EUA e Qatar, mesmos interesses?
Por Nicola
Nasser, no “Countercurrents”,
sob o título original “
“Qatar And U.S.: Collusion or
Conflict of Interests”. Traduzido pelo “pessoal da Vila Vudu” e postado no blog “Redecastorphoto”
Nicola
Nasser
|
“No discurso da segunda posse, dia
21/1/2013, o Presidente dos EUA, Barack Obama fez o anúncio, histórico, de que
“está terminando uma década de guerras”
e declarou que os EUA estão determinados a “demonstrar
a coragem necessária para resolver pacificamente nossas diferenças com outras
nações”. Mas é mensagem que não passará de palavras, se não vier seguida de
ações e que ainda não alcançou alguns dos mais íntimos aliados dos EUA no Oriente
Médio, os quais ainda batem os tambores de guerra, como
Israel contra o Irã, e o Qatar contra a Síria.
Se se consideram o nível de “coordenação” e
“cooperação” desde que se estabeleceram relações diplomáticas em 1972 entre EUA
e Qatar, e a concentração de militares dos EUA naquela minúscula península,
parece impossível que o Qatar possa mover-se independentemente, em paralelo ou
fora de uma linha de colisão frontal com os planos estratégicos regionais dos
EUA.
Segundo a página online do Departamento de Estado dos EUA, “as relações bilaterais permanecem fortes”,
os dois países estão diplomaticamente “em
coordenação” e “cooperando” para
a segurança regional; mantêm um “pacto de
defesa”; “o Qatar hospeda o
quartel-general avançado do CENTCOM” e apoia a OTAN e as “operações militares regionais dos EUA”.
O Qatar é, também, ativo participante nos esforços, comandados pelos EUA para
implantar uma rede integrada de mísseis de defesa na região do Golfo. E, além
do mais, o Qatar abriga o “Centro de Operações Aéreas Combinadas dos EUA” e
três bases militares norte-americanas: a Base Aérea Al Udeid, a Base Assaliyah
do Exército e a Base Aérea Internacional de Doha – nas quais estão alojados cerca de 5.000 soldados norte-americanos.
O Qatar, ligado aos EUA por aliança assim
tão próxima e íntima, desenvolveu, recentemente, a prática de financiar
pesadamente – é o principal patrocinador –
os movimentos políticos islamistas. O Qatar é, hoje, o principal patrocinador
da organização internacional da “Fraternidade Muçulmana”, que, desde 1999,
deixou de ver a família reinante como força adversária.
O casamento de conveniência entre o Qatar e
os “Irmãos” criou uma incubadora natural de islamistas fundamentalistas
armados, contra os quais, desde 11/9/2001, os EUA fazem o que se conhece sob o
rótulo de “Guerra Global ao Terror”.
A guerra no Mali, nação africana, oferece o
mais novo exemplo de como os EUA e o Qatar, aparentemente, trilham caminhos
separados. Por um lado, o secretário de Defesa dos EUA, Leon Panetta estava em
Londres, dia 18/1, entregando aos franceses “a liderança do esforço internacional” no Mali; e para garantir aos
franceses que os EUA dariam apoio logístico, de transporte e de inteligência.
Mas o Qatar dava sinais de não se incomodar de pôr em risco seus laços
especiais com a França, que atingiram o auge na guerra da OTAN contra a Líbia,
e deu sinais de não pensar em termos exatamente conformes com o que diziam EUA
e França.
Hamad bin Jassem
al-Thani
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Dia 5/1, o Primeiro-Ministro e Ministro de
Relações Exteriores do Qatar, Xeique Hamad bin Jassem al-Thani, disse a
jornalistas que não acreditava que “a
força resolverá o problema”. Aconselhou que, em vez do ataque militar, o
problema fosse “discutido” pelos “países vizinhos, a União Africana e o
Conselho de Segurança da ONU”. E uniu-se ao ideólogo da “Fraternidade
Muçulmana” que vive em Doha e a seus patrocinadores qataris, Yusuf Abdullah
al-Qaradawi – presidente da “União
Internacional de Intelectuais Muçulmanos” – ao qual a Grã-Bretanha negou
visto para entrar no país em 2008, e a França, no ano passado – ambos clamando por “diálogo”,
“reconciliação” e “solução pacífica”, em vez de “intervenção militar”.
Em exemplo relativamente mais antigo,
segundo WikiLeaks, o ex-presidente da Somália em 2009, Sharif Ahmed, disse a um
diplomata dos EUA que o Qatar estava canalizando toda sua assistência
financeira para o grupo “Shabab al-Mujahideen”, associado à al-Qaeda, que os
EUA incluíram na lista de “organizações
terroristas”.
Mais um caso: na Síria, a “Fraternidade
Muçulmana” é a principal força “de combate” contra o regime de Bashar al-Assad
e em aliança com um dos culpados por atrocidades em vários ataques terroristas,
a “Frente Al-Nustra”, ligada também à “al-Qaeda”; em dezembro do ano passado,
os EUA incluíram a “Frente Al-Nusra” em sua lista de “organizações
terroristas”. Simultaneamente, a oposição síria, liderada por EUA e patrocinada
pelo Qatar, protestava publicamente contra o ato dos EUA. O silêncio do Qatar
só pode ser interpretado como apoio ao protesto contra a decisão dos EUA.
Recentemente, o Qatar substituiu, para dar
mais um exemplo, a Síria (listada como
estado patrocinador de terrorismo desde 1979), como patrocinador do Hamás,
cujos principais comandantes políticos mudaram-se de Damasco para Doha. Os EUA
também listam o Hamás entre as “organizações
terroristas”. E o Hamás, por sua vez, não perde ocasião de declarar que é o
braço palestino da “Fraternidade Muçulmana”.
Em todos esses exemplos, vê-se que o Qatar
parece estar-se reposicionando para qualificar-se como mediador, com as bênçãos
dos EUA, tentando obter, com dinheiro, a posição que os EUA não conseguem
alcançar militarmente, ou só conseguiriam alcançar a um preço ainda muito mais
alto em dinheiro e em vidas.
No caso do Mali, o Primeiro-Ministro do
Qatar, Xeique Hamad, veio a público para declarar seu próprio projeto: “Seremos parte da solução, (mas) não o único
mediador” – disse ele. A bênção dos EUA não poderia ser mais clara que a
aprovação, pelo presidente Obama, a que se instale em Doha um escritório de representação
dos Talibã afegãos, “para facilitar”
uma “paz negociada no Afeganistão”,
nas palavras do Ministro de Relações Exteriores do Qatar, dia 16/1.
Mas uma mediação unilateral do Qatar já
fracassou no Iêmen, e uma mediação árabe liderada pelo Qatar também fracassou
na Síria, há dois anos. A “Declaração de
Doha” para reconciliar grupos palestinos rivais ainda permanece só no
papel. A mediação qatari no Sudão, em Darfur, ainda não produziu resultados. A
“mediação” qatari na Líbia foi condenada como interferência em assuntos
internos do país pelo mais destacado líder pós-Gaddafi. E no Egito
pós-“Primavera Árabe”, o Qatar abandonou os esforços iniciais de mediação para
alinhar-se publicamente à “Fraternidade Muçulmana” eleita. Mesmo assim, apesar
de tantos e repetidos fracassos, tantos esforços de “mediação” cumpriram bem o
papel atribuído ao Qatar, como “aliado”, na estratégia dos EUA.
Daí as bênçãos dos EUA. O “Soufan Group”, de analistas de
inteligência, dia 10/12 passado, concluiu que “o Qatar continua a comprovar que é aliado chave dos EUA (...) O Qatar quase sempre consegue alcançar
objetivos comuns dos EUA e do Qatar, dos quais os EUA não querem ou não podem
encarregar-se diretamente”.
O primeiro governo Obama, sob a pressão da
“austeridade fiscal”, abençoou os
qataris que continuaram a financiar e armar islamistas anti-Gaddafi na Líbia;
fingiu que não viu que o Qatar transferiu todo o arsenal militar de Gaddafi
para seus aliados islamistas sírios e não sírios que lutam para derrubar Assad
na Síria; “compreendeu” a visita que o Emir do Qatar fez a Gaza em outubro
passado, como “missão humanitária”. E, mais recentemente, aprovou que o Qatar
armasse sua aliada, a “Fraternidade Muçulmana” no Egito, com 20 jatos de
combate F-16 e 200 tanques M1A1 Abrams.
Essa contradição levanta a questão sobre se
o que aí se vê é colusão [conchavo] entre EUA e Qatar, ou se há, mesmo, algum
conflito de interesses. O governo Obama, em seu segundo mandato, terá de traçar
alguma linha clara que responda, sem tergiversar, essa questão.
Pelo que se vê hoje, Doha e Washington não
têm a mesma visão sobre os islâmicos e os movimentos islamistas, mas, no campo
de batalha da “guerra ao terror”, nem Doha nem Washington podem discutir sobre
seus respectivos papéis, não podem deixar de mostrar coordenação e não podem
deixar de complementarem-se mutuamente.
Apoiada na experiência histórica de
abordagem semelhantemente “religiosa” no caso do Irã, mas em base “xiita”
sectária, essa conexão islamista “sunita” qatari, inevitavelmente, levará a
aumentar a polarização sectária na região e fará aumentar a instabilidade, a
violência, e provocará outras guerras civis.
Localização
das bases dos EUA no Qtar
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Por causa da aliança EUA-Qatar, a conexão
islamista dos qataris ameaça enredar, cada vez mais, os EUA em disputas regionais. Ou servirá para
tornar os EUA responsáveis pela luta generalizada e sem fim, o que só fará
aumentar o profundo antiamericanismo que já se vê em toda a região. E esse
antiamericanismo, por sua vez, será outra vez a incubadora na qual prosperará
mais extremismo e mais terrorismo, já incendiados hoje, depois da tal “década
de guerras” que o presidente Obama disse, em seu discurso de posse, que estaria
“terminando”
Tradicionalmente, o Qatar, que está no olho
do furacão naquela região crítica e geopoliticamente volátil do Golfo, teatro
de três grandes guerras nos 30 últimos anos, sempre se empenhou em manter um
equilíbrio o mais frágil possível entre as duas potências que determinam a
própria sobrevivência do Qatar: a velha
presença militar dos EUA no Golfo; e o Irã, hoje potência regional em ascensão.
Em 1992, o Qatar assinou amplo acordo
bilateral de defesa com os EUA; e em 2010, assinou acordo militar de defesa com
o Irã, o que explica os laços cada dia mais cálidos que se vão construindo
entre Qatar e Irã – unidos pelos
movimentos de resistência antiIsrael: o Hezbollah no Líbano, e o Hamás nos
territórios ocupados da Palestina; explica também a “lua de mel” em que o Qatarvive com os aliados do
Irã na Síria.
Contudo, desde a eclosão da sangrenta crise
síria, há dois anos, a abertura do Qatar para Estados e não Estados pró-Irã já
está exposta como manobra tática para manter aquelas potências bem longe do
Irã. Nos casos da Síria e do Hezbollah, o fracasso dessa tática já levou o
Qatar a entrar em rota de colisão com ambos, Síria e Irã, ambos apoiados por
Rússia e China, o que está forçando o Qatar a dar meia-volta no longamente
cultivado processo de equilibramento na região, movimento do qual o Qatar
parece não se dar conta, e que ameaça a própria sobrevivência do estado qatari,
sob a pressão de interesses fortemente conflitantes, regionais e
internacionais, como já se veem, escritos em sangue, na crise síria.
Durante o crescimento de movimentos
massivos “panarabistas”,
nacionalistas, socialistas e democráticos no mundo árabe, no início da segunda
metade do século 20, as monarquias autoritárias conservadoras árabes adotaram a
“Fraternidade Muçulmana”, outros islamistas e a ideologia política islâmica e
as usaram contra aqueles movimentos, para sobreviverem como aliados dos EUA. E
os EUA, por sua vez, usaram todos, com a “al-Qaeda” à frente, contra a ex-URSS
e a ideologia comunista; depois do colapso da ordem mundial bipolar, essa
instrumentalização foi feita em detrimento das nações instrumentalizadas.
É verdade que a história parece repetir-se,
com as monarquias árabes apoiadas pelos EUA (e, outra vez, com a al-Qaeda no comando), recorrendo à sua velha
tática de explorar a ideologia islamista para minar e “conter” uma revolução
árabe antiautoritarismo, pelo Estado de Direito, por sociedade civil
respeitada, por instituições democráticas e justiça social e econômica para os
povos árabes em torno do bastião superprotegido dos EUA na península árabe.
Mas todos parecem não ver que estão abrindo
uma caixa de Pandora. O que dela sairá fará a vingança da al-Qaeda contra os
EUA em 2001 parecer um simples, pequeno, insignificante precedente histórico.”
FONTE:
escrito por Nicola Nasser, no “Countercurrents”, sob o título
original “Qatar And U.S.: Collusion or Conflict of Interests”. Traduzido pelo “pessoal da Vila Vudu” e postado no blog “Redecastorphoto” (http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2013/01/qatar-e-eua-colusao-ou-conflito-de.html).
[Entre colchetes adicionados por este blog ‘democracia&política’].
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