[“Negro escravo”]
Por Marcelo Semer,
no portal “Terra Magazine”
“A
repulsa dos
médicos brasileiros a vinda de cubanos para atuar em cidades do interior é uma
espécie de reserva de não-mercado.
É mais ou menos como
a TV quando compra a exclusividade de um jogo e não transmite. Nem permite que
outros canais transmitam.
Os médicos
brasileiros não querem trabalhar nas localidades mais distantes ou com menos
estrutura. Mas querem impedir que outros o façam em seu lugar.
O grave do problema
é que isso não se trata de um amistoso da seleção ou um jogo da Libertadores. É
a saúde das populações mais pobres que está em permanente risco. E a dignidade
da pessoa humana, fundamento da República, não se submete a esse tipo de abuso
de poder.
O direito à vida ou à
saúde não pode ser sufocado pela onda de preconceitos, nem ficar refém de
corporativismos. O estado democrático de direito é antropocêntrico e não admite
recompensa pelo egoísmo.
Para criticar a
vinda de cubanos, de tudo um pouco já se ouviu.
Que os profissionais
são de baixa qualidade, que parecem domésticas, que o espanhol caribenho é
difícil de entender. Os médicos cubanos ora são hostilizados por serem agentes
disfarçados da guerrilha comunista, ora por serem escravizados pela ditadura.
Os argumentos não se
sustentam em pé, porque na verdade só existem na aparência.
Escondem a volúpia
pela exclusividade, a proteção ao direito de não atender. Do lado da imprensa,
uma indisfarçável torcida pelo fracasso, com receio, que melhor caberia aos
partidos políticos, de um possível uso eleitoral de bons resultados.
Escassez de
Hipócrates nesse excesso de hipocrisia.
Se os brasileiros
estivessem dispostos a trabalhar nas localidades em que faltam médicos,
coincidentemente as de menor IDH do país, nenhum estrangeiro teria sido
convocado a atuar nessa medicina sem fronteiras.
Mas os
representantes dos médicos brasileiros optaram por serem eles mesmos as
fronteiras.
Parte considerável
dos cubanos tem perfil internacionalista e já exerceu a profissão em países
estrangeiros e em situações de pouca ou nenhuma estrutura, como na África. É
provável até que tenham mais experiência em tratar o pobre do que a maioria de
seus críticos locais.
Na imprensa, os que
mais se rebelam contra o sistema adotado na parceria são justamente aqueles que
vêm sustentando, há tempos, os benefícios da terceirização.
Com a agravante de
que, neste caso, não existe o empregador inescrupuloso que opta por ela para
fugir a altos salários ou obrigações trabalhistas. Afinal, a ganância
capitalista sempre comoveu pouco na mídia.
É o caso de refletir
seriamente se nós estamos em condições de regular a forma como Cuba remunera os
médicos que fizerem parte do acordo, dado que as premissas econômicas dos dois
países são bem distintas. Quem sabe não cheguemos à conclusão que devemos pagar
mais a eles, ao invés de repeli-los.
De qualquer forma, a
acusação de trabalho escravo é simplesmente grotesca. Não há serviço forçado e
tampouco maus tratos; condições degradantes ou servidão por dívidas.
Escravo não é o
médico que sai voluntariamente de suas fronteiras para trabalhar com pobres por
ideais. Escravo é o povo a quem se promete o direito a saúde e se sonega
médicos para concretizá-lo.
Nada mais revelador
do que “doutores” [assim se autointitulam, mesmo sem PhD...] cearenses
se reunindo para xingar os cubanos recém-chegados de “escravos”.
A desfaçatez
demonstra que, na crítica às condições de trabalho, não reside nenhuma
solidariedade, apenas o pretexto de combater aquilo que incomoda a si mesmo.
Curioso é que a
imprensa, sempre tão mordaz contra várias formas de corporativismo, tem sido
condescendente demais com as manifestações dos conselhos de medicina.
A mais gritante
delas beirou o absurdo e o ilícito: a
ameaça nada velada de que médicos brasileiros não prestariam auxílio se um
cubano tivesse problemas com um paciente.
O ressentimento fala
por si só.
Quando médicos optam
por combater médicos e não doenças, algo de muito grave se revela na saúde.”
FONTE: escrito por Marcelo Semer, no
portal “Terra Magazine”. O autor é juiz de direito em SP e escritor. Ex-presidente
da “Associação Juízes para a Democracia”. Autor do romance “Certas Canções” (7
Letras). Responsável pelo Blog “Sem Juízo”. Artigo publicado no portal “Terra
Magazine” (http://terramagazine.terra.com.br/blogdomarcelosemer/blog/2013/08/28/escravo-e-quem-tem-direito-a-saude-e-nao-tem-medico-para-exercita-lo/). [Imagem do blog “Cidadania” e legenda entre colchetes acrescentadas por
este blog ‘democracia&política’].
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