O poder, cadê o poder?
"Os eixos fundamentais do poder político "conservador" na sociedade, hoje, se articulam em torno do sistema financeiro e do monopólio privado da mídia.
Por Emir Sader
Depois do desmascaramento do caráter supostamente neutro do Estado propugnado pelo liberalismo, pela denúncia da sua natureza de classe por Marx, a contribuição de Gramsci redefinindo o poder sob a forma da hegemonia, foi a mais importante para a teoria do Estado e do poder nas sociedades capitalistas.
Nas sociedades “ocidentais”, mais complexas, o poder não se concentrava mais no aparato de Estado, mas se enraizava em distintas instâncias da sociedade, onde era necessário dar a batalha essencial para a substituição do poder de classe da burguesia por um poder majoritário dos trabalhadores.
Como uma de suas consequências, a estratégia de “tomada do poder” da esquerda, que havia tido sucesso na Rússia, deixava de ter vigência nas sociedades ocidentais, mais complexas, onde a disputa fundamental se daria pela hegemonia na sociedade, que desembocaria na construção de um poder alternativo ao do Estado burguês.
A estratégia bolchevique se estendeu ainda para a China, para Cuba, para o Vietnã, para a Nicarágua, sem questionar a visão de Gramsci, por serem consideradas ainda sociedades periféricas, em que o controle do Estado permitia o controle do poder efetivo na sociedade. Foi a partir desse momento que a disputa hegemônica foi se generalizando como forma de luta pelo poder, conforme as sociedades foram se tornando mais complexas, as relações de poder se disseminando por distintos espaços da sociedade.
As maiorias eleitorais, a capacidade militar de assalto do Estado, características de duas correntes dentro da esquerda – a social democracia por um lado, os movimentos guerrilheiros por outro – ficaram superadas, diante do predomínio dos poderes econômicos e de formação da opinião pública.
O fim da guerra fria com a vitória do bloco ocidental liderado pelos EUA mudou também a correlação de forças no plano militar a nível mundial com seus reflexos a nível nacional. Os movimentos guerrilheiros centro-americanos se deram conta disso e buscaram se reciclar – com sucesso em El Salvador, fracassando na Guatemala – para a luta política institucional. As vias pacíficas de transformação revolucionária do Estado encontraram na derrubada do governo de Salvador Allende no Chile seus obstáculos – os poderes econômico, internacional, militar e midiático da direita.
O golpe militar no Brasil já havia demonstrado que não era necessária uma ameaça real ao capitalismo para que essas forças se desatassem e rompessem o tipo de democracia existente. A combinação entre a força econômica, internacional, midiática e militar se desatou diante de riscos muito menores para o poder tradicional.
Na era da globalização neoliberal, a esquerda herda derrotas de dimensão estratégica: o fim da primeira forma de existência do socialismo, com a URSS e o campo socialista; o enfraquecimento do Estado, da política, dos partidos, das soluções coletivas, dos direitos, da cidadania. Tudo em favor do "mercado", do consumidor, do "livre comércio", da "globalização neoliberal".
A esquerda passou a estar na defensiva, ao não ter resposta a dar ao diagnóstico neoliberal de que as economias deixavam de crescer pelas travas das regulamentações estatais, da burocracia e da corrução estatal, dos excessivos direitos dos trabalhadores, das travas nacionais, da ineficiência dos Estados. Com a apologia das empresas e dos empresários, da livre circulação do capital, do Estado mínimo, da desregulamentação. Além da diabolização definitiva do socialismo e a naturalização do capitalismo e das formas liberais de democracia.
Nesse marco de globalização do modelo neoliberal – nunca um modelo se estendeu tanto e em tão pouco tempo como o neoliberal -, setores da própria esquerda tradicional foram aderindo a modalidades de neoliberalismo – do PS francês ao espanhol, do nacionalismo mexicano do PRI ao argentino do Carlos Menem, do socialismo chileno aos tucanos brasileiros. O consenso do bem-estar social foi substituído pelo "consenso do mercado".
Além das transformações econômicas – aberturas dos mercados nacionais, financeirização das economias, desindustrialização da periferia, desterritorialização dos grandes investimentos do centro do capitalismo, extensão das terceirizações, privatizações, - se somaram as sociais – mercantilização das relações sociais, penetração do poder do dinheiro em todos os espaços sociais, projeção dos banqueiros como magnatas maiores, precarização das relações de trabalho, - e as políticas – naturalização da democracia liberal como “a democracia”, enfraquecimento dos partidos, desmoralização dos governos e dos parlamentos, projeção da mídia como direção política da direita.
O modelo neoliberal foi se enfraquecendo conforme as fragilidades da hegemonia do capital financeiro sob sua forma especulativa foram aparecendo claramente. Na América Latina, as três maiores economias foram sendo vitimas das crises financeiras típicas do neoliberalismo: México em 1994, Brasil em 1999, Argentina em 2001/2002.
De novo, tal qual se havia dado no começo do século XX, as crises explodiram na periferia, conforme o capitalismo central se fortaleceu, exportando as contradições mais profundas para os países do Sul do mundo. Mas essas crises geraram, em países da América Latina, o esgotamento do modelo neoliberal e o surgimento de governos pós-neoliberais. Esses avançaram pelas linhas de menor resistência do modelo neoliberal: políticas sociais, integração regional, papel ativo do Estado.
Mas as relações profundas de poder não foram afetadas. É baseada nelas que a direita resiste, tendo no sistema financeiro e no monopólio privado da mídia suas bases fundamentais de sustentação. Aí resiste, no essencial, o poder, mesmo nos países onde predominam politicas pós-neoliberais.
Com base no sistema financeiro, canalizam os capitais fundamentalmente para a especulação e promovem a mercantilização da sociedade e do seu próprio sistema político. Com base no monopólio privado dos meios de comunicação, se fabrica uma opinião pública centrada numa agenda falsa da realidade, se promove a mentalidade consumista e egoísta, com todo tipo de preconceitos, funcionando, além disso, como partido político da oposição.
Quem não tiver a compreensão de que os eixos fundamentais do poder conservador na sociedade se articulam em torno do sistema financeiro e do monopólio privado da mídia está desprovido da capacidade de ação eficaz para desbloquear os obstáculos que travam a continuidade e o aprofundamento do processo de democratização social iniciado em 2003 no Brasil."
FONTE: escrito por Emir Sader no site "Carta Maior" (http://www.cartamaior.com.br/?/Blog/Blog-do-Emir/O-poder-cade-o-poder-/2/30934). [Título adicionado por este blog 'democrcia&política'].
Por Emir Sader
Depois do desmascaramento do caráter supostamente neutro do Estado propugnado pelo liberalismo, pela denúncia da sua natureza de classe por Marx, a contribuição de Gramsci redefinindo o poder sob a forma da hegemonia, foi a mais importante para a teoria do Estado e do poder nas sociedades capitalistas.
Nas sociedades “ocidentais”, mais complexas, o poder não se concentrava mais no aparato de Estado, mas se enraizava em distintas instâncias da sociedade, onde era necessário dar a batalha essencial para a substituição do poder de classe da burguesia por um poder majoritário dos trabalhadores.
Como uma de suas consequências, a estratégia de “tomada do poder” da esquerda, que havia tido sucesso na Rússia, deixava de ter vigência nas sociedades ocidentais, mais complexas, onde a disputa fundamental se daria pela hegemonia na sociedade, que desembocaria na construção de um poder alternativo ao do Estado burguês.
A estratégia bolchevique se estendeu ainda para a China, para Cuba, para o Vietnã, para a Nicarágua, sem questionar a visão de Gramsci, por serem consideradas ainda sociedades periféricas, em que o controle do Estado permitia o controle do poder efetivo na sociedade. Foi a partir desse momento que a disputa hegemônica foi se generalizando como forma de luta pelo poder, conforme as sociedades foram se tornando mais complexas, as relações de poder se disseminando por distintos espaços da sociedade.
As maiorias eleitorais, a capacidade militar de assalto do Estado, características de duas correntes dentro da esquerda – a social democracia por um lado, os movimentos guerrilheiros por outro – ficaram superadas, diante do predomínio dos poderes econômicos e de formação da opinião pública.
O fim da guerra fria com a vitória do bloco ocidental liderado pelos EUA mudou também a correlação de forças no plano militar a nível mundial com seus reflexos a nível nacional. Os movimentos guerrilheiros centro-americanos se deram conta disso e buscaram se reciclar – com sucesso em El Salvador, fracassando na Guatemala – para a luta política institucional. As vias pacíficas de transformação revolucionária do Estado encontraram na derrubada do governo de Salvador Allende no Chile seus obstáculos – os poderes econômico, internacional, militar e midiático da direita.
O golpe militar no Brasil já havia demonstrado que não era necessária uma ameaça real ao capitalismo para que essas forças se desatassem e rompessem o tipo de democracia existente. A combinação entre a força econômica, internacional, midiática e militar se desatou diante de riscos muito menores para o poder tradicional.
Na era da globalização neoliberal, a esquerda herda derrotas de dimensão estratégica: o fim da primeira forma de existência do socialismo, com a URSS e o campo socialista; o enfraquecimento do Estado, da política, dos partidos, das soluções coletivas, dos direitos, da cidadania. Tudo em favor do "mercado", do consumidor, do "livre comércio", da "globalização neoliberal".
A esquerda passou a estar na defensiva, ao não ter resposta a dar ao diagnóstico neoliberal de que as economias deixavam de crescer pelas travas das regulamentações estatais, da burocracia e da corrução estatal, dos excessivos direitos dos trabalhadores, das travas nacionais, da ineficiência dos Estados. Com a apologia das empresas e dos empresários, da livre circulação do capital, do Estado mínimo, da desregulamentação. Além da diabolização definitiva do socialismo e a naturalização do capitalismo e das formas liberais de democracia.
Nesse marco de globalização do modelo neoliberal – nunca um modelo se estendeu tanto e em tão pouco tempo como o neoliberal -, setores da própria esquerda tradicional foram aderindo a modalidades de neoliberalismo – do PS francês ao espanhol, do nacionalismo mexicano do PRI ao argentino do Carlos Menem, do socialismo chileno aos tucanos brasileiros. O consenso do bem-estar social foi substituído pelo "consenso do mercado".
Além das transformações econômicas – aberturas dos mercados nacionais, financeirização das economias, desindustrialização da periferia, desterritorialização dos grandes investimentos do centro do capitalismo, extensão das terceirizações, privatizações, - se somaram as sociais – mercantilização das relações sociais, penetração do poder do dinheiro em todos os espaços sociais, projeção dos banqueiros como magnatas maiores, precarização das relações de trabalho, - e as políticas – naturalização da democracia liberal como “a democracia”, enfraquecimento dos partidos, desmoralização dos governos e dos parlamentos, projeção da mídia como direção política da direita.
O modelo neoliberal foi se enfraquecendo conforme as fragilidades da hegemonia do capital financeiro sob sua forma especulativa foram aparecendo claramente. Na América Latina, as três maiores economias foram sendo vitimas das crises financeiras típicas do neoliberalismo: México em 1994, Brasil em 1999, Argentina em 2001/2002.
De novo, tal qual se havia dado no começo do século XX, as crises explodiram na periferia, conforme o capitalismo central se fortaleceu, exportando as contradições mais profundas para os países do Sul do mundo. Mas essas crises geraram, em países da América Latina, o esgotamento do modelo neoliberal e o surgimento de governos pós-neoliberais. Esses avançaram pelas linhas de menor resistência do modelo neoliberal: políticas sociais, integração regional, papel ativo do Estado.
Mas as relações profundas de poder não foram afetadas. É baseada nelas que a direita resiste, tendo no sistema financeiro e no monopólio privado da mídia suas bases fundamentais de sustentação. Aí resiste, no essencial, o poder, mesmo nos países onde predominam politicas pós-neoliberais.
Com base no sistema financeiro, canalizam os capitais fundamentalmente para a especulação e promovem a mercantilização da sociedade e do seu próprio sistema político. Com base no monopólio privado dos meios de comunicação, se fabrica uma opinião pública centrada numa agenda falsa da realidade, se promove a mentalidade consumista e egoísta, com todo tipo de preconceitos, funcionando, além disso, como partido político da oposição.
Quem não tiver a compreensão de que os eixos fundamentais do poder conservador na sociedade se articulam em torno do sistema financeiro e do monopólio privado da mídia está desprovido da capacidade de ação eficaz para desbloquear os obstáculos que travam a continuidade e o aprofundamento do processo de democratização social iniciado em 2003 no Brasil."
FONTE: escrito por Emir Sader no site "Carta Maior" (http://www.cartamaior.com.br/?/Blog/Blog-do-Emir/O-poder-cade-o-poder-/2/30934). [Título adicionado por este blog 'democrcia&política'].
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