A FRANÇA NO MALI: O BUMERANGUE DE LONGO PRAZO DO IMPERIALISMO
“A crise atual no Mali é um produto do
colonialismo francês e a intervenção, infelizmente, vai causar mais
efeito-bumerangue
O envio de soldados franceses para enfrentar o
rápido avanço de militantes Salafistas no norte do Mali representa a
convergência de círculos múltiplos do efeito-bumerangue, uma reação a dois
séculos de políticas francesas na África.
Algumas datam do início do século 19, outras foram
implementadas nos últimos anos. Juntas, significam desastre potencial para a
França e os Estados Unidos (os dois principais atores externos no Mali, hoje) e
mais ainda para o Mali e países vizinhos.
Apenas duas ações, em conjunto, podem evitar o
cenário de pesadelo de um grande estado falido no coração da África que espalhe
a violência no continente.
Primeiro, que um ataque liderado pelos franceses
consiga forçar a maior parte dos combatentes Salafistas para fora de áreas
populosas atualmente sob seu controle; segundo, a instalação de uma força de
segurança viável, liderada por africanos, que assuma o controle desses centros
populacionais pelos próximos anos.
Se isso em si é difícil, diplomatas franceses e de
outros países ainda precisam criar espaço para o estabelecimento de um governo
mais representativo e menos corrupto no Mali, que esteja disposto e consiga
negociar uma resolução para o conflito de décadas com o povo Tuaregue, cuja
tentativa mais recente e violenta de criar uma zona semi-independente no norte
do Mali, no início do ano passado, ajudou a criar um vácuo político e de
segurança explorado com perícia e crueldade pela Al-Qaida no Magreb Islâmico e
grupos aliados radicais.
O primeiro e maior efeito-bumerangue nos leva à
política colonial francesa na África Ocidental e do Norte, que foi a
responsável pela criação da maior parte dos estados envolvidos no atual
conflito. A França começou deliberadamente a colonizar grandes porções da
África Ocidental no início do século 19, assumindo o controle do que hoje é a
Mauritânia e do Senegal em 1815, seguidos pela invasão da Argélia em 1830, da
Tunísia em 1881, da Guiné francesa, Costa do Marfim e do Sudão francês (que se
tornaria o Mali) nos anos 1890, do Níger em 1903-04 e do Marrocos em 1912.
DESENHADOS NO COLONIALISMO
É impossível saber como o mapa da África teria evoluído
sem a colonização europeia. O que é certo, no entanto, é que a chamada “corrida pela África” que dominou o
século 19 — com a qual os governantes
locais colaboraram quando servia a seus interesses — garantiu que os
poderes europeus criassem a base territorial dos modernos Estados-Nação, cujas
fronteiras têm pouca relação com a geografia étnica e religiosa do continente.
O Mali, em particular, era composto por vários
grupos étnicos, linguísticos e os que hoje são considerados “raciais”.
A rápida e fracassada tentativa de união do Mali
com o Senegal, na época da independência, em 1960, demonstra a fundação
artificial das fronteiras e estados da região.
A falta de consideração às dinâmicas locais — étnica, religiosa e cultural — e o
imperativo colonial de colocar o maior território possível sob um mesmo governo
criaram a situação na qual Estados com áreas duas vezes maior que a da França e
com grupos populacionais sem razões culturais e históricas para viver juntos,
com poucos recursos naturais ou vantagens comparativas para se sustentar, foram
forçados a viver juntos assim mesmo.
Primeiro, sob governo estrangeiro, cujo principal
objetivo — qualquer que fosse a ‘missão
civilizatória’ anunciada por Paris — era extrair tanta riqueza e recursos
quanto possível, exercendo controle por todos os meios disponíveis; depois, sob
governos locais pós-independência, que adotaram políticas que, na prática,
representaram poucas mudanças em relação aos governos coloniais.
Na verdade, mesmo aqueles países que asseguraram
independência pacificamente foram deformados estruturalmente sob controle de
estrangeiros, pelo estabelecimento de Estados com fronteiras que não
correspondiam naturalmente às ecologias políticas e culturais das regiões nas
quais foram criados.
Como sintetizado pelo sofrimento das comunidades
Tuaregues do Mali (que estão espalhadas
pelo Sahel da mesma forma que os Curdos estão espalhados em vários países do
Crescente Fértil), a maioria dos países da África Central, Ocidental e do
Norte acabou incluindo um número significativo de habitantes que não pertenciam
ao grupo étnico que assumiu o poder.
Ao mesmo tempo, os governos pós-independência
estavam repletos de corrupção e lealdades étnicas com líderes que se mostraram
incapazes ou relutantes ao buscar um caminho de desenvolvimento verdadeiramente
nacional e democrático.
Em tal situação, a religião, que poderia ter tido
papel positivo na formação de uma base moralmente segura das esferas pública e
econômica, se tornou marginalizada da governança, passando aos poucos a assumir
forma tóxica entre a maior parte dos grupos marginalizados da região.
APOIANDO O TIME ERRADO
Se a história colonial da França criou as
estruturas nas quais a crise presente inevitavelmente se desenvolveu, uma série
de políticas mais recentes se constitui na explicação para o segundo bumerangue
explosivo; ou seja, o apoio sem reservas da França ao governo da Argélia na sua
repressão à transição democrática que começou em 1988 e foi esmagada em 1992.
Como é bem sabido, em vez de permitir que a “Frente
Islâmica de Salvação” — um grupo
inspirado na “Irmandade Muçulmana”, que não difere muito nas raízes e contornos
de seus co-irmãos estabelecidos no Egito e na Tunísia — assumisse o poder
depois de sua clara vitória eleitoral depois do primeiro turno das eleições
parlamentares de 1991-92, os militares argelinos cancelaram o segundo turno e
começaram uma repressão que, rapidamente, explodiu em uma guerra civil entre o
governo e grupos radicais islâmicos.
Diante da decisão de permitir ou não que um novo
ator político islâmico assumisse o poder, a França se juntou aos Estados Unidos
no apoio aos militares argelinos, com os quais tem relações próximas. Ao se
aliar a um governo brutal, corrupto e autoritário, os franceses e o Ocidente se
tornaram parte de um conflito perverso que viu emergirem perigosos grupos
terroristas como o GIA (Grupo Armado
Islâmico), possivelmente controlado em parte pelos próprios militares, e em
seguida uma sangrenta guerra civil de uma década que custou a vida de mais de
100 mil civis.
O GIA, por sua vez, foi a semente da qual outros
grupos emergiram, como o “Grupo Salafista para a Pregação e o Combate” e a Al
Qaida no Magreb Islâmico. Na década passada, esses grupos focalizaram sua
atenção no Norte da África, mas gradualmente se moveram mais profundamente no
Sahel para ligar a Argélia ao Mali, Mauritânia, Níger e Marrocos.
Se a França e o Ocidente não tivessem dado apoio
sem reservas aos militares argelinos, é pouco provável que tais grupos tivessem
sido criados, muito menos que tivessem crescido para atingir seu status atual (um argumento similar poderia ser utilizado
para falar do braço principal da Al Qaida que, de várias formas, foi um
subproduto do incessante apoio dos Estados Unidos a alguns dos regimes mais
corruptos e brutais do mundo, inclusive a Arábia Saudita, o Egito e o Paquistão).
Como em muitos outros casos, a França e seus
aliados ocidentais escolheram estabilidade em vez de democracia. Ao fazer isso,
inevitavelmente — e ironicamente —
ajudaram a criar o cenário do presente caos no qual suas tropas são forçadas a
lutar.
APOIANDO O TIME ERRADO… DE NOVO
O terceiro e mais recente círculo do
efeito-bumerangue nasce no longo apoio da França ao ditador da Tunísia, Zine El
Abidine Ben Ali. Especificamente, o presidente francês Nicolas Sarkozy deu
forte apoio a Ben Ali no início da crise, inclusive, como descrito pela
ministra das Relações Exteriores, Michèle Alliot-Marie, “o saber-fazer, reconhecido em todo o mundo, das forças de segurança
francesas em enfrentar situações de segurança deste tipo”. As palavras do
presidente da França deixaram seu governo envergonhado quando os protestos
ganharam força a ponto de criar uma “crise
de credibilidade” que forçaram Sarkozy a “admitir o erro” de apoiar Ben Ali contra os revolucionários.
A vergonha de Sarkozy foi tal que, quando a crise
da Líbia irrompeu, a França assumiu a liderança na pressão por intervenção
militar ocidental para derrubar Gaddafi do poder, da maneira a perdoar os
franceses por seus pecados tunisianos. E foi exatamente o início da guerra
aérea da OTAN e do apoio militar ao rebeldes líbios que levou ao êxodo de bem
treinados guerrilheiros e suas armas, obtidas na Líbia, para o Níger, o Mali e
outras partes do Sahel, acompanhando o colapso do estado de Gaddafi.
O caos e a disseminação de armas gerada pela
guerra na Líbia colocou um número crucial de homens e armas no norte do Mali
num momento particularmente perigoso da história do país, quando os muito
oprimidos Tuaregues, que tinham obtido apoio de Gaddafi no passado (alguns
chegaram a lutar por Gaddafi), estavam outra vez prontos para se rebelar contra
o governo central.
A situação se tornou ainda mais caótica com o
inesperado e aparentemente indesejado golpe contra o presidente que estava
próximo de se aposentar, Amadou Toumani Touré, em março de 2012, o que criou um
vácuo de poder ainda maior no país.
O BUMERANGUE DO BUMERANGUE
Aqui vemos décadas, na verdade séculos, de políticas
francesas, europeias e norte-americanas se juntando para produzir o caos
máximo. Isso, por sua vez, é fortalecido pelo bumerangue de antigos conflitos
locais, da hostilidade da liderança militar do Mali aos recrutas extremamente
pobres (o que levou aos protestos que
forçaram o presidente a fugir em março de 2012) à incapacidade do movimento
rebelde Tuaregue de abandonar sua tradição de resistência violenta em troca de
uma nova geração de ativistas, que advogava um movimento revolucionário muito
mais próximo do que acabou irrompendo na “Primavera
Árabe”. Depois de um ano, o exército do Mali perdeu o controle da maior
parte do país, enquanto os Tuaregues foram colocados de lado pela revolta
iniciada pelos grupos Salafistas aliados à Al-Qaida.
O que é mais interessante é que o bumerangue
explosivo do presente deveria ter sido antecipado por políticos franceses e
ocidentais quando planejavam a guerra na Líbia. Especialistas no Norte da
África, tais como o cientista político Jean-Pierre Filiu, da “Sciences Po”, já
diziam em 2010 que a Al Qaida no Magreb e outros grupos salafistas estavam
abandonando seu foco na Argélia para desenvolver uma presença estratégica, e
mesmo um “novo teatro” de guerra no Sahel, com o objetivo último de
desestabilizar tais países.
Esses jihadistas “agora representam uma séria ameaça de segurança no norte do Mali e de
Níger”, explicou Filiu, por causa dos numerosos sequestros, contrabando e
outros atividades ilícitas de recrutamento de uma “nova geração” de combatentes
das várias comunidades pobres da região.
A realidade das crescentes operações de grupos
islâmicos no norte do Mali, juntamente com maior agitação dos Tuaregues e o bem
conhecido uso que Gaddafi fazia de mercenários de grupos nômades, deveria ter
despertado alarme entre os franceses e ocidentais antes da decisão de se
engajar na guerra civil líbia.
Na verdade, do lado norte-americano, o embaixador
no Mali já em 2004 alertava que o Mali “como
pedaço isolado da África, tribal e pouco governado… era terreno potencial para extremismo
religioso e terrorismo similar ao Afeganistão sob o talibã… se o Mali for, o
resto [da região] vai”. Esse alerta foi feito, justamente, quando os
militares dos Estados Unidos estavam aumentando sua presença no continente,
culminando com a criação do comando AFRICOM, em 2008.
Dada a clara atenção que se dava ao Sahel na
última década por formuladores de política da França e dos Estados Unidos,
podemos considerar que, ou eles foram completamente incompetentes para entender
os resultados inevitáveis da intervenção militar ocidental na Líbia, ou viram a
situação como vencer-vencer, providenciando um novo teatro de operações numa
área estratégica do mundo onde os militares dos Estados Unidos, França e outros
países poderiam se tornar crescentemente engajados (ao fazer isso, mantendo os rivais da China mais distantes).
Seja como for, assim como prévias intervenções na
África geraram os bumerangues explosivos que resultaram na atual crise do Mali,
a atual intervenção no Mali, ainda que necessária, bem intencionada e desejada
pela maioria dos habitantes (se é que é
possível determinar os desejos deles) sem dúvida vai produzir seu próprio
bumerangue, que vai custar a vida de muitos africanos, franceses,
norte-americanos e outros cidadãos ocidentais.”
FONTE: escrito por Mark LeVine, na “Al Jazeera”.O autor é professor de história do
Oriente Médio na “University of
California - UC Irvine”, professor-visitante do “Center for
Middle Eastern Studies” da “Lund University” na Suécia, autor do livro sobre
revoluções no mundo árabe “The Five Year Old Who Toppled a Pharaoh”. Artigo
transcrito no portal “Viomundo” (http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/a-intervencao-ocidental-na-libia-e-a-crise-no-mali.html).
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