas o estopim lá (como em Nova York, na Wall Street) foi o uso das redes sociais. Há ainda outro aspecto das redes que me pareceu muito claro nas manifestações brasileiras, ou seja, como o usuário não conhece bem o modo de funcionamento das redes, e como para ele basta apertar um botão para que coisas aconteçam, passa-se a ter com a realidade uma relação do mesmo tipo: eu quero, então acontece. Como num ato mágico.

C: Sem nenhuma mediação…

MC:
Sem mediação. Essa relação mágica com a realidade está diretamente relacionada com um elemento poderosíssimo da sociedade de consumo e muito usado pelos meios de comunicação: a satisfação imediata do desejo. É uma das raízes da violência, porque anula a mediação, quando, na verdade, o desejo precisa de mediação. No âmbito das manifestações, isso se expressa pela recusa da mediação política. Por que falo em “pensamento mágico”? Porque o fato de que houve longa e difícil negociação em torno da tarifa passa despercebido; é como se o resultado tivesse sido imediato, um passe de mágica. Ora, quando se tira a mediação institucional, o que se pede é a ditadura. Por exemplo, quando vi um rapaz enrolado na bandeira brasileira dizer “meu partido é meu país”, falei comigo mesma: “É algum neonazista que comanda esse menino, pois esse foi o discurso nazista para a supressão dos partidos políticos!”, o que é muito assustador, e ainda mais assustador quando uma parte dos manifestantes espancou e ensanguentou manifestantes de esquerda. Eu sempre digo: a crítica aos partidos brasileiros é justificada, a crítica aos governos é justificada, o que não é justificado é não perceber qual a origem desse sistema partidário, qual é a origem desse sistema eleitoral e como é que se luta contra ele. Não se luta suprimindo os partidos, mas produzindo nova institucionalidade. E não há essa percepção por grande parte dos manifestantes.

Finalmente, outro elemento a ser pensado é o fato de que – ao menos em São Paulo e no Rio – as manifestações de periferia são qualitativamente diferentes das manifestações do centro das cidades. Na periferia, não são manifestações de juventude; ao contrário, há adultos, idosos, crianças e jovens, e as demandas são muito claras. As manifestações do centro das cidades, pelo menos em São Paulo e no Rio de Janeiro, são predominantemente de classe média, e é essa presença que é preocupante, porque sabemos que, depois do “Comício dos Cem Mil”, em 1964, no Rio de Janeiro, a resposta foi a “Marcha da Família com Deus Pela Liberdade”, apoiada por Ademar de Barros (governador de São Paulo) e pelos governadores do RJ, MG e BA. Depois, houve em outros estados. Foi uma grande marcha de classe média para derrubar o governo Goulart, o que aconteceu no dia 1˚ de abril daquele ano. E depois foi a classe média que deu o sustentáculo ideológico e apoio social à ditadura civil-militar. Quando vi, nessas duas cidades, as esquerdas tendo de disputar a rua com a direita, não pude deixar de ter essas lembranças. Isso é muito preocupante.

C: Do que falamos quando falamos de classe média?

MC:
Há um ano, participei de duas reuniões do “Conselho de Desenvolvimento Social”, criado pela presidenta Dilma para pensar o que eles chamam de “nova classe média”. Nas duas ocasiões, minhas intervenções foram no sentido de dizer: não há uma nova classe média, e sim a velha classe média, que cresceu, prosperou, e está aí. O que surgiu no Brasil com os programas sociais que tiraram 40 milhões de pessoas da linha da miséria (garantido-lhes três refeições diárias, moradia e ensino fundamental) é uma nova classe trabalhadora. Não faz sentido usar os instrumentos dos institutos de pesquisa e da sociologia, falando de classe A, B, C, D, E, definidas por renda e escolaridade. É preciso pensar as classes sociais conforme sua relação com a forma da propriedade e do sistema de produção, isto é, os proprietários privados dos meios sociais de produção e os não-proprietários, isto é, a força produtiva, os trabalhadores. Situada fora do poder econômico (do capital) e da organização social (dos trabalhadores) está a classe média, que sonha com aquele poder e tem como pesadelo “cair” na classe trabalhadora. Esse critério nos permite compreender que o que surgiu no Brasil com os programas sociais foi uma nova classe trabalhadora, mas que surge no momento em que vigora o capitalismo neoliberal. Então, ela é precarizada, fragmentada, não possui formas de organização e de referência que lhe permitam ter clara identidade, nem formas de expressão no espaço público. Por isso, é atraída pelas ideologias de classe média, como a “teologia da prosperidade” (do pentecostalismo) e a do “empreendedorismo” (dos chamados microempresários). Mas eu não fui ouvida em Brasília. Depois houve uma reunião final de apresentação de resultados e a equipe técnica continuou com as classes A, B, C, D, E. Disse pra mim mesma: “Sou voto vencido. Vou para casa”. Mas pensei: “Preciso deixar isso registrado”. Então, quando a FLACSO (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) e o Emir Sader organizaram o livro sobre os dez anos Lula/Dilma, decidi que meu artigo seria sobre a nova classe trabalhadora e a necessidade de uma reforma tributária, de uma reforma política e de uma reorganização dos movimentos sociais. Eu sei que o meu artigo destoa dos outros, que se referem às conquistas reais e importantes desses dez anos, mas eu achei que tinha um dever político. Voltando precisamente às manifestações: se se opera com a noção de uma nova classe média, quais serão os programas que deverão ser implantados para atender a essa classe? Serão programas de estímulo às montadoras, às empreiteiras imobiliárias, às importadoras, aprofundando ao mesmo tempo o consumo, a competição e o isolamento. E faz-se explodir o inferno urbano. Quando falo no inferno urbano, viso essa concepção de que os programas governamentais devem estar a serviço dessa classe média.

C: Isso explica a sua afirmação de que odeia a classe média?

MC:
É.

C: De fato, ter uma casa confortável, andar de avião, comer bem e poder ir ao cinema não são sinais de classe média… É outra coisa querer absolutamente comprar um carro 4×4… É essa classe média que você odeia? Quer dizer, um ideal de consumo que se está construindo?

MC:
Quem ia à Europa nos anos 1950-1960 via trabalhadores dirigindo pequenos carros (na França, o famoso “dois cavalos” da Renault; na Inglaterra, o pequeno “biriba” da Morris; na Itália, o pequeno “cinquecento” da Fiat), saindo de férias com a família (em geral para alguma praia), fazendo compras em lojas de departamento populares, enviando os filhos a creches públicas e, quando maiores, à escola pública de primeiro e segundo graus, às escolas técnicas e mesmo às universidades; também via os trabalhadores tendo direito, juntamente com suas famílias, a hospitais públicos e medicamentos gratuitos, e, evidentemente, possuíam casa própria. Era a Europa da social-democracia e da economia keynesiana, quando as lutas anteriores dos trabalhadores organizados haviam levado à eleição de governantes de centro ou de esquerda e ao surgimento do Estado do Bem-Estar Social, no qual uma parte considerável do fundo público era destinada, sob a forma de salário indireto, aos direitos sociais, reivindicados e, então, conquistados pelas lutas dos trabalhadores. E não viria à cabeça de ninguém dizer que os trabalhadores europeus haviam passado à classe média, como se diz hoje dos trabalhadores brasileiros, após 10 anos de políticas de transferência de renda. Mais do que isso, a classe média conservadora (não falo da parte da classe média que se alinha à esquerda) não tolera isso, grita e espuma contra esses direitos dos trabalhadores. É por isso que eu falo nas “três abominações” que definem essa classe média: trata-se de uma abominação política, porque é fascista; uma abominação ética, porque é violenta; e de uma abominação cognitiva, pois ela é ignorante. Eu acho que muito do que as ruas mostraram no Brasil inteiro foram essas três abominações. Não estou celebrando, diferentemente de vários dos meus colegas, que estão dizendo que “um novo Brasil começa”, que nada será como antes, que “o gigante acordou”… Pelo contrário, para quem viu a disputa desigual pelo direito à rua entre os manifestantes de esquerda e de direita, talvez valha a pena lembrar o que escreveu Espinosa: não rir, não lamentar, não detestar nem compactuar, mas compreender.

C: Criticando esse ideal de classe média, você critica o governo federal. O que você diria, então, sobre os comentários que a tomam por alguém de postura fisiológica, cega para os problemas do PT e fascinada pelo fetiche do PT?

MC:
Vou contar dois episódios. Quando eu estava ainda no governo da Erundina (1989-1993), já no final da administração, houve um congresso do PT. Eu fui no último dia, quando havia deliberações e moções para apresentar na assembleia geral. Entrei na primeira sala, sentei. Disseram algumas coisas. Não concordei e levantei a mão. A pessoa que estava dirigindo os trabalhos disse: “A companheira é delegada”? Eu disse: “Não”. “Então a companheira não pode falar”. Pensei com meus botões: “Entrei na sala errada. Esta não é uma sala petista. Deixe-me sair”. Saí. Entrei numa outra sala, discutia-se outra coisa. Também tive uma discordância e levantei a mão. A pessoa que dirigia me perguntou: “A companheira é delegada?” Eu disse: “Não, mas já participei de tanto Congresso do PT em que a gente fala… Eu não vou votar, porque eu não sou delegada, mas eu vou falar”. “Não, a companheira não pode falar”. Esse congresso era num lugar que tinha um pátio imenso interno grande. Fui, então, para o meio do pátio e comecei a gritar: “Destruíram o PT! O PT acabou! É preciso refazer o PT!”. Fui levada para fora do recinto, porque “a companheira não estava entendendo o congresso”. Bom, eu venho do período em que o PT era a reunião de movimentos sociais e populares, “Comunidades Eclesiais de Base”, movimentos sindicais, exilados políticos, ex-guerrilheiros, estudantes, professores, escritores, artistas… Nós formávamos o partido e discutíamos tudo; decidíamos tudo. Quando vi o formato que tinha tomado, falei: “virou uma máquina burocrática”. Tanto que, embora filiada e defensora do “participo”, não participo de mais nada no interior dele, desde 1993, porque não concordo com essa estrutura. Segundo episódio: quando ocorreu o “Mensalão” e houve toda a crise, surgiu um grupo que propôs a refundação do PT sob a liderança de Tarso Genro; é um grupo que se chama “Mensagem ao PT”. Eu participo desse grupo, que é completamente autônomo. De vez em quando, temos uma ideia e comunicamos uns aos outros. O Juarez Guimarães fez um livro chamado “Leituras da Crise”. Lá se encontra minha análise crítica do que aconteceu com o PT: máquina burocrática, máquina eleitoral, sem participação das bases, afastado dos movimentos que deram origem a ele e que o fizeram crescer; portanto, um partido que precisa ser refundado. Dizer que eu estou cegada pelo PT, dizer que eu não faço críticas ao PT é coisa de gente que não lê a literatura política. Basta ler a revista “Teoria&Debate”, o livro do Juarez Guimarães e os artigos que eu publiquei mundo afora para ver que sou extremamente crítica. Mas o fato de eu ser crítica não significa que invalido o partido que vi nascer e que foi a condição do estabelecimento da democracia no Brasil, porque foi o único que introduziu a ideia de direitos sociais, políticos e culturais, pois a democracia se define pela criação e garantia de direitos novos. Eu não abro mão disso. O partido não me traiu (como dizem os que o abandonaram). Ele me encoleriza, me enraivece. Eu quero fazer outro com ele, mudá-lo de cima abaixo. Mas sou petista. Isso faz parte da minha história política, da minha luta e do enorme respeito que tenho pelos grandes militantes ao longo de sua história.

C: O que você diz sobre as críticas ao governo do PT?

MC:
Vamos começar pela questão da moralidade. Quando houve a crise do “Mensalão”, escrevi um artigo para a página 3 da “Folha de São Paulo” (foi meu último artigo para a “Folha”), em que eu dizia o seguinte: uma visão moralista fala de ética na política. Uma visão efetivamente ética tem que falar em ética da política. A ética na política é a transposição de valores privados para o espaço público; a ética da política é a criação de instituições que tenham valores democráticos e republicanos. Faz mais sentido defender a ética da política, porque se há boa qualidade das instituições, não vai poder haver corrupção, pois a corrupção decorre das péssimas qualidades das nossas instituições, que não são verdadeiramente republicanas nem verdadeiramente democráticas. Eu dizia, naquele artigo, algo que tenho dito desde 1994: que era necessário fazer uma reforma política. Nós herdamos da ditadura o pacote de abril de 1975 do general Golbery (do Couto e Silva). Esse pacote, que transformou os Territórios em Estados, dividiu o Mato Grosso, dividiu o Piauí, o Pará, enfim, rearrumou o país, tinha como finalidade garantir a maioria para a ARENA e impedir a ação política do MDB. Dessa decisão, vieram os casuísmos, o sistema eleitoral e a forma completamente absurda da representação dos estados que não leva em conta a densidade demográfica de cada estado da federação. Um dos articulistas da “Folha” respondeu, dizendo que eu era fisiológica com relação ao PT e que eu era uma comadre do governo. Nunca mais escrevi na “Folha”. Então, desde 1994 e 2004, eu bato na tecla da reforma política. Por outro lado, me chamar de fisiológica é muito engraçado, porque nunca tive cargo no partido. Ocupei a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo no governo da Erundina (aliás, eu havia recusado, explicando a ela que não podia, não devia nem queria o cargo; mas ela foi mais persuasiva…). Quando me perguntam: “Você tem uma ideia do que poderia ser o inferno?”, digo: “Sim. A Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo”. Essa experiência foi, para mim, uma violência metafísica. Não tenho cargo em governos. Não tenho cargos no PT. Não represento nenhum político de coisa nenhuma. Eu sou fisiológica no quê? Isso é o que eu chamo de “abominação cognitiva”, que significa ausência de análise e uso de uma expressão qualquer que não designa realidade nenhuma. Quer dizer, “fisiológica” no quê? Nas surras políticas que eu levo? Porque o que eu apanho por ser petista e defender o PT e o governo não está no gibi! Já me chamaram de tudo. Só não fui chamada de santa, querubim e duende. Então, é fisiologismo que eu tenha princípios políticos e que os defenda como tais? A minha questão com relação à moralidade é: o sistema gerado pelo general Golbery, que organiza os sistemas partidário e eleitoral, impede que qualquer governante eleito para o poder executivo possa governar só com o seu partido e o obriga a fazer coalizões que destroem a estrutura partidária, os programas e metas, levando a uma perda de identidade. O exemplo que eu costumo dar é o caso da Luiza Erundina. Era um governo do PT e do PCdoB. Só. Não tinha coalizões nem “base aliada”. Mas, quando ela deixou a Prefeitura, haviam ficado parados na Câmara Municipal 325 projetos de lei, a “tarifa zero” não passou, e uma série de propostas que foram votadas não foram aprovadas. Alguns políticos influentes pagavam os vereadores. Eu não vou dizer o nome deles, mas vou contar um episódio: quando Erundina apresentou seu primeiro projeto, o José Eduardo Martins Cardoso (atual ministro da Justiça), que era o chefe de gabinete, foi negociar com os vereadores. Havia um vereador, tradicional na casa, que falava pelos outros… Ele fez a seguinte pergunta: “Mas, secretário, o senhor não trouxe a maleta?”. O secretário disse: “Que maleta?”. Ele falou: “A maleta para a gente negociar. Tem um cara aí que já ofereceu para cada um de nós 10 mil dólares. A prefeita cobre?”. Evidentemente, como a prefeita não “cobria”, tivemos 325 projetos de lei que não foram discutidos nem votados. Nós governamos com a cara e a coragem. Ela não conseguiu nenhum empréstimo federal, nenhum empréstimo estadual e bloquearam os pedidos de empréstimos internacionais. Ela governou com os impostos de uma prefeitura que tinha sido quebrada pelo Jânio Quadros. O atual sistema partidário e eleitoral faz com que nenhum eleito para o executivo disponha de maioria no legislativo. Ora, a maioria dos projetos e programas precisa de um legislativo que os aprove. Com o sistema atual, você é forçado às coalizões. Então, precisamos fazer a reforma política. Mas quando alguém propõe uma Constituinte Específica para isso, o que o PSDB diz? Que é golpe! Ele não quer que mude o sistema político! Vem dizer que a corrupção está do nosso lado quando eles não querem a mudança no sistema político? Além do que, com esses legislativos que estão aí, quem vai fazer a reforma política? Tem de haver uma Constituinte Específica. A arrogância moralista não faz uma análise de por que o sistema partidário e o sistema eleitoral são como são. Por que a classe média não saiu às ruas numa manifestação nacional para derrubar o general Golbery e o Pacote de Abril, já que ela quer a ética na política? Não vi nenhum deles na rua. Não ouvi um só grito da parte deles. E, agora, eles gritam contra o efeito daquilo que o Golbery fez como se fosse obra do PT. E não querem que eu fale em abominação política e cognitiva?

C: outro aspecto é a crítica que a esquerda também faz ao governo e ao PT. Por que há, por exemplo, tanta crítica do PSTU, do PSOL e de outros partidos de esquerda?

MC:
Vou fazer uma distinção entre “pensamento mágico” e situação efetiva de vários partidos de esquerda. Começo pelo pensamento mágico. Estive em um debate em que uma participante propôs o “programa mínimo” para os próximos dias: tirar todos os evangélicos dos legislativos, tirar a Dilma, estatizar os bancos, estatizar as empresas multinacionais e aproveitar a crise mundial do capitalismo, que possivelmente é a última. No caso dos mais velhos, porém, o “pensamento mágico” é irresponsabilidade política. É importantíssimo que a sociedade faça críticas e leve o governo em direção à esquerda. O Lula e a Erundina diziam isso: “Para poder governar eu preciso dos grandes movimentos sociais puxando para a esquerda”. Ora, com uma ação e um pensamento mágico, em vez de você puxar para a esquerda e forçar os governos a ir nessa direção, você levanta uma barreira que faz com que ninguém queira ir na sua direção porque ela é tão absurda, irresponsável e ingênua, que ninguém leva a sério. Passo à questão dos vários partidos de esquerda menores (em termos de filiados e de representantes eleitos). Esses partidos não possuem uma base social sólida que lhes dê clara representação nacional. Por isso, existem principalmente sob a forma do discurso intempestivo. Se você perguntar qual é a ação política efetiva que eles realizaram ou que estão realizando, e de alcance nacional, não há nenhuma. Se estivéssemos numa ditadura e eles não pudessem agir, eu calaria minha boca imediatamente. Mas nós estamos numa democracia; portanto, eles podem agir. Mas sua ação é pontual, fragmentada e tem a finalidade (justa e necessária) de marcar presença. Por que isso? Porque é a única forma de aparecer no cenário nacional. Se você tomar os meios de comunicação, vai ver uma coisa interessantíssima. Quando, em termos eleitorais, se achou que Heloísa Helena tinha alguma possibilidade de impedir a eleição da Dilma, os meios de comunicação a promoveram de todas as maneiras, até o instante em que ela fez bobagem, porque ela é despolitizada. Passaram então para Marina. Tentaram usá-la. E quando perceberam que a Marina não iria dar conta, a abandonaram também. Então, há uma espécie de exército político de esquerda que funciona como um exército de reserva que as oposições e a mídia instrumentalizam e, depois de usar, esvaziam.

C: Como você vê o elogio dos movimentos sociais e das lideranças individuais, feito por alguns intelectuais que defendem a superação do modelo partidário?

MC:
Eu acho que falta uma verdadeira análise econômica, uma verdadeira análise de classe e uma verdadeira análise do que seja a democracia. Se você não faz uma análise da forma da propriedade, com base na qual você pode pensar a divisão social; se não pensa a sociedade como contraditória e conflituosa; e, sobretudo, se não pensa como exercício de poderes tácitos e implícitos, nunca vai poder operar no campo político. Porque vai operar no campo político sob a forma de explosão espontânea disto ou daquilo. Como é que se garante a vida de coletividades inteiras, a vida de um país inteiro, à espera de que aqui e ali, como cogumelo, brote um líder que fale isso, outro que fale aquilo? Mas não é só isso! Quem vai realizar o que deve ser realizado? Eu posso sair pela rua e dizer: “É o seguinte: amanhã não quero latifúndio no Brasil, não quero agronegócio e quero o fechamento dos bancos. Ponto”. Aí, eu vou nas redes sociais e conclamo o país para ouvir a minha voz nessa direção. OK. Todo mundo aprova. Mas quem executa? Esses elogios são de uma cegueira muito grave, porque há um universo que é composto pela propriedade, pelas classes sociais e pelas institucionalidades. Como é que se vai operar sem isso? Você pode transformar tudo isso numa outra direção, mas não pode dizer que você vai operar sem isso. Você não está em Atenas! Você não está em Roma! Até Roma virou Império e Atenas teve os 30 tiranos! Eu insisto que precisamos compreender o sistema planetário de controle e vigilância postos pela web e pela internet, no qual o centro está em toda parte e a circunferência em nenhuma, disseminado numa infinidade de máquinas pelo mundo, formando, como explica Paul Mathias, numa nebulosa informacional amplamente insondável, diversamente organizada, às vezes aberta e disponível, mas frequentemente fechada e secreta. A internet nasce numa infraestrutura econômica que ela mantém invisível, aparecendo como um ambiente universal de informação e comunicação globalmente uniforme. Ora, nossa experiência reticular está circunscrita a um número restrito de programas aplicativos que permitem as múltiplas operações desejadas em um número limitado de gestos previstos e uniformes em todo o planeta, sem que tenhamos a menor ideia do que são e significam os protocolos informáticos que empregamos. Ignoramos os procedimentos operacionais que a criaram e a conservam, as leis de sua formação e configuração, sua arquitetura funcional. Por isso, não é possível celebrar as redes sociais como libertárias em si e por si mesmas, dispensando as mediações políticas.

C: Você não teria muita ilusão com o sistema de consulta direta…

MC:
Sou totalmente favorável. Pode-se e deve-se fazer isso. Uma das coisas mais impressionantes dos movimentos sociais e populares dos anos 1970-1980 foi que eles introduziram a noção de democracia participativa e que, portanto, era com base no que havia sido decidido por aqueles movimentos que os representantes agiam. Estabelece-se um tipo de instituição – o movimento social e o movimento popular -, que opera horizontalmente e com autonomia e que garante por meio da democracia participativa a verdade da democracia representativa. O representante é efetivamente o seu representante. Há mil e uma maneiras de assegurar a consulta direta. Mas não arrebentando a institucionalidade. É uma coisa pueril.

C: E há uma espécie de incitação à violência por parte de alguns líderes de movimentos sociais e intelectuais de “esquerda”.

MC:
Olha, existe a violência revolucionária. Ela se dá no instante em que, pelo conjunto de condições objetivas e subjetivas que se realizam pela própria ação revolucionária, se entra num processo revolucionário. E, durante um processo revolucionário, a forma mesma da realização é a violência. O baixo da sociedade diz “não” para o alto e não reconhece a legitimidade do alto da sociedade. Esse é o movimento revolucionário, com a operação da violência no interior dele, porque é um movimento pelo qual se destroem as instituições vigentes, a forma vigente da propriedade, do poder etc., para criar outra sociedade. E isso se faz com violência; não é por meio da violência e do diálogo. Mas tem de haver organização. Primeiro, a classe revolucionária tem de estar organizada e saber quais são as metas e quais são os alvos físicos. Você não quebra qualquer coisa. Eu me lembro de uma frase lindíssima do Lênin em que ele dizia assim: “Há uma coisa que a burguesia deixou e que nós não vamos destruir: o bom gosto e as boas maneiras”. Ora, não estamos num processo revolucionário, para dizer o mínimo! Se não se está em um processo revolucionário, se não há uma organização da classe revolucionária, se não há a definição de lideranças, metas e alvos, você tem a violência fascista! Porque a forma fascista é a da eliminação do outro. A violência revolucionária não é isso. Ela leva à guerra civil, à destruição física do outro, mas ela não está lá para fazer isso. Ela está lá para produzir a destruição das formas existentes da propriedade e do poder e criar uma sociedade nova. É isso que ela vai fazer. A violência fascista não é isso. Ela é aquela que propõe a exterminação do outro porque ele é outro. Não estamos num processo revolucionário e por isso corremos o risco da violência fascista contra a esquerda (mesmo quando vinda de grupos que se consideram “de esquerda”!).

C: De onde vêm as referências filosóficas desses intelectuais?

MC:
Alguns citam Giorgio Agamben; outros, Antonio Negri; outros, ainda, Foucault. Não está claro para mim, porque tenho me ocupado com uma problemática mais ligada aos historiadores ingleses, que procuram saber como se dá o processo de denegação da realidade. Mas tenho um pouco de preocupação com a noção de multitudo de Antonio Negri. Ele parte de Espinosa, afirmando que a multitudo é o sujeito político. O que Espinosa afirma, ao propor a multitudo como sujeito político, é o princípio republicano clássico de que todo poder vem do povo e não pode ser exercido sem ele. Mas, como os humanos são naturalmente seres passionais, eles precisam criar instituições que permitam a convivência sem destruição recíproca, pois, se todo mundo pode tudo (é o que Espinosa chama de direito natural de cada um e da multitudo), ninguém pode nada; a forma da relação será aniquilar o outro, porque o outro é uma barreira ao meu direito e é o meu inimigo. A multitudo é travejada por paixões (medo, esperança, amor, ódio, ambição, inveja, cólera, generosidade, compaixão), ou seja, a multitudo não é a presença da razão no espaço público e é exatamente por isso que a política é instituída como introdução de uma racionalidade prudencial capaz de assegurar que o conflito das paixões não seja eliminado (pois ele define a condição natural dos seres humanos), mas mediado pelo direito coletivo, garantindo um poder que sustente uma sociabilidade segura, pacífica e livre, ou seja, o que Espinosa chama de democracia ou poder popular absoluto. A multitudo espinosana é, ao mesmo tempo, a guardiã da democracia e o maior perigo contra a democracia. Essa contradição é o coração da política. Já a multitudo de Negri não tem conflitos, não é travejada por paixões, não é contraditória, mas é inteiramente positiva. Tudo o que vier dela é bom. Eu digo que as paixões não têm freios, e quando elas estão ligadas à forma da propriedade e ao exercício do governo, você tem de realmente segurar a explosão passional ilimitada. A ideia de uma multitudo essencialmente libertária não foi pensada nem pelos anarquistas. E olha que anarquista adorava o exercício da violência como ação direta!

C: O plebiscito em vista da reforma política pareceria uma forma de fazer falar a multitudo… Mas há intelectuais e políticos de esquerda e de centro-direita que chamam de autoritária a proposta de plebiscito feita pela presidenta Dilma. FHC disse isso. O PSDB está propondo um referendo…

MC:
Claro! Não é uma gracinha? O plebiscito é o uso perfeito da ideia de multitudo, e por isso os críticos querem impedir que as contradições se manifestem e que ela realize o trabalho político dos conflitos. Os críticos tomam a multitudo no sentido de turba enfurecida e manipulável. Politicamente incompetente. É inacreditável. É claro que querem, no máximo, um referendo… Como se nossos legislativos fossem subitamente tomados de consciência republicana e democrática e, por si mesmos, fizessem a reforma política. Estão querendo brincar com a gente? E mais, o plebiscito está previsto na Constituição brasileira. De onde vem que é autoritário? Pelo contrário. É efetivamente uma consulta, uma expressão da democracia participativa e da soberania da multitudo, que para isso precisa ser amplamente informada a fim de poder deliberar.

C: A “Veja” comparou a presidente Dilma com Hugo Chávez…

MC:
Estou esperando a hora em que tivermos manifestações de direita iguais às da Venezuela, Bolívia, Chile, Argentina e Uruguai. O plebiscito pressupõe o direito à informação. Se a sociedade não estiver informada, será manipulada. E sabemos do papel da mídia para produzir a desinformação…Vai ser a próxima batalha.”


FONTE: reportagem de Juvenal Savian Filho publicada na Revista CULT n˚ 182. Transcrita no blog “O Cafezinho” (http://www.ocafezinho.com/2013/08/28/chaui-fala-sobre-manifestacoes/).

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