quarta-feira, 21 de maio de 2014

GARANTIA DE ATRASO INTELECTUAL




Por Paulo Moreira Leite

GARANTIA DE ATRASO INTELECTUAL

Como o estigma "chapa branca" impede o país de fazer um debate necessário sobre seu futuro

"Muitos adversários do governo Lula-Dilma gostam de denunciar o Partido dos Trabalhadores como um adepto das ideias de Antonio Gramsci, o lider do Partido Comunista Italiano que, nas primeiras décadas do século XX, formulou o conceito de "hegemonia de classe".

Convencido de que a tese do assalto revolucionário ao poder, como havia ocorrido na revolução bolchevique, de 1917, não poderia ser aplicada a todos os países, Gramsci dizia que o partido da classe trabalhadora deveria aliar-se a outras classes sociais, para formular uma política que lhe permitisse governar em nome da nação.

Para construir sua hegemonia, dizia, o partido daquilo que se chamava "classe oprimida", na época, deveria formar seus próprios aparelhos ideológicos, seu corpo de intelectuais, seus centros de produção de cultura, seus jornais, seu cinema, seu teatro – numa guerra de movimentos que lhe permitisse, em determinado momento, colocar a conquista do poder.

É verdade que inúmeros petistas, em vários momentos de sua existência, se debruçaram sobre as ideias de Gramsci.

Mas quem pratica Gramsci, no Brasil de 2014, é a "elite" que ocupa o poder [a mídia, o Judiciário, a maioria dos partidos, os bancos, as megaempresas]. Ela busca, de modo consciente reforçar e manter a hegemonia das ideias da sociedade, atuando em todas as áreas.

Como nós sabemos, não se perdoa nem novelas, que se prestam a veicular valores e a divulgar pontos de vista sob medida para seus interesses.

Gramsci ajudou a entender, me conta um de seus estudiosos, que “a burguesia não precisa de partidos políticos quando seus jornais funcionam direito.”

Apesar desse imenso aparato ideológico a seu serviço, a elite que tem o poder de Estado e dirige o país desde o Descobrimento, com intervalos reais, mas raros, nos quais nunca foi levada a abdicar de seus direitos fundamentais, encontra-se numa posição de risco em 2014. As dificuldades parecem um pouco menores do que em eleições anteriores, é verdade, mas sua perspectiva histórica segue complicada.

As derrotas eleitorais se acumulam desde 2002, em três vitórias sucessivas para um bloco político que, sem nada de revolucionário nem de radical, tem sido capaz de realizar tarefas históricas, que beneficiam o conjunto da sociedade. São medidas que melhoram a distribuição de renda, a geração de empregos mesmo em situações desfavoráveis, a defesa dos trabalhadores e dos mais pobres, sem falar medidas menos reconhecidas, mas importantes, em outras áreas.

Nessa situação, a elite defende sua hegemonia através de um estigma.

Da mesma forma que criminalizou os adversários políticos através da AP 470, um julgamento de exceção com regras que jamais foram partilhadas com adversários políticos de outras legendas apanhados em circunstâncias idênticas e até mais graves, procura-se atacar seus críticos com o palavrão “chapa branca.”

Com essa expressão, tenta-se intimidar aliados do governo e colocar sob suspeita todo esforço para registrar e debater dados e análises que mostram, objetivamente, que as mudanças positivas ocorridas na vida da maioria dos brasileiros nos últimos anos superam, em muito, erros, falhas e desvios no mesmo período.

Embora essa avaliação favorável tenha recebido a concordância, em graus variados, de mais de 60% dos eleitores brasileiros, usa-se o termo “chapa branca” para destituir a legitimidade desse ponto de vista.

Num país onde os principais jornais apoiaram a ditadura militar. Curvaram-se diante de Fernando Collor. Alegando que o fim da História havia chegado, mergulharam de cabeça nas privatizações de Fernando Henrique Cardoso/PSDB-DEM, chegando a imaginar até que poderiam levar sua parte em ações, procura-se transformar em desvio moral-intelectual toda avaliação positiva do governo Lula-Dilma.

Veja bem: estamos falando do presidente mais popular da história, e da presidente-candidata que lidera as pesquisas de intenção de voto. Como se vivêssemos numa imprensa de comentaristas neutros 
[sic], repórteres sem ideologia [sic] ( “investigativos” [sic]) e editores equilibradíssimos [sic], a divergência política tornou-se um pecado sem perdão e toda melodia intelectual desafinada é colocada sob suspeita. 

Na dificuldade para enfrentar um debate com dados e argumentos, procura-se impedir a discussão antes de ela começar.

Nesse esforço, acentuado num ano de sucessão presidencial, o plano está ficando claro. Tenta-se convencer o eleitorado da ideia de que um "retrocesso conservador" é não apenas necessário mas inevitável. Nessa narrativa, todas as formas de pensamento devem ser niveladas por baixo.

A fórmula está pronta e é repetida como um estribilho de festa junina: o país não aguenta tantos gastos excessivos e descontrolados. A inflação está explodindo e um "arrocho" terá de ser feito qualquer que seja o novo presidente.

O que se pretende nesse coro é criar um ambiente conformista, um fatalismo em bola de neve, para transformar as escolhas de 100 milhões de eleitores num ato acessório e no fundo dispensável.

O problema, como se sabe, não é um campeonato ideológico. Não se deve supor um mundo perfeito. Não estamos no reino das utopias nem do marketing. Mas é preciso fazer o teste da realidade.

A inflação média é a menor desde o Plano Real [antes de ser degradado no fim do governo FHC/PSDB]. O desemprego não aumenta e o salário sobe, ainda que mais vagarosamente. O Brasil tem a quinta maior reserva em divisas do mundo, volume compatível com o tamanho da nossa economia. O mercado interno se comprovou como um dos grandes patrimônios do país. O poder de compra do salário mínimo nunca foi tão alto em décadas recentes. Com seus rendimentos, mesmo modestos sob quaisquer critérios, nossos aposentados são capazes de sustentar famílias inteiras em regiões mais pobres do país. O combate ao racismo deixou o papel e se traduziu em medidas concretas para criar novas oportunidades à população negra. As mulheres avançaram em sua emancipação, que ainda não é completa, auxiliada por vários fatores -- inclusive o "Bolsa Família".

O uso frequente do termo “chapa branca” é, ainda, um reflexo de um movimento autoritário que procura se impor no debate político e definir limites ao convívio democrático.

Descontando os filósofos de butique que adoram anunciar "o fim da divisão de direita e esquerda" como parte da liquidação do Natal de 1989, quando o muro de Berlim caiu, só a grande a hegemonia ideológica conservadora permite que a direita sobreviva e se reproduza sem ousar dizer o seu nome.

Depois de enriquecer e se reconstruir sob uma ditadura de 20 anos, que gerou monstruosidades tão horrorosas que até hoje não foram investigadas nem corrigidas inteiramente, “chapa branca” evita esse desconforto tão inconveniente. Evita definições precisas e referências claras.

Como a expressão remete a governo – no passado, os carros oficiais tinham chapa branca – a crítica alimenta-se de uma retórica liberal, privatista, antiEstado.

É chique não ser “chapa branca”.

Sugere independência, ainda que isso seja um puro absurdo. O acesso a grandes fortunas privadas, que promovem e sustentam financeiramente o pensamento "conservador" de nossos dias, está longe de ser uma garantia de isenção e superioridade, vamos combinar.

Mas, num tempo em que a privatização atingiu o nível cerebral, fica sugestão de que ali se encontra mais inovação, mais autonomia, maior ousadia. Defender os interesses dos mais ricos e poderosos chega a ser apresentado como "ato de coragem".

Nos Estados Unidos, os adversário de Barack Obama gostam de acusar o "New York Times", o mais respeitado jornal do planeta, de ser governista demais – no dialeto político local, o termo equivale a chapa branca. Ninguém leva essa crítica muito a sério, porque ela é interesseira do ponto de vista político. Quem espalha e divulga esse estigma, e até faz campanhas de boicote contra o jornal, são os núcleos duros do Partido Republicano, que cresceram junto com o "Tea Party". Como Paul Krugmann demonstrou com clareza em sua coluna de domingo (11), o que se busca é uma forma de mentir à vontade.

Nenhum desses dados modifica uma discussão necessária sobre a conjuntura do país.

Mas permite colocar em seu devido lugar um debate alarmista, desequilibrado, sob encomenda para tentar revogar as conquistas dos últimos anos com o argumento de que o país vai explodir. Deu para entender, certo?"


FONTE: escrito por Paulo Moreira Leite, diretor da Sucursal da revista "ISTOÉ" em Brasília, autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na "VEJA" e na "Época". Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa"  (http://www.istoe.com.br/colunas-e-blogs/colunista/48_PAULO+MOREIRA+LEITE).

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