Sergey Lavrov, Ministro de Relações Exteriores da Rússia, “Discurso à ONU"
“Ninguém tem o monopólio da verdade”
Por Sergey Lavrov, no "Information Clearing House", com o título original "No One Has A Monopoly On Truth − Sergey Lavrov’s U.N.". Traduzido da transcrição em inglês pelo "pessoal da Vila Vudu" e postado no "Redecastorphoto"
"Muito obrigado, Sr. Presidente.
Senhoras e senhores,
Há crescente evidência hoje de uma contradição entre esforços coletivos e deliberados na direção de desenvolverem-se respostas adequadas a desafios comuns de todos nós, e a aspiração, de alguns estados, por dominação e por fazer ressuscitar um arcaico pensamento de bloco, baseado na disciplina militar e numa lógica errada de "amigo ou inimigo".
A aliança ocidental liderada pelos EUA que se autoapresenta como campeã da democracia, do estado de direito e da defesa de direitos humanos em vários países, age de uma posição diametralmente oposta na arena internacional, rejeitando os princípios democráticos da igualdade soberana entre todos os estados, e sempre tentando decidir, pelos demais, o que é bem e o que é mal.
Washington declarou abertamente seu direito ao uso unilateral de força militar onde bem entenda, para fazer avançar seus próprios interesses. A interferência militar tornou-se norma, apesar do lamentável resultado de todas as ações de força que os EUA empreenderam nos últimos anos. A sustentabilidade do sistema internacional foi severamente abalada pelo bombardeio, pela OTAN, contra a Iugoslávia, pela intervenção militar no Iraque, pelo ataque contra a Líbia e pelo fracasso no Afeganistão.
Só graças a intensos esforços diplomáticos foi possível impedir mais uma agressão, daquela vez contra a Síria, em 2013. Há uma impressão involuntária de que o objetivo das várias ‘revoluções coloridas’ e outros projetos para derrubar governos que não interessem aos EUA é criar cada vez mais caos e instabilidade. Hoje, a vítima dessa política arrogante é a Ucrânia. A situação ali mostrou as falhas sistemáticas, profundamente enraizadas, da arquitetura ainda prevalecente na área euro-atlântica. O ocidente embarcou num curso rumo à estruturação vertical da humanidade, talhada pelos seus próprios padrões, que estão muito longe de serem inofensivos.
Depois de terem declarado vitória na Guerra Fria e, logo depois, o chamado “Fim da História”, os EUA e a União Europeia optaram por expandir a área geopolítica sob controle deles, sem qualquer atenção à necessidade de preservar o equilíbrio entre os interesses legítimos de todos os povos da Europa. Os parceiros ocidentais não deram ouvidos aos nossos inúmeros avisos, de que seria inadmissível que violassem os princípios da Carta da ONU e o que determina o "Helsinki Final Act". Repetidas e repetidas vezes recusaram-se a qualquer trabalho conjunto para estabelecer um espaço comum de segurança e cooperação iguais e indivisíveis, do Atlântico ao Oceano Pacífico.
A proposta russa para a redação do Tratado de Segurança Europeia foi rejeitada. Disseram-nos diretamente que as garantias legais de segurança comum a todos só garantem os membros da Aliança da Atlântico Norte. Hoje, continuam a avançar para o leste, apesar de todas as promessas de que não fariam o que estão fazendo.
A mudança instantânea da OTAN para uma retórica de hostilização, para o fim de qualquer cooperação com a Rússia, até em detrimento de interesses do próprio ocidente, e a construção de infraestrutura militar junto às fronteiras da Rússia revelam a incompetência da aliança, que não consegue alterar o código genético com o qual foi inventada durante a Guerra Fria.
O golpe de Estado apoiado por EUA e União Europeia na Ucrânia e convertido em ‘justificativa’ automática para todos e quaisquer atos das autoproclamadas autoridades em Kiev, que optaram por suprimir pela violência a parte do povo ucraniano que rejeitou todas as tentativas para impor no país uma ordem anticonstitucional e decidiu defender seu direito aos próprios idioma, cultura e história. É precisamente o assalto agressivo contra esses direitos que ajudam a população da Crimeia a tomar o próprio destino nas mãos, e fazer suas escolhas na direção da autodeterminação.
Foi escolha absolutamente livre, não importa o que tenham inventado os mesmos que são responsáveis básicos pelo conflito interno na Ucrânia. Esforços gerais para distorcer a verdade e ocultar fatos por trás de um véu de acusações foram coisas que lá estiveram em todos os estágios da crise ucraniana. Nada se fez para levar aos tribunais os culpados pelos sangrentos eventos de fevereiro na praça Maidan e pelo número escandaloso de mortes em Odessa, Mariupol e outras regiões da Ucrânia. A escala do horrendo desastre humanitário provocado por atos do exército ucraniano no sudeste da Ucrânia tem sido deliberadamente manipulada e reduzida.
Recentemente, novos fatos horríveis foram trazidos à luz, quando se descobriram covas para enterramento em massa, nos subúrbios de Donetsk. Apesar da Resolução nº 2166 do Conselho de Segurança da ONU, não se levou a efeito nenhuma investigação ampla e independente sobre as circunstâncias da queda do avião malaio sobre território da Ucrânia. Os perpetradores de todos esses crimes têm de ser identificados e levados a julgamento, ou continuará a ser difícil que aconteça uma reconciliação nacional na Ucrânia.
A Rússia está sinceramente interessada na restauração da paz naquele país vizinho, o que pode ser facilmente bem compreendido por todos que tenham qualquer conhecimento da história dos laços fraternais profundos entre os dois povos. O caminho para um acordo político é bem conhecido. Em abril passado, Kiev já assumira a obrigação, na Declaração de Genebra, assinada por Rússia, Ucrânia, EUA e União Europeia, de iniciar imediatamente um amplo diálogo nacional, com a participação de todas as regiões e forças políticas na Ucrânia, com vistas a fazer uma reforma da Constituição. A implementação dessa obrigação permitiria que todos os ucranianos concordassem sobre viverem conforme suas tradições e cultura, e permitira que a Ucrânia restaurasse seu papel orgânico como elo de ligação entre várias partes do espaço europeu, o que naturalmente implica preservar e respeitar seu status neutro, não de bloco.
Estamos convencidos de que, com boa vontade, e desde que todos se recusem a apoiar o partido pró-guerra em Kiev que tenta empurrar o povo ucraniano para o abismo da catástrofe nacional, há uma saída para fora da crise, ao nosso alcance. A via para superar a crise foi aberta pelo acordo de cessar-fogo no sudeste da Ucrânia – resultado de iniciativas dos presidentes Poroshenko e Putin. Com a participação de seus representantes em Kiev, Donetsk, Lugansk e da "Organização de Segurança e Cooperação da Europa e da Rússia", estão sendo tomadas medidas práticas para a implementação sucessiva desses acordos, incluindo a separação das partes em conflito, a remoção de armas pesadas que hajam na Ucrânia e em mãos de milícias, e a criação de mecanismos de monitoramento através da Organização de Segurança e Cooperação da Europa.
A Rússia está preparada para continuar a promover ativamente o acordo político mediante o bem conhecido processo de Minsk e outros formatos. Contudo, é preciso que fique absolutamente claro que estamos fazendo isso em nome da paz, tranquilidade e bem-estar do povo ucraniano – não para satisfazer ambições de um ou outro. Tentativas de pressionar a Rússia ou de tentar fazê-la abandonar seus valores, a verdade e a justiça não têm chance alguma de sucesso.
Permitam-me relembrar um pouco da história não muito distante. Como condição para estabelecer relações diplomáticas com a União Soviética em 1933, o governo dos EUA exigiu de Moscou garantias de não-interferência nos assuntos domésticos dos EUA e a obrigação de não empreender qualquer ação com vistas a mudar a ordem política e social nos EUA. Naquele momento, Washington temia um vírus revolucionário, e aquelas garantias foram dadas. Essa foi a base, é claro, para reciprocidade entre os EUA e a União Soviética. Talvez faça sentido voltar a esse tópico e reproduzir as exigências dos EUA daquele momento – agora em escala universal.
Por que a Assembleia Geral não adota uma declaração da inadmissibilidade de qualquer interferência em assuntos internos de estados soberanos? Sobre a inadmissibilidade de um golpe de estado como método para mudanças no poder? É mais que hora de excluir completamente das interações internacionais toda e qualquer tentativa, de alguns estados, de aplicar pressões ilegítimas, sobre outros estados. A total falta de qualquer sentido e a natureza contraproducente de sanções unilaterais são óbvias, se se considera o exemplo do bloqueio que os EUA fazem contra Cuba.
A política dos ultimatos e a filosofia da supremacia e do domínio não combinam adequadamente com o que o século 21 exige de nós; e trabalham contra o objetivo de desenvolver-se uma ordem mundial policêntrica democrática.
A Rússia está promovendo uma agenda positiva e de unificação. Sempre estivemos e continuamos abertos à discussão das mais complexas questões, não importa o quanto possam, de início, parecer insolúveis. Sempre estaremos preparados a buscar compromissos e um equilibramento de todos os interesses, até mesmo uma troca de concessões, mas só se a discussão for realmente respeitosa e equitativa. Os acordos de Minsk, assinados dias 5 e 19 de setembro, como saída para a crise ucraniana, e o compromisso do cronograma do acordo entre Kiev e a União Europeia são bons exemplos a seguir, como a declaração, finalmente, de que Bruxelas está pronta para iniciar negociações sobre o estabelecimento de um acordo de livre-comércio entre a União Europeia e a União Aduaneira de Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão, como proposto pelo presidente Putin em janeiro de 2014.
A Rússia nunca desistiu de clamar pela harmonização dos projetos de integração na Europa e Eurásia. A política dos marcos e cronogramas políticos para essa convergência de integrações seria real contribuição ao trabalho da Organização de Segurança e Cooperação da Europa, no tópico "Helsinki Plus 40”.
Outra área crucial desse trabalho seria lançar uma discussão pragmática, livre de ideologia, sobre a arquitetura política e militar da região euro-atlântica, de tal modo que não só os membros da OTAN mas todos os países da região, inclusive Ucrânia, Moldávia e Geórgia, pudessem partilhar da mesma segurança equitativa e indivisível, sem que ninguém fosse obrigado a uma falsa escolha do tipo “ou está conosco, ou está contra nós”. Não se devem admitir novas linhas de divisão na Europa, tanto mais que, por causa da globalização, essas linhas podem rapidamente se converter em divisão insuperável entre o ocidente e o resto do mundo.
Deve-se declararm, com honestidade, que ninguém tem o monopólio da verdade e ninguém é capaz de recortar processos globais e regionais para adaptá-los só às suas próprias necessidades. Hoje não há alternativa ao desenvolvimento de um consenso que afirme as regras da governança sustentável e novas circunstâncias históricas de pleno respeito pela diversidade cultural e civilizacional do mundo – o que gera uma multiplicidade de modelos de desenvolvimento. Será tarefa difícil, sempre trabalhosa e cansativa, alcançar esse consenso em todas as questões, mas o reconhecimento do fato de que a democracia em cada estado é a pior forma de governo exceto todas as demais também exigiu muito tempo e trabalho – até que Churchill proclamou seu veredito.
É chegada a hora de assumir a inevitabilidade dessa verdade fundamental nos assuntos internacionais, onde há hoje imenso déficit de democracia. Claro: alguns terão de superar ideias já velhas de séculos, e abandonar para sempre fantasias de excepcionalismo ou de raridade total eterna. Mas não há outro meio para seguir avante. Esforços conjuntos só podem surgir a partir do princípio de respeito mútuo e levando-se em consideração os interesses das demais partes. É o que se faz, por exemplo, nos quadros do Conselho de Segurança da ONU, no G20, entre os países BRICS e na Organização de Cooperação de Xangai.
A teoria do valor do trabalho coletivo tem sido reafirmada pela prática, e aí se inclui o progresso na resolução da situação criada em torno do programa nuclear iraniano e a bem-sucedida desmilitarização química da Síria. Sobre essa questão, e por falar em armas químicas, gostaríamos de receber informação autêntica sobre o estado dos arsenais químicos na Líbia. Entendemos que nossos colegas da OTAN, depois de bombardearem aquele país, ao arrepio do que determinam resoluções do Conselho de Segurança da ONU, não gostariam de aprofundar ainda mais a situação confusa e perigosa que criaram. Mas fato é que o problema de arsenais químicos não controlados na Líbia é grave demais para que possamos fingir que nada vemos.
Entendemos que o secretário-geral da ONU também tem obrigação de dar prova de sua responsabilidade nessa questão. Importante, nesse momento, é ver as prioridades globais e evitar deixar-se prender como refém a uma agenda unilateral. Há urgente necessidade de fugirmos dos duplos padrões e abordagens dúbias na resolução de conflitos. De modo geral, todos concordamos que a questão chave é combater resolutamente contra terroristas que tentam pôr sob controle deles territórios cada dia mais extensos no Iraque, Síria, Afeganistão e na área do Sahara-Sahel.
Sendo esse o caso, essa tarefa não pode ser sacrificada a esquemas ideológicos ou ao desejo de ‘resolver’ casos pessoais. Terroristas, não importa por trás de que slogans se escondam, são fora da lei; e como tal devem ser tratados. Sobretudo, e nem é preciso dizer, a luta contra o terrorismo deve ser feita sobre base firme da lei internacional. Fase importante nesse processo é a adoção unânime de várias resoluções de segurança da ONU, incluindo resoluções sobre combatentes terroristas estrangeiros; na direção contrária, toda e qualquer tentativa para atropelar com contravenções a Carta da ONU de modo algum contribuem para o sucesso de nossos esforços conjuntos.
A luta contra terroristas no território da Síria tem de ser organizada em cooperação com o governo sírio, o qual já disse claramente que está pronto a colaborar. Damasco já mostrou sua capacidade para cooperar com programas internacionais, com a participação que teve na destruição de seus arsenais químicos. Desde o primeiro momento da Primavera Árabe, a Rússia sempre clamou que aquele movimento não fosse deixado à mercê de extremistas, e que se estabelecesse uma frente unida para responder à crescente ameaça terrorista. Fomos contra a tentação de converter em ‘aliado’ praticamente qualquer um que se proclamasse inimigo de Bashar Al Assad – como Al-Qaeda, Al Nusra ou qualquer outro parceiro desses que se interessavam por mudança de regime, inclusive o ISIL, que hoje está no centro das nossas atenções.
Como diz o ditado, melhor tarde do que nunca. Não será a primeira vez que a Rússia faz contribuição muito real para a luta contra o ISIL e outras facções terroristas ativas na região. Enviamos grandes lotes de armas e de equipamento militar para os governos do Iraque, da Síria e de outros países no Oriente Médio e no Norte da África, e continuaremos a apoiar os esforços deles para suprimir terroristas. A luta contra a ameaça terrorista exige abordagem ampla; queremos arrancar a causa raiz do terrorismo, em vez de nos deixar condenar a reagir sempre só contra os sintomas. O ISIL é apenas parte do problema.
Propomos que se lance, sob os auspícios do Conselho de Segurança da ONU, um estudo amplo e profundo sobre a ameaça extremista e terrorista, e aspectos dessas ameaça no Oriente Médio e região norte da África.
Essa abordagem integrada implica também que o conflito de longa duração deve ser identificado, em primeiro lugar, entre árabes e Israel. A questão Israel-Palestina arrasta-se sem solução há várias décadas e é amplamente reconhecida como um dos principais fatores de instabilidade na região, que ajuda os extremistas no trabalho de recrutar mais e mais jihadistas.
Outra área literalmente urgente para nosso trabalho comum é unir nossos esforços para implementar decisões da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança da ONU para combater o vírus ebola. Nossos médicos já estão trabalhando na África. Há planos para mandarmos mais ajuda humanitária, assistência, equipamentos, instrumentos médicos, remédios e esquipes de especialistas para dar assistência aos programas da ONU na Guiné, Libéria e Serra Leoa.
A ONU foi criada das ruínas da IIª Guerra Mundial, e já está entrando no ano de seu 70º aniversário. É obrigação para todos nós celebrarmos de modo apropriado o aniversário daquela grande vitória, e pagar tributo à memória dos que morreram pela liberdade e pelo direito de cada povo determinar o próprio destino.
As lições daquela guerra terrível, e o curso completo dos eventos no mundo de hoje, exigem que unamos esforços e esqueçamos os interesses unilaterais e os ciclos das eleições nacionais. Quando se trata de enfrentar ameaças globais contra toda a humanidade, é preciso impedir que o egoísmo nacional prevaleça sobre nossa responsabilidade coletiva.
Muito obrigado".
FONTE: discurso na ONU de Sergey Lavrov, Ministro das Relações Exteriores da Rússia, publicado no "Information Clearing House", com o título original "No One Has A Monopoly On Truth − Sergey Lavrov’s U.N.". Traduzido da transcrição em inglês pelo "pessoal da Vila Vudu" e postado por Castor Filho no seu blog "Redecastorphoto" (http://redecastorphoto.blogspot.com.tr/2014/10/sergey-lavrov-ministro-de-relacoes.html).
Nenhum comentário:
Postar um comentário