sábado, 20 de agosto de 2011
“Telegraph”: “HÁ ALGO CHEIRANDO MAL NO REINO UNIDO”
Por Luiz Carlos Azenha
“Estou entre os que acreditam ser uma bobagem chamar a derrubada de Hosni Mubarak de “revolução do ‘Facebook’”. Ou atribuir o quebra-quebra londrino ao BBM, o mensageiro do ‘Blackberry’. Nada disso teria acontecido se não houvesse demandas sociais subjacentes. No caso do Egito, falta de comida, de emprego e de democracia. No caso da Inglaterra, gente que não tem compromisso com o status quo.
Volto ao visionário John Kenneth Galbraith, que ainda nos anos 80 falava do surgimento de uma sociedade paralela no entorno das grandes metrópoles, resultante das políticas do então presidente Ronald Reagan do “there is no free lunch in America”. Você tritura os sindicatos, destrói empregos, criminaliza os movimentos sociais e depois espera que as pessoas apresentem suas demandas de forma organizada e politizada? Fora dos sindicatos e dos movimentos sociais organizados… é o fascismo.
Mas, voltando ao ‘Facebook’, ao ‘Twitter’ e ao ‘Blackberry’, não há como negar que as pessoas conversam entre si muito mais nos dias de hoje do que num passado não muito longínquo. Quando desembarquei em Nova York, em 1985, para ser correspondente da TV Manchete, uma transmissão de imagens via satélite para o Brasil, de dez minutos, custava 1.500 dólares. Hoje, via internet, é de graça. Nos anos 80, quando trabalhei na TV Globo de Bauru, se a emissora não enviasse uma equipe de reportagem a uma cidade da região para cobrir uma manifestação era como se o protesto não tivesse acontecido; hoje, os próprios manifestantes sobem o vídeo no “You Tube” e dispõem dessa e de outras ferramentas inclusive para pautar a mídia convencional.
Meu ponto: é uma mudança extraordinária em pouquíssimo tempo. E pode contribuir para abrir um imenso fosso entre a linguagem hierarquizada do poder e a linguagem das ruas, maior ainda da que já existe. O exemplo desse descompasso vimos na Grécia, no Chile, na Espanha. As instituições obedecem a ritos e ritmos divorciados de sociedades altamente conectadas e ansiosas por transparência, respostas e resultados.
Colhi um pequeno exemplo disso no jornal britânico “Telegraph”, que publicou um artigo que teve imensa repercussão nas mídias sociais do país. É artigo que não teria um centésimo da repercussão que teve se a capacidade das pessoas de distribuí-lo não fosse tão grande quanto é. Não importa se você concorda ou não com o conteúdo. Eu, por exemplo, acho que o texto é moralista e simplificador. Mas foi lido por centenas de milhares de pessoas, a maioria das quais não comprou o jornal. Elas não tiveram de ir atrás do artigo, o artigo veio até elas.
Não é por acaso que a polícia britânica simplesmente considerou fechar o ‘twitter’ durante os distúrbios de Londres ou que as sentenças mais pesadas dadas até agora na Inglaterra foram para dois jovens acusados de “organizar” quebra-quebras via ‘Facebook’. Na falta de compreensão, na incapacidade ou na falta de vontade política para lidar com as questões de fundo, a culpa é, literalmente, do ‘messenger’.
Fiquem com o artigo:
“THE MORAL DECAY OF OUR SOCIETY IS AS BAD AT THE TOP AS THE BOTTOM” [A decadência moral de nossa sociedade é tão grave no topo quanto na base] (http://blogs.telegraph.co.uk/news/peteroborne/100100708/the-moral-decay-of-our-society-is-as-bad-at-the-top-as-the-bottom/)
By Peter Oborne, August 11th, 2011:
“David Cameron, Ed Miliband e toda a classe política britânica se juntaram ontem para denunciar os amotinados. Eles naturalmente estavam certos ao dizer que as ações dos saqueadores, incendiários e assaltantes eram abomináveis e criminosas, e que a polícia deveria receber mais apoio.
Mas havia também algo muito falso e hipócrita sobre o choque e o ultraje expressos no parlamento. Os deputados falaram sobre os terríveis eventos da semana como se não tivessem nada a ver com eles.
Não posso aceitar que seja este o caso. Na verdade, acredito que a criminalidade em nossas ruas não pode ser dissociada da desintegração moral dos escalões mais altos da moderna sociedade britânica. As últimas duas décadas testemunharam terrível declínio dos padrões da elite governante britânica. Tornou-se aceitável que nossos políticos mintam e enganem. Uma cultura quase universal de egoísmo e ganância surgiu.
Não foram apenas os jovens ferozes de Tottenham que se esqueceram que têm tanto deveres quanto direitos. Assim é também com os ricos ferozes de Chelsea e Kensington. Alguns anos atrás, minha mulher e eu fomos a um jantar numa mansão no oeste de Londres. Um segurança vigiava o lado de fora da rua e houve muita conversa sobre uma “divisão norte-sul”, que eu aceitei literalmente por um tempo até me dar conta de que os donos da casa estavam se referindo a uma divisão entre os que moravam ao norte e ao sul da Kensington High Street.
A maioria das pessoas dessa rua caríssima estavam tão desenraizadas e distantes do resto do Reino Unido quanto os jovens homens e mulheres desempregados que causaram tantos danos terríveis nos últimos dias. Para eles, a repulsiva revista do “Financial Times” chamada “Como gastar” é uma bíblia. Eu arriscaria dizer que poucos deles se importam em pagar impostos se puderem evitá-los e que menos ainda sentem algum tipo de obrigação com a sociedade que apenas algumas décadas atrás era “natural” para os ricos e os de cima.
Ainda assim. celebramos as vidas vazias de gente que vive assim. Algumas semanas atrás, li uma nota em um jornal dizendo que o magnata dos negócios Sir Richard Branson estava pensando em transferir seu quartel-general para a Suiça. A medida foi descrita como um golpe em potencial contra o ministro das finanças George Osborne, porque resultaria na redução da arrecadação de impostos.
Não consegui deixar de pensar que. num mundo são e decente, tal mudança seria um problema para o Sir Richard, não para o ministro. As pessoas notariam que um importante e rico homem de negócios estava fugindo dos impostos britânicos e pensariam mal dele. Em vez disso, ele foi condecorado e é amplamente bajulado. O mesmo é verdadeiro quanto ao brilhante varejista Sir Philip Green. Os negócios do Sir Philip nunca sobreviveriam sem a famosa estabilidade política e social do Reino Unido, sem nosso sistema de transporte para despachar suas mercadorias ou nossas escolas para educar seus trabalhadores.
Ainda assim. Sir Philip alguns anos atrás transferiu um bilhão de libras [equivalentes a 2,6 bilhões de reais] em dividendos ‘offshore’ e parece que não está nem um pouco disposto a pagar por isso. Por que ninguém se irrita e o responsabiliza? Eu sei que ele emprega caros advogados tributaristas e que tudo o que faz é legal, mas tem de enfrentar questões éticas e morais tão grandes quanto as colocadas para o jovem bandido que invadiu uma das lojas de Sir Philip para furtá-lo?
Nossos políticos —apoiados como fariseus na perna de trás, ontem, no Parlamento— são tão ruins quanto o Sir Philip. Eles já demonstraram que estão preparados para ignorar a decência e, algumas vezes, para violar a lei. David Cameron está feliz em ter alguns dos piores exemplos no ministério. Considerem, por exemplo, o Francis Maude, que é encarregado de enfrentar o desperdício no setor público —o que os sindicatos dizem que é eufemismo para guerrear contra trabalhadores de baixa renda. Ainda assim o Sr. Maude ganhou milhares de libras ao violar o espírito, embora não a lei, na ajuda de custo dada aos parlamentares.
Muito se falou nos últimos dias da cobiça dos saqueadores por bens de consumo, inclusive pelo deputado de Rotherham, Denis MacShane, que afirmou com justeza, “o que os saqueadores queriam eram alguns minutos no mundo do consumo da Sloane Street”. Isso dito por um homem que usou 5.900 libras [o equivalente a 15.400 reais] de sua ajuda de custo para comprar oito laptops. Naturalmente, como um parlamentar, ele obteve os computadores legalmente, usando dinheiro público.
Ontem, o veterano deputado Gerald Kaufman pediu ao primeiro-ministro para avaliar como os saqueadores poderiam ser “reconquistados” pela sociedade. Sim, este é o mesmo Gerald Kaufman que pediu o reembolso de 14,301.60 libras [equivalentes a 37 mil reais] em três meses, inclusive 8,865 libras [equivalentes a 23 mil reais] por um aparelho de TV da “Bang & Olufsen”.
Ou considere o deputado de Salford, Hazel Blears, que tem pedido medidas duras contra os saqueadores. Eu acho difícil fazer qualquer distinção entre os golpes de Blears na ajuda de custo e na sonegação de impostos e os roubos na cara dura perpetrados pelos saqueadores.
O primeiro-ministro não demonstrou sinal de que entendeu que alguma coisa cheirava mal ontem no debate do Parlamento. Ele falou em moralidade, mas como algo que só se aplica aos muito pobres: “Vamos restaurar uma sensação de moralidade e responsabilidade —em toda cidade, em toda rua, em toda casa”. Ele parece não ter entendido que isso deveria ser aplicado também aos ricos e poderosos.
A verdade trágica é que o Sr. Cameron em pessoa é culpado de não passar no teste da moralidade. Faz apenas seis semanas ele apareceu sorridente na festa de verão da “News International” [a empresa de Rupert Murdoch], embora o grupo de mídia estivesse àquela altura não apenas sob uma, mas duas investigações policiais. Mais notadamente, ele deu posição de destaque no governo ao ex-editor do tablóide “News of the World” Andy Coulson, embora soubesse àquele altura que Coulson tinha se demitido depois que atos criminosos foram cometidos por subordinados. O primeiro-ministro desculpou a incapacidade desprezível de Coulson alegando que “todo mundo merece uma segunda oportunidade”. Foi interessante que ontem ele não falou sobre uma segunda chance, quando prometeu punição exemplar para os amotinados e saqueadores.
Este duplo padrão de “Downing Street” [sede do governo britânico] é sintomático dos duplos padrões que existem no topo de nossas sociedades. Deveria ficar claro que a maioria das pessoas (inclusive, eu sei, os leitores do “Telegraph”) continuam a acreditar em honestidade, decência, trabalho duro e em colocar de volta na sociedade tanto quanto se tira dela.
Mas há os que não pensam assim. Certamente, os assim chamados jovens ferozes não se importam com decência e moralidade. Mas também os ricos e poderosos venais —muitos de nossos banqueiros, jogadores de futebol, homens de negócio e políticos.
Naturalmente, a maioria deles é inteligente e suficientemente rica para obedecer as leis. O mesmo não pode ser dito dos jovens homens e mulheres, sem esperança ou aspirações, que causaram a confusão e o caos nos últimos dias. Mas os amotinados têm esta defesa: eles estão apenas seguindo o exemplo das figuras respeitadas de nossa sociedade. Vamos considerar que muitos dos jovens de nossas metrópoles nunca foram treinados em valores decentes. Tudo o que conhecem é a barbárie. Nossos políticos e banqueiros, por outro lado, estiveram em boas escolas e universidades e tiveram as melhores oportunidades na vida.
Alguma coisa terrivelmente errada aconteceu no Reino Unido. Se vamos confrontar os problemas expostos na semana que passou, é essencial levar em conta que eles não existem apenas nos núcleos habitacionais.
A cultura da ganância e da impunidade que temos testemunhado em nossas telas de TV se estende até as sedes de empresas e ao ministério. Chega à polícia e a boa parte de nossa mídia. Não é apenas a juventude danificada, é o Reino Unido em si que precisa de reforma moral.”
FONTE: portal “Viomundo”, do jornalista Luis Carlos Azenha (http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/telegraph-ha-algo-cheirando-mal-no-reino-unido.html) [Imagem do Google adicionada por este blog ‘democracia&política’].
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2 comentários:
Assaltantes de lojinhas do mundo, uni-vos!
Significado das revoltas na Inglaterra, Espanha, etc.
"...Embora os tumultos de rua na Grã-Bretanha tenham sido desencadeados pela morte de Mark Duggan, todos concordam que manifestam mal-estar mais profundo – mas que tipo de mal-estar?
Como quando se queimaram carros nos subúrbios de Paris em 2005, os agitadores de rua na Grã-Bretanha não tinham mensagem alguma a comunicar. (Há aí claro contraste com as manifestações massivas de estudantes em novembro de 2010, que também geraram violência. Os estudantes deixaram bem claro que rejeitavam as propostas de reformas na educação superior.) Por isso é difícil pensar sobre os agitadores de rua britânicos em termos marxistas, como uma instância da emergência do sujeito revolucionário; encaixam-se muito mais facilmente na noção hegeliana de “ralé”, “escória” [orig. “rabble”], espaços marginais organizados, que manifestam o próprio descontentamento mediante explosões “irracionais” de violência destrutiva – que Hegel chamava de “negatividade abstrata”.
Há uma velha história sobre um operário suspeito de roubo: todas as tardes, ao sair da fábrica, o carrinho-de-mão que ele empurra é cuidadosamente revistado. Os guardas nada encontram; o carrinho está sempre limpo. Até que a ficha cai: o operário roubava um carrinho-de-mão por dia.
Os guardas não viam a mais visível verdade, exatamente como os jornalistas e especialistas e autoridades que comentaram os tumultos de rua. Dizem-nos que a desintegração dos regimes comunistas no início dos anos 1990s marcaram o fim da ideologia: o tempo dos projetos ideológicos em grande escala que culminaram em catástrofe totalitária está acabado; teríamos entrado numa nova era de política racional, pragmática. Se o lugar-comum de que vivemos numa era pós-ideológica é correto em algum sentido, pode-se ver nas recentes explosões de violência. Foi protesto de grau-zero, ação violenta sem demandas.
Em sua tentativa desesperada para encontrar algum sentido nos tumultos, sociólogos e jornalistas deixaram passar sem qualquer registro o enigma que os tumultos nos impuseram.
Os que protestavam, oprimidos e socialmente excluídos de facto, não vivem risco de morrer de fome. Gente que sobrevive em condições materiais muito piores, sem falar das condições de opressão física e ideológica, tem conseguido organizar-se em forças políticas com agendas políticas claras. O fato de os agitadores não terem programa é, portanto, ele mesmo, fato que exige interpretação: diz muito sobre nossa pregação político-ideológica e sobre o tipo de sociedade em que vivemos – uma sociedade que celebra a escolha, mas na qual a única escolha possível é um consenso democrático obrigatório praticado como repetição sem pensamento [ing. a blind acting out].
Nenhuma oposição ao sistema consegue articular-se como alternativa realista, sequer como projeto utópico, e só consegue assumir a forma de explosão sem meta ou significado. O que significaria nossa tão celebrada liberdade para escolher, se a única escolha possível é jogar pelas regras ou a violência (auto) destrutiva?
http://redecastorphoto.blogspot.com/2011/08/slavoj-zizek-assaltantes-de-lojinhas-do.html
Probus,
Também gostei dessa postagem da redecastorphoto.
Maria Tereza
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